“Privatização de Praias” no Brasil e a Magna Carta do Bosque: o necessário resgate do coletivismo

Prefeitura de Macaé

Há certo consenso na doutrina constitucional de que o constitucionalismo, definido como teoria ou ideologia que ergue o princípio do governo limitado, indispensável à garantia dos direitos estruturantes da organização político-social de uma comunidade [1], possa ser identificado no século XIII, a partir do conhecido documento inglês, a Magna Carta, de 1215. Trata-se de um autêntico documento constitucional, em que conferia garantias e direitos aos barões e prelados ingleses, insatisfeitos com a intromissão do rei em alguns assuntos de interesses das baronias. A assinatura foi imposta ao rei João Sem Terra, limitando parte de seu poder e conferindo liberdade à Igreja Católica. O conteúdo do documento representa valores individuais, centrando-se em questões de propriedade, liberdade e preservação dos costumes feudais. Dentre os direitos garantidos, destaca-se ao que hoje se conhece por legalidade tributária e devido processo legal, bem como assentou as bases do habeas corpus. Esse seria o início do que se identificou como constitucionalismo antigo, que perpassa alguns séculos, até desembocar no constitucionalismo moderno, marcado pelas grandes revoluções no final do século XVIII.


No entanto, o que pouco se conhece ou se sabe é que além da publicação da Magna Carta (1215) fora também publicada a “sua companheira” a Carta do Bosque (1217) [2]. Na verdade, há divergências se surgiram juntas, em um mesmo documento, ou se a Magna Carta do Bosque veio de uma ampliação em 1217. O que se conta é que além dos conteúdos conhecidos da Carta de 1215, havia também um conteúdo que tratava das questões do bosque, mas o tamanho do pergaminho não era suficiente para as cláusulas reservadas a este último assunto. Inclusive, sugere-se que o termo Magna foi utilizado para diferenciar da que veio depois, a do Bosque, que era menos extensa, sendo, nesse sentido, a de 1215, maior, Magna. Séculos depois, Edward Coke, em 1642, na obra Instutites of the Laws of England, Vol. II, relaciona o termo Magna Carta com a importância e o peso do assunto que traz, assim como a carta do Bosque, que também se chamaria Magna Carta do Bosque e que, juntas, são denominadas por Chartae Libertatum Angliae [3]. Em 1225 ambas foram publicadas, juntas, por Henrique III, formando um instrumento jurídico unificado, de modo que não deveriam ser vistas e consideradas em separado, como em grande medida repercutiram nesses oito séculos que seguiram. Em especial, aponta-se para o apagamento da segunda Carta.


A respeito do conteúdo da Carta do Bosque que se quer resgatar aqui, faz-se necessária uma breve explicação histórica. Quando da conquista da Inglaterra pelos normandos (1066), Guilhermo e seus então conquistadores passaram por cima dos costumes do bosque que prevaleciam desde os tempos anglo-saxônicos. Desse modo, restringiram o acesso e extração de madeira e expandiram o que seria o Bosque Real, cada vez mais extenso, dificultando o cultivo e utilização da terra pelas pessoas comuns. Tratava-se de uma privatização daquilo que era comum. A Carta do Bosque buscou rever esses atos reais que tinham cercado tais áreas, visando retomar o uso comum a todos, estando ligada, portanto, a direitos comunais.


Cumpre apontar que, tradicionalmente, os bosques consistiam em grandes áreas comunais como pastos, zonas úmidas (espécie de mangues), pântanos, ademais dos recursos naturais existentes. A grande questão era o uso comunitário que se fazia da terra, tratava-se de um sistema específico de uso em comunidade. Marc Bloch bem apontou tais áreas como reservas de energia, sendo, portanto, áreas com valor econômico à época. Dentre as riquezas que poderiam ser extraídas, destaca-se a madeira que se pode assimilar, do ponto de vista econômico, ao petróleo, à gasolina ou ao metal, considerando que se utilizava madeira para construção, fazer ferramentas e também para subsistência (cozinhar), calefação e luz, a partir da lenha extraída. [4]


Diante disso, a Carta impunha limites à privatização, ao cercamento dos bosques, uma preservação das tradições. Poderíamos apontar aqui, assim como na Magna Carta de 1215, o sentido de revolução que se tinha à época, atrelado ao significado em latim revolutio, que significa “ato de dar voltas”, do verbo revolutus, em que revolvere é particípio passado e significa “dar voltas”, “girar” (volvere) acrescido da ideia de repetição, “de novo”, pelo prefixo re. Trata-se de um movimento orbital, em volta de algo, que retorna ao mesmo lugar, ao início. Revolução assimilada à ideia de ruptura e drásticas mudanças é uma acepção moderna, que passou a ser utilizada após o século XVII, em grande medida, a partir da reforma protestante e das guerras religiosas que ocorreram na Europa, em especial, na Inglaterra (Revolução Gloriosa, 1688).


Nesse sentido, o retorno que se buscava era à tradição e, em termos de conteúdo, destaca-se a proibição de imposto feudal sob os bens produzidos (artigo VII); permissão de acesso aos pastos por homens livres (artigo IX); a garantia o direito de pescar nas águas de outra pessoa, junto com ela (pescarias comunais) (artigo XXXII); as liberdades concernentes ao bosque eram extensíveis a todas as pessoas livres (artigo XII) e a proibição do cercamento dos terrenos [5].


A Carta, portanto, consubstanciou em um movimento contrário ao cercamento, à privatização do comum, em nome de um coletivismo. Reivindicava-se a sobrevivência humana a partir de acesso aos recursos naturais que, pode-se dizer, séculos mais tarde foi assegurado pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966), ao dispor que (…) Em caso algum poderá um povo ser privado de seus próprios meios de subsistência (art. 1º, §2º).


É possível afirmar que a Magna Carta de 1215 perpassou, vívida, esses longos oito séculos de existência. Com enfoque patrimonialista e individualista, a sua duradoura vitalidade está ligada a escolha do olhar que se quis dar ao passado, de enaltecer tais ideais (patrimonialistas e individualistas). A partir dos grandes anseios econômicos que se tinha e a ascensão da nova classe proprietária que surgia e bem se organizava nos séculos seguintes, esses foram os valores escolhidos a serem enaltecidos para informar as grandes revoluções que se seguiram, como a francesa (1789) e a estadunidense (1776), em especial, a propriedade. Estas, foram revoluções, em grande medida, de proprietários. Tal apagamento ou recorte é semelhante ao que se fez quando da descoberta do monumento original do chamado Código de Hamurabi, em 1901, no auge do codificismo: “é um código!” Não era um código, forma esta de organização jurídica que ganha relevo apenas no século XIX. Assim, imprime-se, em ambos os casos, significados ou recortes a partir dos desejos e ideologias que se nutrem ou em que estão imbuídos em dado momento histórico.


Portanto, no caminhar da modernidade foi deixado para trás, em grande medida, os valores fortemente comunitários, as ideias de bem comum que nutriam, durante séculos, a Europa e outros continentes. Assim, lembra-se que a Magna Carta e a Carta do Bosque representam o nascimento do constitucionalismo, vistos de modo inseparáveis, não podendo, tal movimento constitucional, ser reduzido a valores patrimonialistas e individuais. E a retomada da Carta do Bosque, de tais valores coletivos, a frear os ímpetos privatistas no contexto do século XXI, talvez seja pertinente, com a crescente pressão dos desejos neoliberais que esmagam os interesses públicos por todos os lados.

Escreve-se isso no contexto brasileiro, nos primeiros dias de junho de 2024, 05 dias após a realização de uma audiência pública na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal que discute um Projeto de Emenda à Constitucional (PEC), nº 03 de 2022, que busca revogar o inciso VII do caput do art. 20 da Constituição Federal, que estabelece como bem da União os terrenos de marinha e seus acrescidos; e o § 3º do art. 49 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que estabelece o direito real de enfiteuse, que permite o direito de uso privativo e posse permanente dos bens de marinha, que pertencem à União [6]. O Projeto já foi aprovado pela Câmara dos Deputados.


Nesse sentido, esclarece-se que a faixa costeira é terreno de marinha, medida a partir da preamar médio (média das marés máximas, definida em 1831) até 33 metros para “dentro” do continente (art. 2º, do Decreto-Lei nº 9.760 de 1946). Assim, o litoral (costa marítima, margens de rios e lagoas, até onde tenha a influência da maré) são terrenos de Marinha. Diz-se de Marinha em razão de ser área de seu interesse e expertise de atuação, para salvaguardar interesses nacionais e atuar na preservação ambiental, mas são bens da União Federal, não da Marinha.


Portanto, os imóveis existentes nessa circunscrição geográfica não são organizados pela lógica do direito de propriedade. O regime jurídico que rege a relação desses imóveis com o poder público é a enfiteuse, de modo que não são proprietários, mas enfiteutas. Estes, cumprindo as regras exigidas em lei (Decretos-lei 2.490/1940 e 3.437 de 1941), têm o direito de uso privativo e posse permanente deles. Dessa forma, a propriedade permanece sendo da União e o enfiteuta paga anualmente o foro ao titular do domínio direto. Este é o regime jurídico de grande parte dos imóveis que se situam no litoral brasileiro, cuja vocação é ser bem de uso comum do povo.


O que o Projeto de Emenda à Constituição pretende é retirar tais propriedades como sendo de propriedade da União, bem como romper com o instituto da enfiteuse, nos moldes acima explicado, tornando relação de propriedade. Trata-se de possibilidade de permitir a privatização de praias no Brasil, porque dificultará o acesso de pessoas a elas, privando-as do uso. Desse modo, o Projeto de Emenda à Constituição transfere o domínio pleno desses imóveis que hoje são regidos pelo direito real de enfiteuse ao enfiteuta (art. 1º, incisos III, IV e V, da PEC 03/2022), que poderá, portanto, ser proprietário. Assim, a União deixaria de receber valores anuais bilionários, a título de foro e de taxa de ocupação.

Ademais, estabelece a transferência do domínio pleno desses bens da União a Estados e Municípios (art. 1º, inciso II, da PEC 03/2022), o que tiraria também da União a capacidade fiscalizatória. Tais transferências poderão ser feitas de modo gratuito ou oneroso (art. 1º, § II e II, da PEC 03/2022).

Diante disso é que se quer relembrar e resgatar a Carta do Bosque. Tal documento, oposto ao poder político após o esmagamento das tradições comunais, e o enaltecimento da Magna Carta (1215), de cunho eminentemente patrimonialista, nos séculos que se passaram, a apontá-la como grande marco civilizatório, serviu aos interesses econômicos que o direito ocidental abraçou e ajudou a desenvolver. Os valores patrimonialistas foram e têm sido predominantemente vencedores.


Em alguns momentos da história o resgate dos valores comuns em detrimento dos estritamente individuais afloraram. No Brasil de 2024 revela-se como importante assunto a ser resgatado, em que, cada vez mais se exacerba uma mentalidade voltada à exploração, de bens e pessoas, de índole fortemente particularista, patrimonialista e não coletivista. E, evidentemente, isso não se expressa apenas pela Emenda à Constituição nº 03/2022.


Ela é também expressão/resultado de outro sintoma brasileiro, não novo, mas cada vez mais acentuado, da classe política que não se revela política, como analisou Raymundo Faoro, em 1983. Não é política “por faltar o espírito do bem comum e do interesse público” e também não é classe, por carência de elo social e econômico homogêneo. De tal modo, fala na “soma das elites em delírio, que herdou um instrumento capaz de fabricar presidentes” e que “não forma uma classe política, nem uma elite, mas uma deslavada oligarquia, conjurada para devorar um país em falência”[7].


Que a mentalidade voltada à exploração, de bens e pessoas, fortemente particularista, ceda aos valores coletivos e humanistas no Brasil da década de 20. Resgatemos a Carta do Bosque.


[1] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6 ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 51.
[2] Sobre a Carta do Bosque, destaca-se os escritos de André Ramos Tavares (TAVARES, André Ramos. As Duas Cartas: da terra ao bosque (entre o patrimonialismo e coletivismo). Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC. n. 33. Belo Horizonte, 2015) e Noam Chomsky (CHOMSKY, Noam. How the Magna Carta Became a Minor Carta, part 1. In: The Gardian, International 2012. Disponível em: https://www.theguardian.com/commentisfree/2012/jul/24/magna-carta-minor-carta-noam-chomsky; e CHOMSKY, Noam. How the Magna Carta became a minor Carta. Part 2. In: The Guardian, International. 2012. Disponível em: http://www.theguardian.com/commentisfree/2012/jul/25/magna-carta-minorcarta-noamhomsky)
[3] COKE, Edward. Second Part of The Institutes of the Laws of England: containing the exposition of many ancient and other statutes. California: Omni Publications, 1974, p. 13.
[4] BLOCH, Marck Bloch. La Historia Rural Francesa: caracteres originales Barcelona: Editorial Crítica, 1978, p. 68-72.
[5] LINEBAUGH, Peter. El Manifesto dela Carta Magna: comunes y libertades para el Pueblo. Trad. Yaiza Hernándes Velásquez e Astor Días Simón. Madrid: Editora Traficantes de Sueños, 2013, p. 58-62.
[6] BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição n° 3, de 2022. Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/pec-39-2011-cd
[7] FAORO, Raymundo. Uma Sucessão Carnavalesca. In: A República em Transição: poder e direito no cotidiano da democratização brasileira (1982-1988). Rio de Janeiro: Record, 2018, p. 92.

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Jessica Fachin

Em Estágio Pós-Doutoral (UnB). Doutora em Direito Constitucional (PUCSP). Mestre em Ciência Jurídica (UENP). Graduada em Direito (PUCPR) e Licenciada em Letras (UEL). Professora Substituta na Universidade de Brasília (UnB) e professora Permanente no Programa de Mestrado em "Direito, Sociedade e Tecnologias" das Faculdades Londrina. Membro do IAB - Instituto dos Advogados Brasileiros. Membro da Comissão de Direito Constitucional da OAB/SP. Advogada.

3 Comments

Patricia rossi peras

Profunda reflexão com bases sólidas para se levantar questões tão pertinentes. Excelente escrita, conteúdo e texto

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Deise Marcelino

Oxalá o desejo da autora, seja também o da “classe política brasileira” (ausência de classe e falta de pensamento política). Parabéns pelo texto.

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