Coluna Valdete Souto Severo
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Manicures
Muitos ambientes de trabalho sempre estiveram alijados do campo de regulação estatal. Para tais ambientes, o Direito do Trabalho de fato nunca existiu. A (não) coincidência desses espaços com a predominância de trabalhadoras mulheres é marca indelével de nossa cultura misógina. O trabalho em âmbito doméstico é exemplo disso. Ocorre exatamente a mesma situação com o trabalho das manicures. As profissionais que se dedicam a essa atividade são, em sua maioria absoluta, mulheres. O fato de estarem à margem do sistema, sem direito ao reconhecimento do vínculo de emprego, exige dessas profissionais uma rotina extenuante, a fim de garantir-lhes uma renda mensal adequada. O resultado é o comprometimento de sua saúde física e mental. No site portal da educação, consta que “as manicures e pedicures são expostas todos os dias com alguns desses vírus que podem causar doenças”, razão da importância da higienização constante dos instrumentos de trabalho e da utilização de equipamentos de proteção (https://www.portaleducacao.com.br/estetica/artigos/49756/doencas-transmissiveis-associadas-a-atividades-de-manicure-e-pedicure, acesso em 30/8/2015).
Sem direito ao vínculo de emprego, porém, o ônus que decorre dessa necessidade de higienização e proteção acaba ficando a cargo exclusivo da trabalhadora. Soma-se a isso a dificuldade gerada pela própria natureza da atividade. Ao exigir motricidade fina, o trabalho dificulta ou mesmo impede a utilização de luvas que elidiriam o contato e evitariam, portanto, a contaminação. Às despesas com saúde somam-se outras tantas, que são indevidamente repassadas pelo empregador, como a aquisição e limpeza de uniformes e toalhas, a manutenção/higienização de seus instrumentos de trabalho ou mesmo os gastos com transporte e alimentação. A profissional, que sequer era reconhecida como tal, foi regulada pela Lei 12.592/2012 , que define “o exercício das atividades profissionais de Cabeleireiro, Barbeiro, Esteticista, Manicure, Pedicure, Depilador e Maquiador” (art. 1º), realizado por “profissionais que exercem atividades de higiene e embelezamento capilar, estético, facial e corporal dos indivíduos”. Os artigos 2º e 3º dessa lei, que estabeleciam requisitos para o exercício da profissão, foram vetados sob o argumento de que a Constituição, no art. 5º, inciso XIII, assegura o livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, não havendo razões para a imposição de restrições.
Legalização da fraude
A lei limitava-se, portanto, a instituir o “Dia Nacional do Cabeleireiro, Barbeiro, Esteticista, Manicure, Pedicure, Depilador e Maquiador, a ser comemorado em todo o País, a cada ano, no dia e mês coincidente com a data da promulgação desta Lei” (Art. 5º), ou seja, dia 18 de janeiro. Em 27/10/2016, Michel Temer sancionou a Lei 13.352, que inclui na legislação já existente dispositivos que a desfiguram, tornando-a uma nova lei. Uma lei que chancela a fraude. O artigo 1o-A é incluído para dispor que “os salões de beleza poderão celebrar contratos de parceria”, com os profissionais que desempenham tais atividades. Trata-se de legalização da fraude tacitamente tolerada há muito tempo nesses espaços de beleza. A lei chega a mencionar que “o salão-parceiro será responsável pela centralização dos pagamentos e recebimentos decorrentes das atividades de prestação de serviços de beleza realizadas pelo profissional-parceiro” (§ 2o) e realizará a retenção “de sua cota-parte percentual, fixada no contrato de parceria, bem como dos valores de recolhimento de tributos e contribuições sociais e previdenciárias devidos pelo profissional-parceiro incidentes sobre a cota-parte que a este couber na parceria” (§ 3o). Chega mesmo a dispor que a “cota-parte retida pelo salão-parceiro” é “a título de atividade de aluguel de bens móveis e de utensílios para o desempenho das atividades de serviços de beleza e/ou a título de serviços de gestão, de apoio administrativo, de escritório, de cobrança e de recebimentos de valores transitórios recebidos de clientes das atividades de serviços de beleza” (§ 4o), como se se tratasse de um aluguel de espaço e não de típica relação de emprego! A parte final desse parágrafo diz que a “cota-parte destinada ao profissional-parceiro ocorrerá a título de atividades de prestação de serviços de beleza”. Ou seja, o trabalhador receberá apenas uma parte do valor cobrado pelo seu trabalho, e essa parte se destinará a remunerar suas atividades.
Os parágrafos que seguem constituem clara tentativa de dissimular a realidade da relação do social que se estabelece entre esses profissionais e o proprietário do negócio, com claro incentivo à chamada Pjotização no § 7o, segundo o qual os “profissionais-parceiros poderão ser qualificados, perante as autoridades fazendárias, como pequenos empresários, microempresários ou microempreendedores individuais”. O § 9o torna evidente a fraude, fazendo com que as disposições legais beirem ao ridículo, pois estabelece que o profissional-parceiro, ainda que “inscrito como pessoa jurídica”, deverá ser “assistido pelo seu sindicato de categoria profissional”. Ora, se estivéssemos diante de uma pessoa jurídica e, pois, de uma empresa, sequer seria possível cogitar a necessidade de assistência. Aliás, não há sequer falar em assistência sindical para uma relação entre empresas. Ocorre que essa, sabidamente, não é uma relação entre empresas, mas sim entre uma trabalhadora, que se subordina às ordens de um empreendimento, e o(s) dono(s) desse empreendimento. Nos termos dos artigos 2o e 3o da CLT não há dificuldade alguma em perceber que se trata de típica relação jurídica de emprego.
O § 10o , quando fixa o que deve conter o tal contrato de parceria, garante “aviso prévio de, no mínimo, trinta dias” (V), tornando mais uma vez evidente a tentativa de lidar com vínculo de emprego, como se fosse outra coisa. Logo em seguida, esse mesmo dispositivo atribui à trabalhadora responsabilidade “com a manutenção e higiene de materiais e equipamentos, das condições de funcionamento do negócio e do bom atendimento dos clientes”, em evidente repasse indevido do risco do negócio, chocando-se, portanto, com as disposições do artigo 2o da CLT.
Relação de Trabalho
A relação social de trabalho não é criada pelo Direito. Ao contrário, o Direito do Trabalho surge historicamente para assimilar e moldar a realidade de exploração do capital sobre o trabalho, impondo limites que permitam a preservação de um mínimo de dignidade para quem trabalha. Portanto, o Direito do Trabalho, resultado da pressão da classe trabalhadora e da necessidade de sobrevivência do próprio sistema, não disciplina a realidade tal como a encontra, mas sim impõe uma proteção mínima (que não altera a lógica do jogo nem a posição dos sujeitos dessa relação social), contrária à tendência do livre mercado, a fim de viabilizar a própria continuidade de um sistema que, como sabemos, é portado a produzir concentração de renda, miséria e exclusão social.
Essa é uma compreensão fundamental para quem pretende interpretar normas trabalhistas que, pontue-se, só existem em função da necessidade aparentemente paradoxal de manter o sistema impondo limites à exploração que ele produz. No caso do Brasil, é muito interessante a opção dos autores da CLT em definir os sujeitos da relação social de trabalho subordinado, em lugar de buscar um conceito para essa relação. O artigo 2º da CLT refere que é empregador “a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço”. Não se trata de uma descrição da figura do empregador, mas de uma prescrição de sua conduta: o empregador é aquele que deve assumir os riscos da atividade, deve admitir (formalmente, como empregado) quem efetivamente emprega; deve pagar salário e deve dirigir a prestação pessoal de serviços. A transferência dos riscos do negócio para o empregado não descaracteriza a relação de emprego. Ao contrário, implica descumprimento de um dever fundamental. Do mesmo modo, não o descaracteriza o fato de o empregador não dirigir diretamente os serviços ou utilizar de subterfúgios, tal como o repasse de despesas aos empregados (limpeza de uniformes ou compra de produtos). Também não afasta o vínculo de emprego com o real empregador o fato de um terceiro admiti-lo formalmente. Empregador é aquele que emprega, toma, utiliza, usufrui, usa a força de trabalho de alguém. Lucra com o trabalho alheio. Esses verbos, como se pode perceber com facilidade, são sinônimos: retratam a mesma realidade, a apropriação de valor sobre o trabalho de alguém.
No caso do trabalho da manicure, excluídos aqueles instrumentos básicos de que a trabalhadora dispõe praticamente como extensão de seus próprios membros, os meios de produção efetivamente necessários para o desenvolvimento da atividade (e normalmente mais dispendiosos) como o local para o desenvolvimento do trabalho, cadeira e alguns aparelhos mais sofisticados ou simplesmente mais caros, são fornecidos por quem efetivamente emprega a força de trabalho dessas trabalhadoras, o(a) dono(a) da estética, o empregador. Ainda que não dê ordens, mesmo porque, em muitas situações sequer terá condições técnicas de fazê-lo, o empregador não deixará de ser o detentor dos meios de produção e, justamente por isso, quem emprega e dirige a força de trabalho alheia em sua atividade produtiva. Assim também a organização da agenda em nada altera a realidade da subordinação. Ao deixar a manicure “livre” para organizar sua agenda de trabalho, repassando-lhe mais essa atribuição, o empregador não cria impedimento ao vínculo de emprego. Ao contrário, pode inclusive gerar direito ao pagamento de diferenças salariais pelo acúmulo de funções, já que está obrigando a manicure a atuar também como secretária. A análise da realidade do trabalho dessas profissionais da beleza revela a clara presença dos elementos que constituem uma relação social de emprego, tornando a prática nociva, chancelada pela nova legislação, incompatível com a ordem constitucional de proteção ao trabalho humano.
A jurisprudência trabalhista, embora minoritária, está avançando significativamente no trato dessa questão social grave, permitindo que o Direito do Trabalho ingresse também nas estéticas. Em decisão proferida em 17/6/2015, no processo AIRR-1668-24.2012.5.15.0137, o Relator Cláudio Armando Couce de Menezes reproduz parte da sentença de primeiro grau, no sentido de que “tanto os agendamentos de clientes, como os pagamentos eram gerenciados pela reclamada, e não diretamente pela reclamante”, fato comum na relação de trabalho da manicure. Comum e mesmo óbvio, porque não é razoável supor que uma estética possa funcionar adequadamente, sem que essa tarefa da marcação dos clientes seja centralizada. A conclusão, naqueles autos, é de que “a prestação de serviços da reclamante como manicure, em estabelecimento que atua como salão de beleza, por óbvio está inserida na atividade fim do estabelecimento empresarial”, razão por que configura vínculo de emprego. No mesmo sentido é a decisão do processo AIRR-17078-25.2010.5.04.0000, julgado em 20/5/2015, que tem por Relator o Ministro Lelio Bentes Correa, na qual há referência expressa ao fato de que “a liberdade de horários ou eventuais ausências no serviço (para a confecção de pão, etc.) hão de ser vistas, no caso, como mera liberalidade da empregadora”.
É exatamente no exame dessa realidade que atua o potencial simbólico destrutivo da Lei 13.352/2016, sancionada por Michel Temer. Situações de evidente fraude à relação de emprego nas atividades de estética, notadamente entre manicures, existem há muito tempo. Entretanto, tais situações quando levadas ao conhecimento do Poder Judiciário Trabalhista, estavam sendo coibidas exatamente por relegarem essas profissionais à condição marginal e precarizada. A Lei 13.352/2016 disciplina a fraude, tornando pretensamente regular o que claramente se apresenta como burla à configuração de relação de emprego.
Valdete Souto Severo é Articulista do Estado de Direito – Mestre em Direitos Fundamentais, pela Pontifícia Universidade Católica – PUC do RS. Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP) e RENAPEDTS – Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social. Professora, Coordenadora e Diretora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS. Juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região. |