Política & Direito, Uma Visão Autopoiética

Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

 

 

 

Política & Direito, Uma Visão Autopoiética., de Benjamin Zymler. Curitiba: Juruá, 2002, 228 p.

 

         Entre os achados do livro de Benjamin Zymler, Política e Direito. Uma visão autopoiética,  publicado pela Juruá Editora, destaca-se, certamente, o bem sucedido empreendimento de conferir clareza à concepção de NiklasLuhmann, em sua perspectiva sistêmica referida à política e ao direito,

         Essa nota de cortesia, para lembrar Ortega y Gasset (“o sistema é a ética do filósofo, a clareza, a sua cortesia”), já se pôs em relevo por ocasião da defesa da dissertação que dá origem ao livro e coroa a pesquisa do autor. Com efeito, este foi o primeiro reconhecimento da Banca Examinadora, que presidi na condição de orientador da dissertação, uma rara reunião de destacados conhecedores da obra de Luhmann – João Maurício Leitão Adeodato, Cristiano Otávio Paixão Araujo Pinto e Raffaele De Giorgi, este último co-autor com Luhmann, da obra Teoria da Sociedade.

         De fato, nas palavras do professor de Lecce, o trabalho de Zymler se apresentava comouma reconstrução precisa, analítica, pontual, expressando conhecimento dos textos e, desde algumas perspectivas, completo”.

         Não é mesquinha essa referencia, praticamente autêntica, sendimentada em anos de compartilhamento intelectual, a ponto de o colocar, ele também mencionou no momento da arguição, num plano  “de observação daqueles que observam os observadores”, referindo-se, naturalmente, à pretensão de intérprete assumida no trabalho.

         A discussão com a Banca, portanto, antecipou a qualidade da interlocução transposta para a obra que veio a público. Embora indique o autor um objetivo mais singelo de esboçar de forma simples o que em geral se apresenta muito complexo, em Luhmann e em seus leitores, o trabalho de Benjamin Zymler acaba se constituindo um valioso texto de introdução ao pensamento sistêmico, em condições de facilitar, especialmente aos estudantes, o conhecimento da teoria autopoiética entre nós, contribuindo para que seus formuladores deixem de ser tão pouco conhecidos e estudados, salvo entre os leitores nacionais familiarizados com a sociologia jurídica e as teorias sociológicas da sociedade, entre eles o queridíssimo Cláudio Souto que estudou com Luhmann, vencendo todo o seu horror a viagens de avião.

TCU, Benjamin Zymler

         No campo jurídico, notadamente, a contribuição de Zymler é tanto mais significativa, quanto nesse campo prevalece o paradigma positivista no seu viés mais limitado, contido no legalismo normativista estatista. Lembra Celso Fernandes Campilongo, aliás, um atento analista das teorias sociais do direito (o Direito Responsivo de Selznick e Nonet; o Direito Reflexivo, de Teubner, presente em Marcelo Neves que trabalho pessoalmente com esse autor; o Pluralismo Jurídico de Boaventura de Sousa Santos; e o Direito Autopoiético, de Luhmann), o compartilhamento, na perspectiva desses autores, do “do sentimento de esgotamento das potencialidades do direito nos moldes em que vem sendo exercido pelos Estados intervencionistas”.

         A contribuição de Benjamin Zymler não se dirige, evidentemente, a resumir o que antes se realizou em Luhmann e em Teubner, este mais concentrado no Direito, como um tremendo esforço totalizador e globalizante, no plano teórico, para restaurar a integridade sistêmica da política e do direito. Mas, pontualmente e de forma precisa, por isso em muitas perspectivas completa, como assinalou De Giorgi, oferecer uma representação da teoria e, sem enveredar pelos dilemas de sua aplicabilidade em realidades não homogêneas, como a brasileira, por exemplo, colocar à disposição dos intérpretes, categorias analíticas proporcionadas pelo conhecimento e por meio delas, tal como esclareceu o autor em sua defesa pública, permitir “uma observação acerca da auto-aplicação do direito e da política”.

         Com efeito, o livro de Zymler contêm uma primeira parte sistemática na qual apresenta o modelo autopoiético em geral, sem desviar-se nas implicações biológicas de sua acepção original, a partir de Humberto Maturana, mas levando em conta, na assimilação que o modelo tem em Luhmann, sua aplicação aos sistemas sociais.Zymler destaca os aspectos fundamentais do modelo, denominado funcional-sistêmico, para em seguida, examiná-lo em suas especificações subsistêmicas, “diferenciadas funcionalmente”: o direito e a política.

         Numa segunda parte, trabalhando as interações entre os subsistemas autopoiéticos jurídico e político, eleva as suas potencialidades à condição de avaliação das possibilidades regulatórias do Direito Administrativo para responder às alterações normativas derivadas do Plano de Reforma do Estado Brasileiro.

         Reside nesse ponto, a perspectiva, em linguagem de Luhmann, de “abertura cognitiva” para liberar as condições de possibilidade de aplicação da teoria, orientada para a estruturação de sistemas de decisão e de seu reconhecimento, tanto mais que em contexto de crise regulatória, de tensões de governabilidade e de sobrecargas para a democracia, num crescente processo de transferência de competências do Estado para outros setores sociais. Zymler se detêm no exame desse refluxo, a um tempo político e jurídico, tomando como referencia de análise a emergência do chamado Terceiro Setor, pela mediação dos institutos “contrato de gestão” e “termo de parceria”.

         O singular na abordagem de Benjamin Zymler, que a diferencia da leitura de adesão de Marcelo Neves e de Willis Santiago Guerra Filho, adeptos reconhecidos do grande mestre, é a recusa à irrelevância de intervenção do sujeito humano como protagonista do processo de criação do direito. Em Luhmann, para valer-se da reafirmação dessa postura na categórica manifestação de De Giorgi (por ocasião da defesa da dissertação) a função do direito é produzir direito, configurando-o num sistema que é representação de algo que nada tem a ver com o sujeito (“o sujeito é um homem particular que tem um passaporte, um endereço, uma profissão”).

ESMP, Willis Santiago Guerra Filho

         Eu já tinha feito circular uma primeira versão deste texto e, prodígio do sistema instantâneo da comunicação em rede, o querido Willis Santiago Guerra Filho, logo me fez um reparo: “Querido José Geraldo, não me reconheci na referência que faz a mim nesta resenha – meu livro Autopoiese do Direito na Sociedade Pós-Moderna, já pelo título, indica não se tratar de mera exposição adesiva e como foi reconhecido em mesa a respeito no último congresso da ABRASD contém já o enfoque que posteriormente veio a ser consagrado na Europa como sendo o de uma Autopoiese Crítica. Ao mesmo tempo, para evitar uma discussão que considero de menor relevância, substitui na reedição do ano passado a qualificação da sociedade contemporânea por “informacional”. E quanto ao que penso sobre o papel do sujeito na criação do direito, remeto ao meu livro, publicado em parceria com minha atual esposa, Paola Cantarini, intitulado Teoria Poética do Direito. Fraternal abraço!”.

         Claro que procurei explicar que o uso do termo adesão acabou sendo impróprio e que não o fiz para indicar filiação mas para atribuir a devida consideração a um autor de peso. Tal qual, expliquei, eu próprio, com a pretensão de ser um dialético, não deixo de homenagear um autor – Luhmann – sistêmico.

         Assim que, agradecendo o distinguo do querido Willis, mais ainda o vi como relevante para orientar a leitura do livro sobre o qual me debruço neste Lido para Você.

         Mais ainda, em complemento às observações de Willis Santiago Guerra Filho, e com a gentileza editorial de Carmela Grune que permite a revisão do texto original republicando-o, trago a anotação que o querido faz, remetendo a sua“Teoria da Ciência Jurídica, pela Saraiva, 1a. Ed., onde exponho o assunto no capítulo final, de 2001. Já o meu artigo em que o tema foi abordado pela primeira vez no Brasil (segundo a Eliane Junqueira, no livro dela de História da Sociologia Jurídica no Brasil) saiu na RBF em 1991, com o título “O direito como sistema autopoietico”. Lá já faço a distinção das abordagens de Luhmann e Maturana, o que ainda na segunda-feira passada foi objeto de debate em banca de tese de que participei na UFBA. Vou encaminhar o que de último saiu meu sobre o tema, já no contexto do que em publicação internacional de que participei (LuhmannObserved, pela Palgrave) os editores entenderam que se trata de uma reviravolta na virada autopoietica no sentido da autoimunidade”.

Volto aZymler para dizer que ele faz a crítica à ocultação do sujeito no universo autopoiético e, sem perder a perspectiva reflexiva, em sentido sociológico, resgata pela leitura de Boaventura de Sousa Santos o que o notável sociólogo português chama de “princípio da comunidade”que fundamenta a dinâmica solidária de subjetividades que movem o social na trama complexa do Terceiro Setor, problematizando, como alternativa aberta, levada à conclusão de seu trabalho, o lugar do humano. Como devem ser conduzidos os destinos humanos – ele indaga – em um mundo de comunicações, pensamentos e vida, sem lugar para a razão?”.

         Questão aberta, a que o autor nem responde e talvez, não deva mesmo responder, penso que ela abre ensejo para um debate fundante no pensamento jurídico crítico, atento à condição pós-moderna. Não se trata aqui, conforme a tradição filosófica de impregnação iluminista, de pensar o sujeito que reflete uma visão de mundo dominada pela racionalidade e a autotransparência do “pensar em si mesmo” que deseja “ser sujeito”, o legislador de si próprio, portanto, segundo Kant. Mas, considerar as condições de intersubjetividade não substancial, mas relacional, do fazer-se sujeito, no processo mesmo no qual este se revela e se realiza.

         Franz J. Hinkelammert, desde uma perspectiva de libertação (La VueltadelSujeto Humano Reprimido Frente a laEstrategia de Globalizatión, Colloquium2000, Faith Communitiesand Social MovementsFacingGlobalisation, Hogeismar, Alemanha), sugere, no que estou de acordo e creio que respondendo bem ao problema posto por Zymler, que o sujeito não é um a priori do processo, senão que resulta como o seu a posteriori. Supõe, portanto, uma intencionalidade solidária, no agir protagonista dos novos sujeitos em alargamento das possibilidades institucionais e da criação de espaços de vivencia da “sujeiticidade humana”.

         Sem esse pressuposto, creio que a isso nos leva pensar o trabalho de Benjamin Zymler, a prática social não valida a regulação sistêmica, resultando numa “colonização do mundo da vida”, como designa Habermas, com a destruição das relações sociais das quais deriva como representação, o sistema.

Algo que estamos assistindo entre perplexos e incrédulos hoje no Brasil. E não apenas em âmbito restrito, com surtos diários de insanidade, contaminando o agir político sistêmico, de modo muito semelhante ao que levou há cem anos, ao impedimento do Presidente Delfim Moreira.

Noutros planos também, inesperados, para descrédito da plataforma de sustentação do balanço de poderes que assegura o bom funcionamento de uma República. Ali onde a salvaguarda da Justiça e do Direito mais deveria ser cultivada, como conhecimento e vocação, assiste-se igualmente esse processo de destruição sistêmica, para adotar a linguagem luhmanniana.

E de modo não colonizador, mas canibalizador, necrólifo. Como aquelas bactérias famintas que  entram no banquete da decomposição. Elas são primeiras a avançarem na carne vindas da flora intestinal e da mucosa respiratória e já vivem no organismo. Para continuarem vivas, essas bactérias invadem os tecidos e os devoram na expectativa de continuarem vivas e manterem o sistema. Se degradam com ele.

O Direito emancipatório, o direito alternativo, o direito achado na rua, são drogas sim, mas para combater a necropolítica que se instala no sistema democrático e de justiça. Operam para extirpar o tumor do velho sistema enquanto contribuem para a emergência de outro sistema, autopoiético, mais solidário, mais justo, mais livre, não autoritário, não despótico, visceralmente democrático.

        

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

 

                                   

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