Pela utilização de metodologias e hermenêuticas transgressoras em Direito

 

Coluna Poiesis – Encontros da Literatura e do Direito

 

 

 

 

Busca-se aproximar o Direito da Filosofia e das Artes, em especial das tragédias gregas e da poética, em uma visão interdisciplinar do Direito, ante a consideração da indispensabilidade da interdisciplinaridade, e do emprego de uma metodologia de pesquisa em direito inclusiva, fertilizando-se os diversos campos do saber, reconhecendo-se a necessidade do estudo da história, do Direito comparado, da Filosofia e da teoria do direito, a fim de se obter um conhecimento científico do Direito.

Ao se reconhecer a necessidade da interdisciplinaridade no Direito, há o reconhecimento da historicidade do fenômeno jurídico e da necessidade de um estatuto interdisciplinar para o direito, com fundamento em autores como Willis Santiago Guerra Filho e F. Ost, retomando Gaston Bachelard, permitindo-se uma articulação de saberes, postura adequada ao se buscar uma análise crítica do direito, para além de zetética. Trata-se, pois de uma articulação de saberes, correspondendo a uma articulação dos pontos de vista interno e externo, incitando a um diálogo antes que a uma dominação.

Foto: Unsplash

A tragédia grega revelaria um modo de presença do sujeito no mundo que teria sido calado com e pelo advento da filosofia e da ciência moderna.

“Antígona” de Sófocles é considerada por Gunther Teubner como a única capaz de uma crítica radical do direito, considerando, os paradoxos como problemas inerentes à realidade dos sistemas sociais, refutando as correntes críticas do Direito como proposta para gerir os mesmos, por entender que estas seriam apenas um esforço de desconstrução do direito, mas que não chegam a ser uma crítica radical, visto que uma crítica radical já fora realizada na obra de Sófocles, nas palavras de Antígona, que exprime o paradoxo do direito ao se levantar contra o decreto de Creonte, que proíbe o enterro de seu irmão. Nas palavras de Teubner:

Antígona aplica o código jurídico (binário-lícito e ilícito) ao próprio jurídico quando sustenta que a pretensão de Creonte de definir aquilo que é legal ou ilegal, e em si mesma ilegal (O direito como sistema autopoietico. Tradução e prefácio de Jose Engrácia Antunes, Lisboa: Fundação Gulbenkian, 1989, p.18-19).

Antígona seria a representante da parresia (coragem da verdade, fala franca, tudo dizer – Foucault), uma parresiasta, fundamento da democracia, do direito, da política, do saber e do conhecimento, e que traz a dimensão do cuidado de si, do outro e o conhecer a si mesmo, os quais também estariam presentes na dimensão ética de que Antígona seria o exemplo, da ética da psicanálise com seu imperativo categórico, segundo Lacan, do não ceda de seu desejo, negando toda ética universalista e a favor da ética individual, situacional, mas sobretudo do cuidado de si e do outro (Willis S. Guerra Filho). A parresia deve ser entendida como o dizer-a-verdade sobre si mesmo, representando na cultura antiga (antes do cristianismo) uma atividade conjunta, com os outros, mais precisamente uma atividade com o outro, uma prática a dois, trazendo a questão de suma importância para o Direito, da alteridade, da diferença e da outricidade (Foucault, “A Coragem da Verdade”).

A fórmula de contingência, seguindo-se a Teoria Sistêmica de Niklas Luhmann e seus desdobramentos desenvolvidos por Willis S. Guerra Filho, no caso do direito, é a justiça, ou seja, o direito sem justiça já deixou de ser direito e virou um simulacro, uma comédia de má qualidade, não se revestindo sequer mais de máscaras para provocar a ilusão, e sequer tendo o poder das tragédias gregas de provocar o assombro filosófico, um dos passos para a proposta de “ética do absurdo” de Camus, já que partindo-se do assombro, atitude tipicamente filosófica, pode-se chegar a atravessar o labirinto que leva para fora de tal simulacro ou matrix.

Tercio Sampaio Ferraz Jr. compara “Antígona” com a obra shakespeariana “O mercador de Veneza”, abordando a relação entre Direito e justiça, afirmando que em “Antígona” o Direito não se constitui sem justiça (princípio constitutivo) enquanto que na obra de Shakespeare a justiça é um princípio regulativo[1].

Neste sentido, seguindo-se os ensinamentos de Willis S. Guerra Filho considerando-se o princípio da proporcionalidade como a maior expressão da fórmula de contingência na atualidade, sendo exatamente o que faltou tanto por parte de Creonte como de Antígona. Ambos são excessivos e agiram com hybris, não são opostos e sim semelhantes, levando a uma catástrofe, da cidade e de si mesmos. O governo implodiu. Antígona transgride o decreto injusto de Creonte que proibia um dever sagrado, religioso e familiar de enterrar seu irmão Polinices, e é condenada à pena de morte. É encontrada enforcada na caverna onde foi determinada sua prisão, tendo do lado seu noivo Hêmon, o qual em seguida vai tentar assassinar e se vingar de seu pai Creonte, ferindo-se de morte. Antígona exprime o paradoxo do Direito, destruindo a quem se propunha proteger.

A propósito de “Antígona”, haveria aí um exemplo de crise autoimunitária, quando aquele que deveria defender o direito o ataca (o Estado – Creonte – sem qualquer compromisso com a justiça, com os costumes da época).

A tragédia Antígona nos levará a questionar quando o Direito poderá ser tido como uma doença autoimune, quando ocorre a perversão do Direito, se ocorre apenas por sua alteração constante, por exemplo. Ou quando nunca muda e perpetua o “status quo” e dogmas inquestionáveis. A partir de que momento o direito passa a ser uma doença autoimune, ou sempre assim se apresenta desde sua origem, já nasce autoimune, já que sempre ligado à violência, e ao poder? O direito ainda se socorre do código binário –lícito e ilícito ou já sofre não apenas a influência do meio externo (irritações-acoplamentos estruturais), mas a modificação do seu próprio código, ou a superposição de outros códigos, como o código da economia (ter-não ter) ou da política (poder)?

Ainda podemos falar em ser o direito autopoietico (teoria social sistêmica de Luhmann), com características da autonomia, fechamento estrutural e abertura cognitiva, ao que se torna indispensável o papel da doutrina e teoria críticas, quanto ao quesito da auto-observação própria dos sistemas autopoieticos? Quais as consequências do direito não ser mais autopoietico (auto-observação, unidade, fechamento operativo), e sim alopoietico?

A crise autoimunitária do Direito, que é também epistemo-ecológica, quando ocorre a perversão do Direito, vem sendo trabalhada por filósofos como Willis Santiago Guerra Filho (Direito), Jacques Derrida (Religião), Roberto Esposito (Política), revelando as contradições e antinomias do Direito.

A crise autoimunitária revela-se então também como uma crise de desdiferenciação, como corrupção sistêmica. Ocorre a crise autoimunitária como corrupção sistêmica quando a ordem jurídica não consegue mais decidir os conflitos com base no código binário direitonão direito (lícito-ilícito), passando a utilizar outros códigos, de outros subsistemas, como ter-não ter, ou poder-não poder, ocorrendo a alopoiese do direito.

Marcelo Neves explica o conceito de alopoiese do direito atrelado ao conceito por ele desenvolvido de “Constituição simbólica”, quando há uma expansão da esfera do político em detrimento do desenvolvimento autônomo de um código específico de diferença entre lícito e ilícito. Isto aconteceria no caso de leis supraconstitucionais ou de textos constitucionais de exceção (Marcelo Neves. “A constitucionalização simbólica”. Ed. Acadêmica, p. 130 e ss.). Com relação à legislação simbólica sustenta Kinderman (1989:270), que se trata de um mecanismo de negação da diferença entre sistemas político e jurídico, em detrimento da autonomia do último. É colocada em cheque a autonomia do Direito. Afirma Marcelo Neves que ocorre a politização dejuridicizante da realidade constitucional, respaldada nas relações econômica e parafraseando Habermas: trata-se da colonização política e econômica do mundo do Direito (obra citada, p. 147 e ss.). A constitucionalização simbólica como alopoiese do sistema jurídico seria um problema típico do Estado periférico.

A exata compreensão da “ratio essendi” da norma jurídica concreta permite a verificação da disfuncionalidade do exercício da posição jurídica que contrarie o espírito, o sentido (razão de ser) da própria norma. No caso do decreto de Creonte, referido direito estaria desde o início correspondendo à sua “ratio essendi”, de dominação e opressão, em sua totalidade? Portanto, questiona-se se aqui haveria ainda que se falar em uma disfuncionalidade neste sentido, ou o direito já estaria cumprindo com seu objetivo tão somente? Ou haveria tal disfunção com relação ao decreto em face do direito divino, inderrogável e eterno e vinculado à Justiça e à verdade?

Trata-se de verificarmos a questão contemporânea da corrupção do Direito pela lei, e por outros códigos de outros sistemas sociais, do estado de exceção, da força de lei sem lei, da morte do Direito na esteira da morte da TGD – a Teoria Geral do Direito, substituída pela Teoria do Direito, como vem postulando desde 1990 Willis Santiago Guerra Filho -, com foco na tragédia grega “Antígona”, parte da  denominada “trilogia tebana” de Sófocles, em especial com foco no conflito Antígona e Creonte, já que o Direito sem Justiça, deixou de ser Direito. A ideia de proporção como a origem da justiça está na ideia de equilíbrio, como pressuposto de todos os pactos e de qualquer Direito.

Na obra “Malfazer, dizer verdadeiro”, Foucault vai trabalhar com a análise das tragédias gregas, bem como na obra “Governo dos vivos”, com foco na questão da parresia, sendo fundamental o resgate de tal estudo e da ligação na verdade indissolúvel entre Direito, filosofia e artes (que foi rompida com o formalismo e humanismo da modernidade), a fim de permitir uma cognição mais aprofundada do direito e do ser humano, um estímulo ao pensamento crítico.

As tragédias trazem ínsitas questões fundamentais, vinculando-se, pois, à abordagem zetética, da abertura em todas as direções das questões, ao contrário de uma postura positivista, legalista e formalista do direito e do conhecimento, e sobretudo, que seja crítica. Neste sentido questiona-se:

  • O que somos nós os humanos? O que é o direito? O que é o direito positivo? Como queremos viver? O que pode um corpo?
  • O Decreto de Creonte é legítimo, e pode ser considerado Direito? A conduta de Antígona de resistência e transgressão é legítima? Qual o papel da transgressão no Direito e como as artes podem ajudar o Direito, em sua humanização, já que a função da arte é justamente de transgressão e de propor o novo, a criatividade (autopoiese).
  • Quais seriam as condições de um discurso transgressivo? É possível uma transgressão efetiva na clausura do sistema (fechado operacionalmente e aberto cognitivamente)? Uma filosofia da transgressão como um sim à vida e à liberdade, em busca da realização do humano?
  • Como contestaremos o poder? Através da fidelidade a velhos costumes orgânicos ameaçados pelo Poder, ou sendo mais violentos do que o próprio Poder? (Slavoj Žižek, “O amor impiedoso (ou: Sobre a crença”, p. 44-45)).

Busca-se, destarte, ao colocar tais questões promover o questionamento e o pensamento crítico, um pensamento desterritorializante, bem como ir em busca de explicações, pela mobilização mais ampla possível de conhecimentos que possam ajudar a obtê-las. O objetivo último, portanto, é de natureza pedagógica e investigativa. Pretende-se vir a contribuir para o desenvolvimento de uma teoria/prática sensível à criatividade, à imaginação criativa e à reflexividade inerentes a toda coletividade, na expectativa de despertar o mesmo em quem mais se disponha.

Antígona é retratada ao mesmo tempo como parresiasta e “homo sacer”, como rebelde, anárquica e revolucionária, dionisíaca, no nosso entender. Neste sentido, Willis S. Guerra Filho entende ser Antígona revolucionária e heroína com sua ação transgressora; anarquista segundo Creonte, louca segundo o Coro, rebelde mas não revolucionária segundo Slavoj Žižek, por lhe faltarem os elementos de comunidade e solidariedade, criminosa e rebelde segundo Judith Butler, assumindo a linguagem do Estado.

Tercio Sampaio Ferraz Júnior[2] foi quem pioneiramente no Brasil trouxe a diferenciação entre dogmática e zetética, utilizando-se de terminologia proposta por Viehweg, afirmando não haver entre estas uma separação radical. Enquanto que a dogmática se foca, segundo tal entendimento, no ato de opinar e ressalvar certas opiniões (dokeín), as questões “zetéticas”, inversamente, colocariam em dúvida tais meras opiniões (zeteín). As questões “dogmáticas” são tipicamente tecnológicas, com uma função diretiva explícita, configurada como um dever-ser. 

A zetética como forma de pensamento jurídico foi desenvolvida por Theodor Viehweg na intenção de constituir uma ciência jurídica completa, distinguindo esta da dogmática, com uma referência explícita à concepção de Gustav Hugo, mestre de Savigny, sobre a ciência do direito, revelando-se num contexto de superação do modelo de ciência jurídica normativista. Haveria um aspecto-resposta e um aspecto-pergunta, sendo a ênfase em um ou outro que confere o caráter dogmático ou zetético da investigação, como bem esclarece Willis Santiago Guerra Filho[3]. Segundo Guerra Filho, na formulação de Viehweg à teoria dogmática é atribuída uma função social, de regulamentação do comportamento de acordo com o direito, com o mínimo de perturbação, objetivando, portanto, influir nesse comportamento e no julgamento dele para a manutenção da ordem social. A teoria zetética teria função primariamente cognitiva, não estando condicionada ao atingimento de uma resposta coerente com os dogmas inquestionáveis.

A importância da zetética se revela na compreensão filosófica e crítica que se pretende aqui esboçar acerca do direito e da justiça, envolvendo a análise da tragédia grega “Antígona” de Sófocles, em uma linguagem e postura abertas e interdisciplinares, características próprias da zetética, aproximando-se o Direito da Filosofia e das Artes.

Tércio Sampaio Ferraz Junior esclarece que, na “Antiguidade, o saber sobre o Direito se referia à técnica e à arte (téchne e ars), utilizando-se os romanos da expressão “ars boni et aequi”. Aí temos a ars, que é o jus, como arte do bom e do equitativo e com fundamento na filosofia grega[4]. Enquanto ars, o Direito é saber prático, ligando-se à “phrónesis”. Seguindo tal linha de raciocínio, a téchne da dogmática jurídica hodierna deixa de nascer do conhecimento verdadeiro. O crescimento distorcido da técnica, apartada da virtude enquanto realização da verdade na ação, traz a questão do problema de fundamentação. Conceber o Direito de forma instrumental, como um meio para a realização de um fim faz com que o Direito careça de uma finalidade[5], devendo ser buscado um fundamento resistente a mudanças, que assegure ao Direito um sentido persistente. Desde a Antiguidade se buscou essa estrutura estável na ideia de Justiça”[6].

Por sua vez, em texto intitulado “A validade das normas jurídicas”,[7]
esclarece Tercio Sampaio Ferraz Jr. que a questão da validade jurídica das normas e do ordenamento jurídico é uma questão zetética, portanto uma questão aberta.

A tragédia grega Antígona trata da questão da validade do direito produzido de forma ditatorial, sem comprometimento com a justiça, com a proporcionalidade, e a questão da fundamentação superior ao Direito, sua ligação com valores, com a ética e com a Filosofia do Direito. Podemos assim vislumbrar outra possibilidade para o Direito, juntar-se a justiça à beleza, em busca de uma justiça poética, com foco na proporcionalidade.

Trata-se da questão do que é o direito, do que pode ser considerado direito, e se uma lei seria ainda considerada legítima, e, portanto, obrigatória, se desconsiderasse por completo a realização da justiça, que afrontasse a dignidade humana eou o princípio da proporcionalidade, que deveria ser utilizado sempre quando da existência de conflitos entre direitos humanos e fundamentais, a fim de se preservar a dignidade humana. Trata-se sobretudo do que é o ser humano, de como queremos viver, questão ontológica e, pois, filosófica por excelência.

Busca-se pois, um novo modo de refletir sobre o papel da interpretação (criação) do Direito, adotando-se como marcos teóricos o reconhecimento do caráter imaginário do conhecimento e do direito, bem como a natureza ficcional e poética do direito, aproximando-se das artes, do corpo e da vida, em busca de uma hermenêutica e críticas radicais (“O conhecimento imaginário do direito” e “Teoria poética do Direito”- Willis Santiago Guerra Filho).

Trata-se de questionar ao lado de Antígona acerca da legitimidade e autoridade de Creonte, se poderia este exercer legitimamente o poder em Tebas como tirano não basileu (strategos), sendo denominado por Antígona de general, e não herói (característica necessária do tirano). Trata-se de verificar se a sanção previamente prevista para um crime poderia ser alterada pela simples vontade de Creonte, após a prática de um crime.

Foucault ressalta a importância da crítica e das experiências-limite, tais como aquelas apresentadas na literatura de Blanchot, Artaud e Bataille, levando-nos a interrogar o que é o ser humano e o que é o ser humano atualmente. Neste sentido tem-se a importância do estudo da tragédia “Antígona” já que esta é o exemplo de uma morta-viva, vivendo além da vida e além da morte, além da “até”, local onde o ser humano não conseguiria ficar por muito tempo, além, pois, de todo o limite humano, ou seja, vivendo em uma situação-limite e extrema.

Antígona teria antecipado sua própria morte, já que teria praticado um ato de suicídio, sendo bem jovem ao se colocar em tal situação de perigo de vida, ao realizar por duas vezes consecutivas o ato simbólico de enterro de seu irmão Polinices, praticando uma espécie do que Tércio Sampaio Ferraz Jr. denomina de “a antecipação da própria mor­te na angústia do ser livre”, mas com um sentido de criação: do nada que não é (não sujeito de direitos) a  algo que é (início da subjetividade – poética como dessubjetivação, e da longa estrada que leva à concretização dos direitos subjetivos).

Antígona atuou conforme seu desejo, incestuoso e de morte, em uma situação limite, onde não se pode suportar por muito tempo, deixando o ser ser, e colocando em questão os limites, a validade, a legitimidade do direito positivo, imposto, em confronto com a questão da justiça.

A tragédia grega nos aproximaria de situações limite como a vivenciada por Antígona, e a de um Direito positivo com características tirânicas, muito longe dos costumes, tradições e leis divinas, justas por excelência, trazendo questões de suma importância para a compreensão do Direito e da Filosofia atualmente, em épocas em que vivenciamos a generalização do estado de exceção nas sociedades ocidentais.

Como bem afirma Ari M. Solon postula-se por uma hermenêutica radical, uma subversão dos sentidos, já que a própria investigação etimológica revelaria, em suas raízes, a conexão da hermenêutica com o subversivo, com o insurgente, comprometida com o revolucionário.

Neste sentido, ao propormos a subversão de conceitos e sentidos como certos e verdadeiros de forma congelada e absoluta, a favor do movimento, da dúvida, do questionamento, de uma visão científica e dogmática do direito, mas não limitada aos dogmas e mitos como da neutralidade científica e da superioridade da forma de racionalidade cartesiana, formalista e técnica; nós somos a favor de um direito ligado à experiência e à vida, mas sem cair em dogmatismos, mas sobretudo, com uma visão filosófica, sendo esta atitude, por ser também naturalmente poética, típica e propícia ao estudo do Direito[8].

Não se trata de apenas teorizar, sem qualquer comprometimento com a transformação prática da realidade, mas no sentido de possibilitar um interpretar melhor, com maior profundidade e crítica para depois ser possível uma real e concreta modificação da realidade, com bases e fundamentações mais próprias e alicerçadas. Assim em busca da justiça social, em vez de postular pela defesa da propriedade privada, como para Larenz, com Hegel, pois para Solon, “tudo culmina com Hegel, o filósofo da justiça como amor” (Solon). Um retorno ao romantismo de Jena, divulgado na Revista Athenäum, onde F. Schlegel lançaria primeiramente as bases da concepção estético-filosófica deste romantismo teórico, afirmando a união da poesia com a filosofia.

Nas palavras de Solon:

(…) na filosofia o caminho para a ciência só segue pela arte, como o poeta, ao contrário, somente pela ciência pode vir a ser artista”; e, no mesmo sentido: “quanto mais a poesia torna-se ciência, tanto mais torna-se ela também arte. Se a poesia deve torna-se arte, deve o artista ter de seus meios e de seus fins, de suas barreiras e de seus objetos meticulosa compreensão e ciência; assim o poeta deve filosofar sobre sua arte”. Era dizer que a arte deveria se tornar ciência, e a ciência, arte; poesia e filosofia deveriam, para os românticos de Jena, tornarem-se um só.[9]

Antígona revela, assim, a intensidade de uma radical intenção, por assim dizer, na qual todo interior é um fora de si, um ser arrancado de si em se expondo a ser. Trata-se de uma intimidade ek-stática própria a Eros e ao erótico, a dimensão fundadora do primeiro, mais poderoso e mais antigos de todos os deuses.

O Direito possui uma ligação com as artes e com a filosofia, ligação indissolúvel, a qual na modernidade com o formalismo (e com o humanismo) foi rompida. Esta é uma visão alternativa à visão tradicional do Direito como mera ciência ou, menos que isso, mera técnica, puro, cartesiano, favorecendo aquela do Direito como poiético, como criação, sendo-lhe essencial o estudo das tragédias gregas, e portanto, um retorno à Antiguidade clássica. A função de transgressão das artes passa a ser entendida como necessária para a autopoiese do Direito. A arte nos permite o assombro, o êxtase, ter de volta a humanidade perdida, a reumanização do Direito, permitindo-se acessar novos usos e possibilidades para ele.

 

[1]  Tercio Sampaio Ferraz Júnior, “A verdade nada mais que a verdade, in O estudo do imaginário, vol. 1”, coordenação Willis Santiago Guerra Filho e outros. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016. Verbis: Ou, nas palavras de Walter Benjamin, o herói trágico estremece ante o poder da morte, mas como algo que lhe é familiar, próprio e destinado. A sua vida desenvolve-se a partir da morte, que não é o seu fim, mas a sua forma, pois a existência trágica só chega à sua realização porque os limites, os da vida na linguagem e os da vida no corpo, lhe são dados ab initio e lhe são inerentes. Por isso a obstinação do herói é uma obstinação muda, que resgata com sua vida o direito ao seu silêncio. Tome-se, a propósito, como paradigma, duas heroínas de duas peças teatrais notáveis na tradição ocidental: Antígona e Pórcia (Shakespeare, O Mercador de Veneza). Antígona enfrenta o tirano com as armas de uma consistência radical. Ela tem um ponto defensivo que a sustenta e sustenta seu comportamento até o fim. Uma espécie de ethos da verdade, que não abre espaço para nuances e empurra o opositor para a falsidade. Daí um mos sem retorno, a moral que resiste e condena. E que a leva à solidão e à morte. Pórcia também tem um ponto. Mas parte do ponto de seu adversário. Com isso ganha nuances que, pouco a pouco, degradam o ponto adversário. Sua verdade é um argumento que se revela ao final, pois no começo tudo é sombra. Inclusive ela mesma quando se apresenta como um homem na qualidade de advogado (violando as regras da época que proibiam mulheres de agir em juízo). (…). A questão pode ser discutida, na implicação que os paradigmas têm para as relações entre direito e justiça. A justiça enquanto código doador de sentido ao direito é, no paradigma Antígona, um princípio constitutivo: sem justiça o direito não se constitui, é inteiramente destituído de sentido. No paradigma Pórcia, é um princípio regulativo, não constitutivo. Ou seja, embora o direito imoral seja destituído de sentido, isto não quer dizer que ele não exista concretamente.

 

[2]   “A ciência do Direito, p. 45 e ss.”, “Introdução ao Estudo do direito”.

[3]   Willis Santiago Guerra Filho.“Teoria da Ciência jurídica”, editora Saraiva, p. 52, 53.

[4] “Introdução ao Estudo do Direito:técnica, decisão, dominação”, 3ª. Ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 343.

[5] Ibidem, p. 344.

[6] Ibidem, p. 347.

[7] Tercio Sampaio Ferraz Jr. “A validade das normas jurídicas”, Sequência nº 28, junho/94, pag. 72.

 

[8]   Ari Marcelo Solon. “Hermenêutica radical”, 1.ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2017, p. 03.

[9]   Ibidem, p. 14 e ss.

Paola Cantarini. Possui pós graduação em direito empresarial, direitos humanos, direito constitucional, mestre e doutora (Filosofia do direito) pela PUC-SP com doutorado sanduíche na Uminho (Braga, Portugal), doutora pela Unisalento (Lecce, Itália). Visiting Researcher na Universidade Scuola Normale de Pisa, com tutoria do professor Roberto Esposito. Pós doutorado na Univ. De Coimbra -CES, Tutor Boaventura de Sousa Santos. Pós doutorado na Unicamp, tutor Oswaldo Giacoia. Possui diversos artigos jurídicos e filosoficos e cinco livros publicados com destaque para “Teoria Poética do Direito com coautoria de Willis S. Guerra Filho e Teoria Erótica do direito.
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