O retorno do manto tupinambá: repatriação de bens culturais como realização de direitos humanos dos povos indígenas do Brasil.

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

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MARIA ANTÔNIA MELO BERALDO. O retorno do manto tupinambá: repatriação de bens culturais como realização de direitos humanos dos povos indígenas do Brasil. Trabalho de conclusão de curso apresentado à Faculdade de Direito da Universidade de Brasília como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito. Brasília: Faculdade de Direito, 2024, 97 fls.

                    

Com muita satisfação me incumbi da orientação do trabalho monográfico de Maria Antônia Melo Beraldo, tanto mais seguro nesse processo quanto apoiado na firme e qualificada co-orientação de Renata Carolina Corrêa Vieira, muito reconhecida por sua atuação no campo dos direitos indígenas.

Mas a minha satisfação não se consumou na excelência da monografia elaborada, apresentada e defendida. E sim porque ela consumava um percurso que faz o entusiasmo de um professor para sustentá-lo na continuidade de seu ofício, nutrindo sua vocação.

Acompanho Maria Antônia desde seu ingresso no curso de Direito da UnB. Minha aluna já no primeiro semestre do primeiro ano, na disciplina Pesquisa Jurídica, logo seria selecionada para a equipe de monitores nos semestres seguintes, coordenando o grupo, e se investindo das atribuições de apoio à regência da disciplina, a ponto de integrar ao grupo premiado de seu formato quando a sua avaliação como metodologia ativa de ensino de direito foi objeto de premiação em concurso nacional.

Com efeito, confira-se no repositório de práticas premiadas da Fundação Getúlio Vargas (São Paulo) – https://ejurparticipativo.direitosp.fgv.br/portfolio/pesquisa-qual-direito – a descrição do desenho da disciplina Pesquisa Jurídica (1º semestre do curso de Direito da Faculdade de Direito da UnB), regida pelo professor proponente e equipe e, seguindo o roteiro programático (Programa e elementos metodológicos), se habilitam, com autonomia cognitiva, teórica e ética, “a desentranhar dos discursos teóricos e técnicos operados, as pré-compreensões neles inscritas, consciente ou inconscientemente”:

Projetada para o desempenho regular de curso, a atividade foi atingida dramaticamente pela pandemia de Covid-19. Inserida nesse contexto, a atividade passou a ter dupla finalidade: acadêmica e subjetiva.

De um lado, proporcionou a/ao estudante a reflexão teórica e epistemológica sobre os fundamentos da disciplina, e de outro, favoreceu o acolhimento, na medida em que proporcionou um espaço orgânico de troca de experiências e vivências por meio da atividade “Cartas da Quarentena”, em que as e os estudantes foram convidados a refletirem criticamente a conjuntura vivenciada, compartilhando suas angústias, dores, esperanças e sentimentos sobre o momento atual. Ao escreverem cartas ao grupo, as/os estudantes foram estimulados a manterem o vínculo coletivo durante o período e não se dispersarem ou se sentirem desamparados no começo da sua vida acadêmica, tendo em vista que a disciplina Pesquisa Jurídica é ofertada no primeiro semestre do curso.

O principal objetivo pedagógico é o de exercitar autoria em diálogo com o social, seguindo o que indica o professor Pedro Demo (DEMO,Pedro. Educar pela Pesquisa. Campinas: Editora Autores Associados, 1996), segundo o qual o aprendizado se apoia em dois fundamentos: a pesquisa e a autoria.

Essa a ementa que consta do portfólio para o Prêmio Destaque na 3ª Edição do Prêmio Esdras de Ensino do Direito (2020). Pesquisa em (qual) direito. Autor(a/s):  José Geraldo de Sousa Júnior, Eduardo Xavier Lemos, Renata Carolina Corrêa Vieira, Maria Antônia Melo Beraldo, Julia Caroline Taquary dos Reis, Rafael Luis Muller Santos, Juliana Vieira Machado e Lucca Dal Soccio.

Maria Antônia, com efeito, exercitou (tem exercitado) uma experiência acadêmica diligente, sem nenhum desperdício, com razão e sensibilidade. Desde as atuações nos jogos – Hidra Cheer, no time de cheerleading da Olímpia, na Faculdade de Direito –passou pela atuação política no Centro Acadêmico, pela monitoria já referida e pelo intercâmbio internacional (https://odireitoachadonarua.blogspot.com/2024/03/das-sete-colinas-oitava-colina-um.html):

Durante os estudos, foi inevitável me recordar da 1ª aula de Pesquisa Jurídica com o Professor José Geraldo, em março de 2019 (5 anos atrás!), quando ele nos levou ao jardim da FD para destacar que a experiência acadêmica deveria ir muito além das paredes da sala de aula, o que nos permitiria ter uma vivência mais completa de aprendizados na universidade. Foi aí que percebi a diferença relevante promovida pela reforma do ensino jurídico no Brasil, e como esta reforma nos permite ter acesso a um ensino muito mais participativo.

Apesar do sistema italiano ser também muito qualificado, com excelentes universidades e produções acadêmicas, com certeza esta experiência me auxiliou a redimensionar todas as oportunidades que temos na nossa colina brasiliense, a qual, embora seja única, certamente vale por sete.

É neste sentido que, para além do conhecimento adquirido em sala de aula, o intercâmbio foi uma verdadeira imersão. A oportunidade de aprender a língua italiana e conhecer mais da riqueza da cultura local tornou essa experiência, majoritariamente acadêmica, em algo muito maior e inesquecível. Não poderia haver uma forma mais gratificante de retornar à colina para encerrar a graduação, com novas ideias, novas motivações e novas formas de experienciar o estudo e a vivência acadêmica.

Hoje me despeço, por enquanto, da cidade eterna que me acolheu por breves seis meses.  Roma, construída sobre sete colinas referenciais (i sette colli di Roma – Palatino, Aventino, Campidoglio, Quirinale, Celio, Esquilino, e Viminale), se apresentou em toda a sua intensidade de cultura, alegria e leveza. Depois desta caminhada transformadora, é muito interessante poder me despedir destas sete colinas, que se tornaram tão familiares, e retornar à colina, como é conhecida a nossa Faculdade de Direito da UnB, que me impulsionou e me possibilitou realizar esta experiência, antes tão sonhada.

 

Mas, foi na iniciação científica, um bem estruturado programa interinstitucional (UnB/CNPQ/FAP-DF), que Maria Antônia pode adensar os fundamentos de sua disponibilidade metodológico-epistemológica e armar o arcabouço para a sua atenção para estudos avançados.

Remeto ao Portal de Conferências da UnB, 28º CONGRESSO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA DA UNB E 19º DO DF (https://conferencias.unb.br/index.php/iniciacaocientifica/28CICUnB19df/paper/view/44687). Ali vamos encontrar o registro de seu projeto aprovado pelo comitê do programa, que tive ensejo de orientar e no qual o tema que vai desafiar seus estudos avançados, começa a tomar corpo e direção: Acesso à justiça e povos indígenas: o protagonismo Guarani-Kaiowá no Supremo Tribunal Federal.

Apresentado publicamente na sessão de encerramento do Congresso e ali cumprida uma das etapas de avaliação, Maria Antônia teve na audiência dessa apresentação a própria Reitora Márcia Abrahão que visitava a mostra e que deteve-se para acompanhar a sua apresentação e lhe dar os cumprimentos.

O trabalho, como disse, introduz um tema que vai se desdobrar na Monografia, como se depreende de seu resumo:

Introdução: A Constituição Federal de 1988 representou um marco fundamental na transição constitucional brasileira para o regime democrático. Nesse contexto, a luta indígena por representatividade e protagonismo também foi marcada na Carta Cidadã, com o reconhecimento de diversos direitos de caráter permanente. Ao considerar o direito fundamental de acesso à justiça, torna-se inquestionável a possibilidade de que as comunidades indígenas possam buscar a prestação jurisdicional estatal para resolução de conflitos, devendo ser garantida a aplicação dos princípios constitucionais processuais, em consonância com o artigo 232 da Constituição Federal. Entretanto, mesmo com a previsão constitucional acerca da legitimidade indígena para ser parte em juízo em defesa de seus direitos, subsistem casos em que essa representatividade processual não é plenamente reconhecida, o que prejudica a prestação jurisdicional e a concretização dos direitos conquistados pela luta indígena.

 

Assim que, já antes da monografia e da conclusão do curso, Maria Antônia já se firmara como pesquisadora ativa no Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPQ) e se integrara ao processo co-autoral que coroa o ativismo de pesquisa, como está em registros editoriais, entre outros, mais recentemente “Direitos Humanos & Covid-19: respostas sociais à pandemia”, organizado por mim, Talita Tatiana Dias Rampin e Alberto Carvalho Amaral.

A própria Maria Antônia anota sua condição co-autoral na obra:

Com muita alegria, tive a oportunidade de contribuir com o artigo produzido pela Assessoria Jurídica Universitária Popular Roberto Lyra Filho, que integrou a livro. No artigo intitulado “Solidariedade, Direitos Humanos e educação popular em tempos de pandemia”, analisamos as respostas sociais trazidas pelos movimentos sociais através das campanhas de solidariedade em prol das comunidades afetadas pela fome e pelo desemprego durante a pandemia de Covid-19, o que agravou as vulnerabilidades já existentes.

Foi muito valoroso poder trazer a perspectiva da AJUP e da extensão universitária da Universidade de Brasília no contexto de mobilização e readaptação para garantir a continuidade das atividades extensionistas durante a pandemia, mesmo que de forma remota.

Agradeço muito aos professores organizadores pela oportunidade e também aos queridos colegas da AJUP, co-autores do artigo: Adda Luisa de Melo Sousa, Kelle Cristina Pereira da Silva, Marcos Vítor, Moema Oliveira Rodrigues e Rayssa Cavalcante.

(Direitos Humanos & Covid-19, vol. 2. Respostas Sociais à Pandemia. José Geraldo de Sousa Junior, Talita Tatiana Dias Rampin, Alberto Carvalho Amaral (orgs.). Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2022. Sobre a obra ver https://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-covid-19-vol-2-respostas-sociais-a-pandemia/

A monografia, objeto deste Lido para Você, foi aprovada por unanimidade pela banca examinadora, formada pela professora Lívia Gimenes Dias da Fonseca, cuja tese de doutorado – Despatriarcalizar e descolonizar o estado brasileiro: um olhar pelas políticas públicas para mulheres indígenas (conf. Nas referências bibliográficas) – ancora em boa parte o o enquadramento decolonial trazido pela Autora quando trata do tema indígena; também por Maíra Pankararu, que oferece a referência da justiça transacional que permite a Maria Antônia apoiar seu conceito forte – o de restituição – para dar significado a um de seus achados fortes, ter o manto em dimensão espiritual para núcleo da realização de direitos humanos dos povos indígenas do Brasil.

Penso que Maíra para além do modo como Maria Antônia a traz para lastro de seu trabalho, terá validado esse significado atribuído ao manto com o mesmo sentipensar que imprimiu à descrição de simbolismo equivalente, para uma das representações encantadas da cultura de seu povo pankararu, alusiva à tradição do Prayá:

Sobre os Pankararu, apresentamos o Flechamento do Imbu , a Corrida do Imbu, o Menino do Rancho , dentre outras tradições, mas o que chamou a atenção da turma foi o Prayá . O Prayá (ou Praiá) não é um homem, um indígena, um Pankararu. Uma vez com as vestes feitas da fibra do caroá (ou croá), ali está a Força Encantada, a expressão máxima da religiosidade do nosso povo… Nós Pankararu nascemos da terra, somos filhos da terra. Sã Sé nos enterrou no chão e brotamos como árvores. Também somos guardadores de sementes, onde chegamos preparamos o chão e deixamos um pouco do que é nosso germinar e tomar seu ciclo de vida.

(Ver Maíra Pankararu no Prefácio in O Direito Achado na Rua: Questões Emergentes, Revisitações e Travessias: Coleção Direito Vivo, volume 5. José Geraldo de Sousa Junior et al (org). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2021, referência em https://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-questoes-emergentes-revisitacoes-e-travessias/)

Guardadas as distinções e perspectivas, me acode situar o estudo de Maria Antônia, uma chamada a pensar o jurídico a partir de outros modos de o pensar, conforme eu já havia anotado ao examinar a dissertação de mestrado de LUCAS CRAVO DE OLIVEIRA –  Fronteiras improváveis entre tempos e direitos: constitucionalismo compartilhado entre os sistemas de justiça estatal e Mẽbêngôkre Kayapó no acidente do Gol 1907. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Orientador: Prof. Dr. Douglas Antônio Rocha Pinheiro Coorientador: Prof. Dr. Ronaldo Joaquim da Silveira Lobão. Brasília, 2020.

Escrevendo sobre a dissertação de Lucas (https://estadodedireito.com.br/fronteiras-improvaveis-entre-tempos-e-direitos/), observei que eu próprio gostaria de distinguir no texto para interpelar interpretações e possibilidades plurais de consideração do jurídico, é a caracterização no impasse que se criou e que foi o cerne da mediação para estabelecer um entendimento, foi a circunstância de afetação do território atingido pelo acidente espalhando destroços, pertences e vítimas, fato que, no simbólico indígena configurou o espaço e sua representação como “proibido à circulação humana”. Diz o Autor na página 71 de seu trabalho: “Ali, passaram a habitar os espíritos que morreram na ocasião…Em razão disso, passaram a ser proibidas atividades que envolvam caça, pesca, roçado ou construção de aldeias, tornando essa área completamente inacessível kayoikot – para sempre”. É a partir dessa caracterização que surge a reivindicação de reparação que alcance não somente os impactos ambientais, mas também os espirituais causados em razão da queda do avião.

Com efeito, em face do contraste entre o paradigma liberal do sistema europeu e a saída multicultural interamericana, tem sido retomada no âmbito da CIDH a discussão seguidamente proposta por Antonio Augusto Cançado Trindade, que por duas vezes foi seu Presidente, sobre se o conjunto de reparações fixadas representariam, do ponto de vista simbólico, o reconhecimento de um dano a um projeto pós-vida (CORTE IDH. Caso de la Comunidad Moiwana Vs. Surinam. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia 15 de junio de 2005. Serie C No. 124 17. 125). Trata-se de uma noção adaptada da própria cosmovisão que dá um especial sentido ao tempo e ao espaço, permitindo que a noção de pessoa seja estendida para além das fronteiras do mundo material. Para um questionamento tão profundo, de fato, essa parece ser uma saída válida. As reparações fixadas no caso indicado representam, justamente, o respeito ao pluralismo e à cosmovisão, permitindo que a comunidade resgaste a sua identidade cultural e a coexista com os seus ancestrais, de acordo com os usos e costumes. A reparação deve ser integral e o sistema protetivo não deve conferir ao Estado violador a discricionariedade para a definição das medidas a serem implementadas.

O caso Moiwana consagra uma especial noção de justiça em que os vivos honram seus ancestrais para que, a partir de elementos espirituais que a razão ainda não explica, os mortos possam permanecer vivos. E assim, a existência segue o seu ciclo.

Penso poder situar o trabalho de Maria Antônia Beraldo nessa mesma ordem de indagação. Veja-se o resumo de sua proposta de estudo:

O processo de reconhecimento dos direitos humanos dos povos indígenas a nível nacional e internacional amparou e impulsionou a emergência de novos sujeitos coletivos de direitos, empenhados na reafirmação e realização de outros direitos ainda não reconhecidos ou formalmente acessíveis. Assim, surgiram mobilizações pelo retorno de bens culturais a povos originários, que foram expatriados em decorrência dos períodos de dominação colonial. Neste contexto, presente trabalho almeja analisar a configuração do direito à repatriação de bens culturais como um direito humano dos povos indígenas, questionando a efetiva participação e protagonismo das comunidades enquanto sujeitos coletivos de direitos. A partir do estudo do caso do manto tupinambá, o trabalho se propõe a evidenciar os desafios e limitações inerentes ao procedimento de repatriação na atualidade, considerando as principais normativas referentes ao tema no âmbito do direito brasileiro e internacional.

 

O sumário permite apreender o alcance do estudo:

 

INTRODUÇÃO

CAPÍTULO 1. A repatriação de bens culturais enquanto direito humano dos povos originários

1.1 Enquadramento teórico da expatriação no debate da colonialidade e dos direitos humanos

1.2 A Repatriação de bens culturais como expressão para realização e efetivação dos direitos humanos

1.2.1    O Direito Achado na Rua e o protagonismo dos sujeitos coletivos de direito enquanto categoria emergente de reivindicação dos direitos humanos

1.3 As dimensões dos bens culturais para os povos indígenas: expressão da vida e dignidade

CAPÍTULO 2. Mapeamento e sistematização das normas e políticas do direito brasileiro e internacional acerca da proteção ao patrimônio cultural e intelectual e da possibilidade de repatriação de bens culturais

2.1 Normas sobre a proteção do patrimônio cultural indígena e sobre a repatriação de bens culturais a nível nacional

2.1.1 Constituição Federal de 1988

2.1.2 Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937

2.1.3 Decreto nº 3.551, de 04 de agosto de 2000

2.1.4 Projeto de Lei nº 118/2024

2.2 Normas sobre a repatriação dos bens culturais indígenas a nível internacional 43

2.2.1 Convenção de Haia de 1954

2.2.2 Convenção da UNESCO de 1970

2.2.3 Convenção da UNIDROIT de 1995

2.2.4 Resoluções 3187/1973 e 3391/1975 da AGNU

2.2.5 Convenção nº 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes de 1989

2.2.6 Declaração de Mataatua sobre os Direitos à Propriedade Cultural e Intelectual dos Povos Indígenas de 1993

2.2.7 Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas de 2007

2.2.8 Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas de 2016

2.3 Desafios e limitações para a realização do direito à repatriação a nível nacional e internacional

CAPÍTULO 3. O retorno do manto tupinambá e o protagonismo da comunidade Tupinambá de Olivença da Serra do Padeiro

3.1 Os Tupinambás do Brasil colônia e a travessia dos mantos expatriados

3.2 Emergência tupinambá: os Tupinambá de Olivença e a retomada da ancestralidade pelo manto

3.3 O retorno do manto: percurso da repatriação entre Brasil e Dinamarca

3.3.1 O protagonismo da comunidade Tupinambá de Olivença e da Serra do Padeiro

3.3.2 O papel desempenhado pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro

3.3.3 O papel desempenhado pelo Ministério dos Povos Indígenas

3.4 “Revisitando a história para construir um novo futuro”: desafios para o acesso e retorno do manto tupinambá

CONSIDERAÇÕES FINAIS

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

Tendo, pois, por objetivo analisar a repatriação de bens culturais indígenas na esfera jurídica, e como este procedimento pode contribuir para a realização de direitos humanos dos povos indígenas, como o direito ao patrimônio cultural e à memória. A pesquisa almeja, portanto, responder à pergunta: como a repatriação de bens culturais pode configurar um direito humano dos povos indígenas? A partir deste recorte, busca-se atender aos seguintes objetivos específicos: i) analisar o contexto em que foi deflagrado o esbulho ou expatriação do patrimônio cultural dos povos indígenas do Brasil, e como estes povos se constituem como sujeitos coletivos de direitos; ii) identificar o enquadramento normativo a nível nacional e internacional sobre a repatriação de bens culturais; e iii) analisar como a emergência dos sujeitos coletivos de direito contribui para o reconhecimento de novos direitos e, no caso, do direito à repatriação.

O ponto de partida, para melhor enquadramento do tema, foi destacar a diferença entre os termos “restituição”, “devolução”, e “repatriação” ou “repatriamento”. A Autora fixa-se no termo “restituição”. Para ela, é o preferido pelos países de origem, implica uma aquisição ilegal e, portanto, é rejeitado pelos países ditos “de mercado”. “Devolução” sugere um ato de disposição voluntária, o que, por sua vez, contraria a concepção legal dos países de origem. “Repatriamento” sugere uma conexão natural entre um objeto e um estado ou comunidade nacional, mas isso não corresponde necessariamente às condições geográficas ou demográficas atuais”

Ela fundamenta ainda a opção, sustentando que a terminologia apropriada foi debatida pelo Comitê Intergovernamental para a Promoção da Devolução de Bens Culturais aos Países de Origem ou sua Restituição em caso de Apropriação Ilícita, criado pela UNESCO, que adotou o termo neutro “retorno” (FARIA, 2023, p. 508). Sendo assim, o presente trabalho deve utilizar as categorias destacadas apenas com vistas a evitar a repetição sintática, mas reconhecendo as diferenças semânticas entre eles.

Conforme a proposta do trabalho, no primeiro capítulo, com atenção ao primeiro objetivo da pesquisa, buscou-se compreender o enquadramento da repatriação de bens culturais como direito no debate da colonialidade e dos direitos humanos, a legitimidade dos povos indígenas enquanto sujeitos coletivos de direito e as dimensões de significado dos bens. No segundo capítulo, foram mapeadas e sistematizadas as normativas do direito brasileiro e internacional que abordam a proteção ao patrimônio cultural, com vistas a identificar possíveis menções ao direito à repatriação. No terceiro capítulo, desenvolveu-se o estudo do caso do manto tupinambá, com o objetivo de evidenciar a emergência e reafirmação de direitos do povo Tupinambá de Olivença a partir da revitalização cultural propiciada pelo retorno do manto.

Com uma preciosa revisão bibliográfica, forte em achados inesperados tanto mais pertinentes quanto no momento da finalização da monografia deu-se o retorno do manto descortinando um imaginário acerca do significado das tradições que recortam emergências de protagonismos sociais no contemporâneo, o trabalho de Maria Antônia é assertivo nas suas conclusões:

O reconhecimento externo está presente no caso, visto que o processo de repatriação do manto reflete as lutas sociais protagonizadas pelo povo Tupinambá de Olivença para o reconhecimento da sua existência, identidade e ancestralidade, em suas dimensões material e imaterial. Estas lutas têm por objetivo acessar o “bem necessário para se viver” que, no caso, é materializado pela revitalização, retomada e fortalecimento da cultura e da espiritualidade através do retorno do manto, que é um agente ancestral. Entretanto, o reconhecimento interior, com a adoção de garantias para reforçar o cumprimento das normas internacionais, ainda é pouco estruturado.

Conforme apresentado nos Capítulos 2 e 3, inexiste um procedimento regular a nível nacional ou internacional que apresente a mínima previsibilidade ou padrões mínimos quanto ao processo de repatriação. Ainda que tenham sido estabelecidos certos deveres e responsabilidades pelas normativas internacionais, e tenha sido criado o Comitê Intergovernamental da UNESCO para resolução de controvérsias em sede de jurisdição voluntária, o que se verifica a partir do caso é a ausência de garantias para reforçar o cumprimento das normas, que depende do êxito político das tratativas diplomáticas.

E mais importante ainda:

Sendo assim, para além do reconhecimento das comunidades indígenas enquanto protagonistas no processo de repatriação, que inclui a capacidade autônoma em definir a importância material e imaterial do bem para a sua coletividade, torna-se fundamental o estabelecimento de estratégias de reivindicação e efetivação deste direito. Reivindicação no sentido de permitir a adequada postulação do direito a nível nacional e internacional. Efetivação no sentido de propiciar mecanismos para concretização do requerimento da comunidade. Ainda que não seja possível a plena repatriação do artefato ao território, a estratégia de efetivação pode ser qualificada pelo garantia de acesso ao bem com base em protocolos estabelecidos em consulta ao povo, ou pela criação de acervos virtuais e medidas concretas para que possa ser exercido o direito e protagonismo destes sujeitos para gestão, manutenção e cuidado material e espiritual do bem repatriado.

E finalmente:

Desta forma, o protagonismo dos povos indígenas poderá constituir, de fato, a sua condição enquanto sujeitos visibilizados e humanizados no processo de titulação de direitos, em uma extensa agenda que envolve a autodemarcação, a retomada de seus territórios e culturas, e protocolos autônomos de consulta. Por esta razão, Glicéria Tupinambá (2024) evidencia que as instituições e museus são convidados a colaborar com estratégias conjuntas para repensar a relação dos museus com a Arte Indígena, para além dos deveres estatais já elencados. Sendo assim, esta cooperação, a partir do paradigma referencial do manto tupinambá, poderá permitir a consolidação de protocolos para um maior protagonismo dos povos indígenas na proteção e gestão sobre seus patrimônios culturais e na expansão da realização de seus direitos humanos.

 

As  conclusões de Maria Antônia Beraldo corroboram o que tenho apontado como agenda do protagonismo indígena em suas lutas por reconhecimento, com a formulação de processos que dão agência a esses protagonismo. Nesse sentido afirmei – https://estadodedireito.com.br/direito-a-consulta-e-consentimento-de-povos-indigenas-quilombolas-e-comunidades-tradicionais/ – identificar “os grandes eixos que marcam sua luta autônoma, de sujeitos coletivos, para formar a agenda da afirmação de seus direitos originários: retomada, desintrusão, autodemarcação e elaboração de protocolos autônomos de consulta e consentimento”.

Aliás, essa agenda já vem sendo constituída pela ação política dos povos e comunidades. Basta olhar com atenção as pautas de diferentes modos de trazer a debate as questões que mobilizam os povos e comunidades. O trabalho de Maria Antônia traz um novo e interpelante componente para essa agenda.

Folgo em que Maria Antônia, leal aos fundamentos teóricos e políticos do campo epistemológico a que se filia até aqui – confira-se o seu capítulo O Direito Achado na Rua e o protagonismo dos sujeitos coletivos de direito enquanto categoria emergente de reivindicação dos direitos humanos – tenha podido conceituar, com Glicéria Tupinambá, a dimensão ativa da agência ancestral, num sentido altamente denotativo do alcance dessa categoria, nos próprios termos em que a enunciou: “Cumpre destacar que o manto não deve ser visto como obra de arte, como um objeto à venda ou peça que hoje integra acervo museológico. Embora possam ser utilizados termos como “adorno” ou “artefato” para descrevê-lo, sua expressão não se encerra nestas categorias. Neste sentido, Glicéria Tupinambá explica que ‘[o] manto é um ancestral percorrendo o território’. Isto significa dizer que o manto é dotado de “agência ancestral”, conectando as temporalidades do fio da história. Sua confecção exige a autorização dos Encantados e a aplicação do que Glicéria Tupinambá chama de “cosmo técnicas ancestrais”. A qualificação de agência permite aos objetos assumirem um espaço de protagonismo, revelando a amplitude percebida no artefato”.

Em suma, trata-se de estabelecer um diálogo entre teoria e ação política, mediado por essa agência, para levar ao reconhecimento de intenções de sujeitos de sua própria ação e titulares da capacidade de realizar protocolos, a partir dos quais possa desenvolver-se um processo de reapropriação do objeto e seus significados, como direitos ancestrais.

 

 

|Foto Valter Campanato
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                  

 

 

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