Artigo publicado na 43ª edição do Jornal Estado de Direito
O racismo institucional no combate ao racismo
O racismo pode ser combatido por meio de processos educacionais, por meio de ações afirmativas, por meio da aplicação de sanções, por meio de atos civilizados e civilizatórios vinculados aos exemplos pessoais ou institucionais, bem como pela constituição de estruturas voltadas ao trato dessa questão.
É perceptível que, em solo pátrio, não estamos sendo eficazes no combate ao racismo, pois ele ainda é bem presente e, em certos momentos, afigura-se revigorado. Também não temos sido eficientes porque não utilizamos de forma sistêmica todos os meios dos quais dispomos.
Nesse teatro, não é desarrazoado falar em um quadro de ineficiência e de ineficácia no combate ao racismo. Esse quadro está sustentado em dados atinentes à educação, ao mercado de trabalho, à inserção em espaços de poder, às condenações relativas aos crimes raciais e à segurança.
Diante do que se tem visto, sem temer a pecha de ser considerado alarmista, pode-se consignar que se está vivenciando um cenário de racismo institucional no combate ao racismo.
De bom alvitre destacar que se toma o racismo institucional como o desinteresse ou a desatenção com questão ou com necessidade que interessa a determinado grupo étnico, levando à ocorrência e à permanência da discriminação. Parte-se, por conseguinte, da superação da intencionalidade, tendo-se, como bem ensina Roger Raupp Rios[1], como a gênese da discriminação a dinâmica social, o ambiente institucional e as organizações nas quais os indivíduos vivem. Sob essa ótica, o exame do preconceito e da discriminação racial não se calca no sentir e no agir individual, sobretudo em uma sociedade que não se admite racista e que, ainda sustenta conformar uma democracia racial, mas nos padrões de conduta, nos posicionamentos e nas composições institucionais e nos resultados práticos para o grupo lesado.
O racismo institucional é inimigo de mais difícil identificação, que necessita de assunção de compromissos institucionais e de afastamento de supostas e danosas neutralidades que são estigmatizadoras e impeditivas do avanço civilizatório.
Nesse cenário, é tido como normal e não preocupante não se ter aplicado as normas extraíveis do artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação embora seu texto originário date de 2.003 e sua alteração de 2.008. Segundo esse dispositivo legal, que tomo como a lei antirracista com maior possibilidade de gerar efeitos sociais concretos por atuar no campo da educação das crianças, as escolas públicas e privadas brasileiras, de ensino fundamental e médio, “em todas as disciplinas”, devem inserir as histórias e as culturas afrobrasileira e indígena. Desconsiderando o caráter transformador da norma, pois ela visa à formação de uma sociedade baseada no conhecimento e não no preconceito, ultrapassando a questão educacional e configurando meio de prevenção e de combate às práticas racistas no corpo social, os Estados-membros e os Municípios não deram efetividade sistemática ao que determina a lei. A União, por sua vez, permite, ao não promover a alteração dos currículos das graduações, que profissionais saiam das Universidades sem o conhecimento necessário para ministrar disciplinas de forma adequada ao que determina a LDB. Falha, por conseguinte, do ponto de vista educacional, político e econômico, sobretudo porque, além disso, acaba repassando recursos com bem menor possibilidade de êxito, para que os já professores individualmente ou os demais entes federados em períodos de tempo inferiores ao da graduação, compareçam ou promovam eventos e cursos.
Vê-se aí um importante meio de combate ao racismo, a educação, utilizado de forma ineficiente e gerando efeitos inferiores aos que legitimamente se poderia esperar.
Outro meio de combate ao racismo seria a criação e o fortalecimento de estruturas governamentais de combate ao racismo. Todavia, temos como natural que, em um país com dimensões continentais, haja uma Secretaria com status, mas sem estrutura de Ministério e com poucos recursos orçamentários para tratar da igualdade racial no Brasil. O mesmo se repete nos Estados e Municípios brasileiros, indicando não haver vontade férrea de combater as consequências para negros e não negros de uma longa escravização. Aliás, tal vontade estatal poderia e deveria ser externada na composição das equipes governamentais, mas não é raro vê-las compostas exclusiva ou quase que exclusivamente por não negros.
Discute-se de maneira intensa quando ocorrem práticas individuais de racismo, a necessidade de tais atos serem considerados como crime de racismo e não como o de injúria racial, de serem mais severas as penas e de trabalharmos essa questão no campo da educação. E não é incomum o agente não se admitir racista, considerar hipócritas os cidadãos que o criticam e dizer ter amigos ou até parentes pretos ou pardos. No que interessa nesse breve texto, é bom destacar que não trabalhamos adequadamente a questão educacional previamente ou depois de fatos que comovem parte significativa da sociedade. E mais. Há estudos do respeitado Laboratório de Análises Econômicas, Histórias, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais dando conta de que quase 70% das pessoas que respondem por crimes raciais restam absolvidas. Creio que ainda se há de considerar que sendo os crimes de racismo e de injúria previstos com pena mínima de uma ano, está o Ministério Público obrigado a ofertar a possibilidade de suspensão condicional do processo, o que ampliaria o número de pessoas supostamente praticantes de tais atos e sem recebimento de sanção.
A questão é que, tendo-se a lei penal como um instrumento de combate ao racismo e vendo-a como incapaz de gerar os efeitos aguardados, sabe-se que está a tramitar no Congresso Nacional projeto de lei, sob o silêncio do chamado Movimento Negro, que reproduz o ineficaz texto legal, pois mescla o atual Código Penal com a Lei Federal 7.716/89. O mencionado projeto é fruto de uma comissão de notáveis convocada pelo Congresso. Sem se examinar competências e qualificações individuais, mister anotar que ou não se teve acesso ao estudo do LAESER, demonstrador da ineficácia legislativa, ou com ele se chegou à interpretação que, respeitosamente é forçoso dizer, não levará à transformação que a Constituição Federal e os Tratados Internacionais impõem à nossa Pátria. Dessa arte, a questão, divorciada dos dados, parece ter sido considerada somenos importância diante das outras que deveriam ser tratadas na novel legislação.
No que concerne às ações afirmativas, oportuno consignar que as cotas raciais no meio acadêmico nasceram nas próprias Universidades, não decorrendo, com efeito, de iniciativa governamental. Ainda no campo da ação afirmativa, impositivo asseverar que convivemos bem com o fato de o Estatuto da Igualdade Racial, que é um marco regulatório, ser descumprido. Restrinjo-me, aqui, a dois pontos relevantes: a não regulamentação do artigo 39 e a violação do artigo 40 do diploma mencionado acima. Foi constituída comissão para apresentar à SEPPIR/PR sugestão de regulamentação no ano de 2.012. Desse grupo, embora o parágrafo terceiro do artigo supradito preveja a concessão de incentivos fiscais às entidades privadas que tenham programas, projetos e ações de igualdade racial no campo do trabalho, não constava nenhum membro do Ministério da Fazenda ou do Ministério do Planejamento. Como decorrência lógica, transcorrido prazo mais do que razoável, pois o Estatuto é de Julho de 2.010, não há entidade privada que financie projetos de cunho eminente racial, salvo o Fundo Baobá, e somados os salários de homens brancos e mulheres brancas e somados os salários de homens negros e mulheres negras em seis regiões metropolitanas brasileiras, o segundo grupo de pessoas, com as mesmas qualificações e funções, percebe a metade do que percebe o primeiro como demonstra trimestralmente o LAESER.
À toda evidência, desperdiçamos um forte meio transformador: a lei. Essa, no caso específico, estimularia o emprego de outro meio de igual valor: a responsabilidade social corporativa.
Outro ponto do Estatuto que se quer aqui abordar é o descumprimento solene do que determina o artigo 40. Está o Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo do Trabalhador a promover programas e ações, a financiar projetos e iniciativas pertinentes à igualdade racial no mercado de trabalho. Até o momento, nenhum centavo sequer foi endereçado ao que determina a lei e o que é pior, a leitura da ata da 117ª reunião ordinária do CODEFAT evidencia a intenção de não se dar efetividade à norma jurídica. O ápice é atingido quando o representante do BNDES sustenta que o Banco não tem a cor/raça como um critério para a concessão de financiamento. Ora, nada mais fez do que comprovar o descumprimento do Estatuto.
Quanto à baixa inserção do negro nos espaços de poder, bastante é ler o Censo do Poder Judiciário brasileiro, realizado com coragem e espírito republicano pelo Conselho Nacional de Justiça. Dos cerca de 10.796 que responderam ao questionário que fora apresentado aos 16.812 Juízes brasileiros, 1% (107) se autodeclararam pretos e 14%(1.511) se autodeclararam pardos. Sabe-se que a diversidade interna torna a instituição mais competitiva e mais apta a compreender os desafios da sociedade e a construir soluções. Por conseguinte, alterar a composição do Judiciário pátrio é mais do que dar acesso a um grupo de pessoas, é conferir-lhe mais condições de atuar com justiça numa sociedade contaminada pelas desigualdades de diversas ordens.
Numerosas vezes, parece que olvidamos de que o combate às desigualdades é um Objetivo Republicano estampado na Constituição Federal. Ademais, já passou da hora de darmos efetividade ao princípio e postulado da eficiência no campo da igualdade racial no Brasil, afastando-nos de atos simbólicos, de ritmos ditados por questões político-partidárias ou individuais, gerando-se um sistema capaz da consecução de resultados transformadores há muito aguardados por cidadãos negros e não negros.
Jorge Terra
Coordenador da Rede Afro-Gaúcha de Profissionais do Direito.
[1]RIOS, Roger Raupp, Direito da Antidiscriminação: discriminação direta, indireta e ações afirmativas, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2008
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