Coluna Democracia e Política
A atitude conservadora e a política
Foi o Presidente da Câmara Municipal de Porto Alegre, Valter Nageltein, que com irônica e fraterna provocação, convidou-me a escrever sobre o pensamento conservador. Entretanto, ao contrário do desejo do vereador, encontrei argumentos interessantes em A atitude conservadora, capítulo de O que é Conservadorismo (Editora Três, 2015) para uma perspectiva de esquerda. Roger Scruton define o conservadorismo como uma perspectiva que pode ser definida de forma dissociada das políticas de um partido, isto é, uma perspectiva que pode ser atraente por quem não gosta de partidos. “Por mais paradoxal que possa parecer, foi dessa aversão à política partidária que nasceu o Partido Conservador”, afirma Scruton. Essa dissociação tem validade ainda hoje: com o descrédito dos partidos no Brasil, o conservadorismo espalha-se por todos os lados. Mas o que achamos que é conservadorismo aqui é o mesmo que Scruton define lá?
O autor lembra que o Partido Conservador nasce na Inglaterra com o objetivo de manter a estrutura e as instituições de uma sociedade ameada pela agitação social. Entretanto, alerta Scruton, o Partido Conservador mais recentemente, ao menos no caso inglês, “frequentemente tem-se comportado de um modo com o qual um conservador pode ter pouca afinidade”, diz. Ora, o que parece contrariar o autor é que o partido conservador tenha aos poucos se preocupado em “devolver ao povo seu direito natural de escolha e introduzir em toda corporação o princípio curativo da democracia”. O que Scruton quer dizer é que para um conservador, o cultivo da democracia é um princípio bem-intencionado, mas não é o fim da perspectiva conservadora. Lamentamos, mas não podemos concordar com isso, mas há outros aspectos.
Isso ocorre porque o conservadorismo inglês vive uma contradição, entende Scruton, a de munir-se de um conjunto de políticas nem sempre afins a sua origem para sobreviver. O autor não tem pudores em defender que a atitude conservadora na política remete acima de tudo à autoridade “que nenhum cidadão possui o direito natural que transcenda a sua obrigação de ser governado. Qual a utilidade de um direito sem o poder coercitivo e duradouro que o sustenta”?Mas o argumento de Scruton, apenas a primeira vista merece ser recusado pela esquerda, pois ele encobre, em realidade, uma definição defensável . Vejamos qual.
A necessidade e os limites da autoridade
O exercício da autoridade na sociedade conservadora decorre da necessidade de exercer a moderação. É uma atitude contra totalitarismo de esquerda e de direita, mas que ainda assim, não abandona o conceito de liberdade de expressão, reunião e consciência. Mesmo nesses conceitos, a moderação deve estar presente, já que Scruton não admite liberdade absoluta de expressão, o direito de alguém de “exprimir seus pontos de vista sobre qualquer coisa, a qualquer momento e em qualquer lugar”. O motivo é que a liberdade precisa ser atenuada para evitar que alguém sofra prejuízo, o que coloca a interessante questão de como Scruton veria hoje certas expressões da arte contemporânea e introduz um excelente argumento para rebater o baixo nível do debate entre esquerda e direita. Nesse sentido, no debate público e político, a expressão de pontos de vista deve ter limites. E isso é bom para a esquerda.
Porque a ideia de limites da liberdade, preconizada pelo conservadorismo, não deixa de ser interessante para a esquerda? “Não existe liberdade para maltratar, para incitar o ódio, para fazer ou tornar públicas declarações traiçoeiras, difamatórias, obscenas e blasfemas”, diz Scruton. Ele está certo. O ódio racional e as ofensas criminosas devem ser vetadas como ocorre na Inglaterra, pela chamada lei da sedição, que proíbe a distribuição de material subversivo. Mas o problema aí é outro, pois Scruton não define quem decide o que é subversivo e nem que critérios são usados para colocar de um lado ou de outro um determinado material, e isso é perigoso para a esquerda.
Outro ponto interessante em seu discurso é o de que a liberdade não pode ser separada das instituições que a fomentam, quer dizer, a liberdade é fazer o que não é proibido pela Lei. A liberdade nunca é aquela defendida por um partido ou ideologia, mas a consagrada nas instituições, o que é incrivelmente atual, mas Scruton imediatamente se perde ao ligar a liberdade “ de algum modo misterioso – à livre iniciativa e a economia de mercado”. Que o mercado e a livre iniciativa sejam instituições poderosas, estamos de acordo: que eles possam definir os espaços da liberdade, daí corremos o risco de trocar um agente de dominação por outro. Na minha concepção, o mercado e a livre iniciativa devem ter limites porque a corrupção também as atinge.
A liberdade e o indivíduo
Porque Scruton pensa assim? Porque ele vê a liberdade como subordinada a uma organização que define o objetivo individual. Mas isso inverte a situação de forma a manter a desigualdade, já que neste sistema “é o indivíduo que tem responsabilidade de conquistar qualquer liberdade de expressão, de consciência e de reunião que estiver ao seu alcance”, diz o autor. Não é evidente aí que Scruton erra ao desamparar aqueles que precisam da proteção que um estado oferece? Esse é o principio de solidariedade social em que se baseia nossa Constituição e que estamos prestes a ver solapar. Scruton diferencia com razão o conservador do liberal: enquanto que para o segundo, a liberdade individual é um valor absoluto, para o primeiro não é pois o valor mais elevado é a autoridade de um governo existente.
Scruton luta por um governo “adequado” e isso é tanto sua força quanto sua fraqueza. É sua força porque o autor acredita na possibilidade de um estado organizado ser capaz de fazer isso; é sua fraqueza porque estamos longe, com os políticos que temos, de alcançar esse nobre objetivo “As batalhas políticas de nosso tempo dizem respeito, portanto, a conservação e a destruição de instituições e formas de vida”, diz Scruton. Isso não é exatamente o que estamos vivendo nesse exato momento, com a destruição de instituições consagradas, direitos civis, das leis trabalhistas e do serviço público? Não deveríamos, nesse sentido, para preservar tais instituições, sermos todos conservadores? Ora, o pensamento conservador de Scruton pode ser também uma ferramenta para defesa das instituições democráticas conquistadas pela Constituição de 1988, e isso é paradoxal para a direita, que utiliza a ferramenta do autor à exaustão para justificar a destruição que fomenta, como para a esquerda, que não dispõe de novas ferramentas teóricas para defender sua preservação. O conservadorismo poderia ser uma dessas? Arrisco dizer que sim.
Mas é preciso certos cuidados. A ideia de autoridade não deve ser rejeitada pela esquerda, mas deve ser de uma autoridade legitimamente exercida, eis a questão. Pois Scruton ressente-se dos liberais que criticam a autoridade exercida pelo Estado, que não a querem, que acreditam-na como limitador de sua ação. Mas sua crítica à autoridade marxista será realmente consistente? Scruton critica o fato de que os marxistas não falam de autoridade, mas de poder, e, como demonstrou em outras obras, deve-se ao fato de que o autor se familiarizou a obra de Michel Foucault. Mas o autor critica o fato de que a esquerda falsifica assim a realidade da política, pois o poder é a única coisa que pode mudar de mãos.
Conservadorismo como crença
Scruton acredita no conservadorismo como crença moderna, isto é, o desejo de conservar aquilo que é seguro e familiar. “O conservadorismo surge diretamente da sensação de pertencimento a alguma ordem social continua e pré-existente”, diz o autor. O conservadorismo é uma atitude comprometida com a continuidade de um mundo social, e nesse sentido, a rejeição da extinção das fundações pelo governo Sartori ou a recusa da extinção de direitos do trabalho dos servidores públicos pelo governo Marchezan deveria ser vista como uma atitude conservadora, e, portanto, com mérito. Mas há um ponto destacado por Scruton para que seja assim, porque essa recusa revela a ideia de defesa legítima da continuidade de uma vida em comum. Quando servidores públicos municipais defendem uma atitude de estado de greve contra as medidas do governo Marchezan, ou quando os servidores das universidades federais recusam o sucateamento a que estão sendo submetidos pelo governo Temer, ambos estão seguindo exatamente o preceito conservador de Scruton, de que são expressão de uma vontade, de um sentimento, da percepção de que são todas vítimas de uma política injusta e que expressão de seu desejo é manter o seu mundo como o conhecem “Tendo em vista que as pessoas amam a vida, amarão aquilo que a vida lhes deu”.
Scruton diz que somos conservadores porque somos marcados pela vontade de viver, marca essencial do conservadorismo. Ora, toda a descrição do autor da realidade inglesa e da luta do conservadorismo em sobreviver pode ser aplicado ao Brasil: lá como aqui, a sociedade está desmoronando, lá como aqui, as instituições estão em declínio. O problema é que o conservadorismo de que nos fala o autor assim funciona porque é um tipo de “organismo”: somos conservadores porque tememos a morte. E isso é um problema conhecido como organicismo: como tornar equivalentes a lógica social à lógica orgânica, como tratar o mecanismo social baseado no conflito e na contradição com o mecanismo biológico baseado na vida e na morte?
A questão é que é uma metáfora incompleta: a sociedade não é como um a pessoa, ainda que, a imagem de “doença” possa se aplicar como uma luva a política neoliberal de determinados governantes. Não é exatamente assim que Vincent de Gaulejac vê o mundo neoliberal e suas políticas como uma doença social? Ora, a ideia de Scruton, de que assim como a pessoa cresce na hora da morte, a sociedade também, não se aplica: se a morte social é a política neoliberal, estamos muito longe de um crescimento social, ao contrário, o que vemos é mais desemprego e crise.
Recuperar os valores perdidos
Para Scruton conservadores são uma espécie de restauradores, e nesse sentido, a esquerda deveria correr de malas prontas para este pensamento. Mas o autor afirma que esse pensamento raramente se transforma em revolução, em luta, e quando ocorreu, como no governo de Franco, na Espanha, “o povo ficou desorganizado, sem propósitos e incompleto”. Para Scruton, o desejo de conservar só é compatível com a ideia de mudança quando esta significa continuidade. Mas os processos políticos, ao contrário, têm sido hiperativos, isto é, estamos cada vez mais sendo levados por um processo galopante de mudança e as polícias neoliberais estão cada vez mais elaborando a ideia de que “qualquer coisa pode e deve ser alterada” e voilá, reformas de todos os tipos para todos os níveis de governo, trazendo incerteza a vida pública, ao cidadão e ao serviço público.
Isso é genial para a esquerda: sim, sejamos conservadores pois deste ponto de vista, as reformas em andamento são uma ameaça, são uma doença. Scruton critica o mundo opiniático, onde as pessoas já não refletem mais, dando opinião sobre qualquer coisa e o autor chega a criticar até a igreja católica que perdeu sua capacidade de seguir o costume, a cerimonia, a autoridade. Mas quando chega no argumento sobre o propósito da política, Scruton desliza para a comparação com as relações humanas, e isso faz perder em pouco a potência de seu pensamento crítico pois ele recorre as atividades humanas em geral para mostrar que nem sempre há um “fim em vista” na política.
Ele quer dizer que na política mesmo que os políticos tenham seus projetos, a sociedade é algo diferente. Por isso ao invés de impor sua vontade a sociedade, os políticos devem tentar compreendê-la. Para os conservadores, ainda que possam haver vontade na sociedade, a vontade que realmente importa é a que foi conservada na história, na tradição, na cultura, onde estão os princípios da vida social. É nesse sentido que defendemos a adoção do principio conservador pela esquerda, da mesma forma não podemos permitir que instituições consagradas com a Constituição de 1988 sejam derrubadas uma a uma, pois eles são parte das conquistas da sociedade brasileira como um todo e devem ser preservadas.
Sejamos conservadores!
Então, que sejamos conservadores! Você pode criticar a concepção defendida pelo pensamento conservador de que somos um organismo social, mas não podemos recusar a ideia de que nossos direitos estão em risco e que é preciso preservá-los como se fossem um organismo vivo. Trata-se de colocar o conservadorismo a serviço da…esquerda! Como afirma Scruton, é preciso reconhecer com os conservadores de que uma sociedade possui grupos doentes e destrutivos – aqui incluo os ideólogos neoliberais. A política deve continuar, como defende o autor, sendo o curandeiro da sociedade “ela deve empenhar-se em governar e deve, portanto, procurar o poder que lhe permitirá fazê-lo”. Com isso, Scruton propõe que o poder deve ser reconhecido: ora, o poder de Sartori, Marchezan e Temer fraqueja justamente nisso, o de não ser mais um poder reconhecido, de terem se tornado elementos destrutivos e doentes na sociedade.
Pior, se a sociedade conservadora é aquela na qual o poder é respeitado porque exerce autoridade, esse sentimento, ao menos pelo serviço público, está em estado de corrosão. Como ser defensor patriótico de um município, de um estado ou pais se seus governantes são vistos como uma doença? Como garantir a obediência à lei e a lealdade quando um líder, seja prefeito ou governador, baseia sua ação em destruir seus servidores e o trabalho de seu povo?
Isso não significa acreditar em todas as características definidas por Scruton, mas ser seletivo: o autor defende que os conservadores são céticos quanto a igualdade e justiça social, que considera mitos, o que discordamos, mas concordamos que o clamor pelo “progresso” – que pode ser lido pelas tentativas de modernização de governos de cima a baixo – é um objeto de crítica. Assim, a ideia de que uma “esquerda conservadora”deve chegar ao poder não se torna assim tão difícil, a ideia de que precisamos de governantes de esquerda conservadores, que preservem nossas instituições e não as destruam, como está acontecendo neste exato instante, passa a ser uma alternativa política consistente, ao menos contra a candidatura de Jair Bolsonaro.
Jorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014), coautor de “Brasil: Crise de um projeto de nação” (Evangraf,2015). Menção Honrosa do Prêmio José Reis de Divulgação Científica do CNPQ. Escreve para Estado de Direito semanalmente.
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