O Mágico Ilusionista de Thomas Mann, a Liberdade Vazia e as Soluções Simplistas à Realidade Complexa do Nosso Tempo

 

Mário e o mágico - Thomas Mann - Grupo Companhia das Letras

Mário e o Mágico – Thomas Mann – Grupo Companhia das Letras

Thomas Mann escreveu, em 1929, O Mário e o Mágico, novela publicada no ano seguinte. Na obra ele narra uma experiência trágica de viagem, cujo próprio subtítulo faz menção. Trata-se, portanto, de viagem que o narrador faz com sua esposa e os dois filhos, crianças, do norte da Europa para o balneário de Torre di Venere, lugar fictício, na Itália.

 A viagem já inicia marcada por um clima diferente que permeia aquela pequena cidade, sentida a partir de uma sucessão de desconfortos vividos pela família. O primeiro ocorre já na noite de chegada, quando, no hotel, lhes foi negado fazer a refeição na varanda, que permitia uma belíssima vista do mar, por ser local destinado aos nossos clientes, conforme informou o funcionário, ainda que hóspedes por três ou quatro semanas.

O segundo desconforto aparece logo em seguida, justamente com os clientes da varanda (um tal príncipe x e família), que sentiram pavor pelos resquícios de uma tosse que as crianças já haviam superado. A princesa, grande dama e mãe apaixonada, teria temido, além do contágio, o mau exemplo que isso (a tosse) daria aos seus pequenos. Diante da queixa dos clientes da varanda, o gerente solicitou a transferência da família ao edifício anexo ao hotel, tendo eles contestado. Desse modo, a gerência permitiu chamar um médico da casa para dar o veredicto. Servo íntegro e leal da ciência, examina as crianças e refuta qualquer apreensão dado ao caso, mas, ainda assim, o gerente solicita que deixem seus quartos.

Diante desse episódio, a ignorar a ciência, deixa evidente não ser a suposta enfermidade o problema, o que faz a família deixar o local e se hospedar em outro hotel. Nos dias que se seguiram, outros desconfortos ocorreram. Em especial, na praia, o narrador descreve, horrorizado, a atmosfera pública que pairava no ar. Crianças patrióticas (fenômeno artificial e degradante), que impressionavam com mau comportamento e maldade, uma mãe gritando com o filho que estava no mar (com pronuncia alemã) e adultos que intervinham menos para apaziguar do que para decidir e salvaguardar princípios, a soltar máximas sobre a grandeza e dignidade da Itália.

Neste contexto, Thomas Mann narra o episódio, de talvez maior desconforto, que é quando a filha do narrador, de oito anos, cujo corpo descreve como um bom ano mais jovem e magra feito um vara-pau, a fim de identificar um corpo infantil (ausente de qualquer sexualidade adulta), tirou o maiô que vestia para limpá-lo no mar, devido à areia impregnada pelas brincadeiras, e, em seguida, o vestiu novamente. As crianças urraram e os adultos intensificaram as conversas a sua volta até que um senhor de casaca e chapéu-coco (veja que a crise também é estética) se dirige à família com falas de condenação, apontando ofensa ao pudor e que o ato era ofensivo à hospitalidade italiana. Assim, por ofender a honra do país e em defesa dela, indicou que cuidaria para que a violação da dignidade nacional não permanecesse impune.

Em pouco tempo, uma autoridade apareceu na praia, declarou o caso como molto grave e os encaminhou até a prefeitura, local em que o funcionário superior usou termos de uso corrente, iguais ao do senhor do chapéu-coco, aplicando uma sanção e multa de cinquenta liras.

Nesta narrativa toda, Thomas Mann busca apontar a atmosfera desagradável, de raiva, irritabilidade e tensão exacerbada que permeava Torre di Venere. Mas a grande felicidade da obra foi indicar a personificação de tais afetos na pessoa de Cipolla, o mágico ilusionista. Foi assim, na tentativa de atenuar tais (problemas) afetos até aqui vivenciados, que a família decidiu, por muita insistência das crianças, ir ao espetáculo de Cavaliere Cipolla, que se anunciava por cartazes em toda cidade. A viagem de férias deveria presenteá-los com a emoção desconhecida.

A sala de apresentação está simbolicamente situada no meio do setor popular, em passagem por um cenário que ia do feudal ao popular, passando pelo burguês, a indicar o espetáculo como resultado de um processo histórico dialético, além de alinhada e voltada às massas. Lá encontravam-se grande parte do povo local, pescadores, figuras empreendedoras e crianças. A figura do mágico ilusionista era carregada de ambiguidade, mas também chamava atenção a estética: vestuário pretensioso que parecia pendurado ao seu corpo, parte esticada incorretamente, outra com pregas incorretas. Passava uma impressão de bufonaria publicitária e fantástica, sem humor, rígida seriedade e orgulho irritadiço. Talvez assemelhado à figura do diabo da obra Doutor Fausto, capaz de se transformar para seduzir as pessoas.

O espetáculo inicia com bastante atraso e espera apreensiva, vez que Cipolla adentra ao salão sob grande espera e aplausos. Figura esquisita, meio torta, grosseiro, dentes amarelados. A fumar e beber a todo tempo, conduz o evento em tom bastante autoritário (a estalar o chicote no ar) e também confuso/esquisito. Inicia com adivinhações e questões aritméticas. Em seguida, o mágico passa a hipnotizar as pessoas, que ficam em uma espécie de transe, com a sensação do esquisito no ar, mas ao mesmo tempo curiosas para o que aquela figura nova e perversa faria em seguida.

Assim, a partir desse poder hipnótico e domínio autoritário, direciona as mais variadas humilhações ao público. Humilha pescadores analfabetos, trata as mulheres mal, hipnotiza a dona da pensão em que o narrador está hospedado, fazendo com que ela manifeste desejo por ele ao lado de seu marido e, a última humilhação, foi a hipnose de Mário. Cipolla fez com que o garçom do restaurante Esquisito o beijasse. Fascinados, ninguém ia embora. O espetáculo termina, então, com Mario desferindo tiros no ilusionista, que morre. O único que se opôs de modo eficaz às humilhações. E é assim que acaba o espetáculo.

A novela é autobiográfica. Thomas Mann teria vivido alguns desconfortos em viagem de férias com sua família à Itália. E, como poeta sensível, pôde captar a áurea experimentada naquele contorno, antecipando os grandes mágicos e ilusionistas que ascenderiam na Itália (Mussolini) e na Alemanha (Hitler). Relembra que Mussolini chega ao poder em 1922 (tendo, em 1925, iniciado a ditadura facista) e o governo nazista alemão se instaurou em 1933.

Atmosfera de hostilidade crescente contra estrangeiros; desrespeito às mulheres; ofensas e humilhações às classes populares; defesa perversa da moral e da pátria, esta como construção artificial; violência e autoritarismo. Este era o contorno social que já constava ali e que permitiu a ascensão de tais ilusionistas, seja por desvio dos próprios problemas e frustrações individuais e coletivas, certo sadismo (perversão) de uma parte privilegiada, incomodados como parte da população goza de suas liberdades, em confronto com suas próprias escolhas. Tudo isso sob a ilusão de dissolver os problemas econômicos, sociais e políticos como mágica, num grande espetáculo. É como se tivesse explicado como os italianos se deixaram levar por aquilo.

E é isso que movimentos autoritários captam, além dos anseios em resolver problemas complexos como um passe de mágica. A simplificá-los de modo a desviar-se dos problemas concretos, sendo apenas jogo de ilusionismo.

Não se quer, com a lembrança dessa obra clássica, fazer comparações incabíveis ou simplistas entre as realidades de parte do mundo do século passado e a presente quadra histórica ocidental. Mas na esteia de Ítalo Calvino em que “um livro clássico é aquele que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”, tal obra ainda projeta importantes reflexões para a realidade presente. E aqui quero destacar dois pontos da obra: uma espécie de liberdade vazia e a simplificação da realidade complexa, com respostas simplistas.

Há uma passagem no livro em que um rapaz pede para que Cipolla o controle, que aceita. Ele resiste à hipnose, mas sucumbe, sendo dominado pelo ilusionista. Diante dessa cena o narrador se posiciona:

(…) Se bem entendi o processo, aquele senhor sucumbiu à negatividade de sua posição na luta. É de se presumir que não se pode viver psiquicamente do não querer; não querer fazer uma coisa não é, a longo prazo, um propósito de vida; não querer alguma coisa e não querer mais em absoluto – e, portanto, fazer, não obstante, o que é ordenado – são talvez duas posições vizinhas demais para que, entre elas, a ideia de liberdade não se visse em apuros.

A lição deste trecho parece caminhar para o alerta de que não concordar e se posicionar contra algo, naturalmente, não basta para impedi-lo ou evitar que se consuma. O não querer não basta, é preciso uma atuação, um ideal contraposto. Em dados momentos, o exercício da liberdade em se opor estará mais próximo da opressão, a sucumbir a ela, do que derrotá-la. Por isso, em momentos complexos e de risco às liberdades e à dignidade das pessoas, o trabalho precisa ser de construção e não de exercício de uma liberdade vazia.  Tal posição poderá conduzir ao aniquilamento da própria liberdade.

É o que tem faltado no Brasil e em grande parte do mundo no tempo presente. As sociedades experimentam grandes descontentamentos, medos, ressentimentos, vulnerabilidades, dificuldades materiais, etc. Não gostam, negam a política e no exercício das suas mais amplas liberdades, se posicionam contra os mais variados elementos da realidade que as contornam. Não há o ímpeto de construção do projeto de nação, da identificação das vontades comuns, do olhar atento às complexidades sociais, na busca do razoável e da justa medida.

E diante desse contexto se insere o outro ponto de destaque, que é o ímpeto de resolver problemas complexos por simplificações da realidade. Tais tentativas, não raro, têm aparecido na figura de grandes ilusionistas, que humilham, falam atrocidades, se utilizam de cinismo, discursos violentos e desrespeitosos, defendem ideias excludentes e atentatórias a grupos de pessoas e todos estão a olhar, hipnotizados, num misto de constrangimento, curiosidade e esperança. Assim como em Torre di Venere.

Simplificam a realidade que nos cerca e nos desviam dela, realidade esta que está cada vez mais complexa (muito mais que a sociedade do século XX). Por outro lado, aqueles que compreendem os riscos e perigos de tais posturas e atuação usam de sua liberdade para dizer que são contra, para dizer que aquilo não. Mas a liberdade vazia conduzirá a seu próprio aniquilamento e à violação de tantos outros direitos. Nesse ponto, a submissão e o não querer têm o mesmo papel e força.

O livro fala do avanço do mal, mas também da postura das pessoas frente a isso: dominadas ou contrárias, inertes. Em síntese, a defesa pela preservação das conquistas é pouco, é preciso construção e firmamento de ideais. E não há resposta simples para problemas complexos. Quanto aos ilusionistas do nosso tempo, são catalisadores das vulnerabilidades sociais e, evidentemente, incapazes de criar a nova ordem que o mundo necessita.

 

MANN, Thomas. Mário e o Mágico: uma experiência trágica de viagem. Trad. José Marcos Macedo. São Paulo, Companhia das Letras, 2023.

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Jessica Fachin

Em Estágio Pós-Doutoral (UnB). Doutora em Direito Constitucional (PUCSP). Mestre em Ciência Jurídica (UENP). Graduada em Direito (PUCPR) e Licenciada em Letras (UEL). Professora Substituta na Universidade de Brasília (UnB) e professora Permanente no Programa de Mestrado em "Direito, Sociedade e Tecnologias" das Faculdades Londrina. Membro do IAB - Instituto dos Advogados Brasileiros. Membro da Comissão de Direito Constitucional da OAB/SP. Advogada.

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