Coluna Democracia e Política
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Extermínio do imaterial
A extinção das fundações é um duro golpe no trabalho imaterial do estado do Rio Grande do Sul. Devemos a André Gorz, autor de O imaterial (Annablume, 2005), o primeiro estudo sobre as metamorfoses do capitalismo e crítica ao processo de globalização que introduz a questão de como a exploração introduz uma novidade, a “produção de subjetividade”. Para Gorz, o novo capitalismo é organizado em redes, financeirizado e cujo novo valor é o intangível. Nesse novo contexto “trabalhar significa produzir-se” (Gorz) e a comunicação, dentro outras dimensões da atividade humana, permite novas formas de trabalho. Quer dizer, as novas formas de exploração passam por novas formas de subjetivação, processos cognitivos e de criação graças ao qual passamos, entre outros exemplos, a usar a internet, o que transformou o mundo financeiro. O que modifica o regime de acumulação, agora visto como “capitalismo cognitivo” é a aquisição de qualidades pelo trabalhador, o desenvolvimento de suas competências profissionais, a aquisição de conhecimentos específicos “a centralidade do trabalho imaterial diz respeito ao fato de suas atividades materiais ( de manipulação e transformação da natureza) dependerem de seus elementos cognitivos, linguísticos e afetivos (a manipulação dos símbolos). Ou seja, o trabalho imaterial passa a depender do imaterial, onde o imaterial diz respeito à subjetividade: conhecimento, comunicação, afetos”(Cocco, 2013).
Essa transformação também afeta o Estado no capitalismo é só analisar o significado das fundações no contexto de sua extinção. As fundações extintas são exatamente do campo do conhecimento, como a FEPPS, FZB e a FEE e da comunicação, como a Fundação Piratini. Elas existem com órgãos de estado não porque em um determinado momento “deu na telha “do Estado em cria-las, em cria-las por seu bel-prazer: ele as criou porque no contexto do capitalismo em que se inseria, a prestação de serviços públicos também mobilizou conhecimento, a comunicação e afetos. Foi o avanço do Estado que o fez se revolucionar e criar estas instituições, capazes de criar mundos graças as quais a prestação de serviços públicos pode atingir novo patamar, manipulando símbolos e redes de produção cultural. Da educação para a valorização da natureza desenvolvida pela FZB à valorização da criação artística feita pela Fundação Piratini, tais instituições passaram a ser parte dos atores de politicas públicas em geral como o conhecimento se tornou peça forte do mercado.
Um tipo diferente de capital
A produção cultural e o conhecimento não são setores isolados das politicas públicas, mas setores importantes para determinar a inserção do estado no regime de acumulação: o que interessa é que o Estado acompanha, pari passo o movimento de desenvolvimento da acumulação pela produção de instituições responsáveis pela garantia da produção de conhecimento e informações nas mais diferentes perspectivas. A atuação no plano das políticas econômicas depende, essencialmente, dos dados que o Estado é capaz de obter através e que no caso das extinções são das pesquisas da FEE; a atuação no plano da saúde, especialmente na manutenção de órgãos de extremo valor como o banco de sangue, depende da criação de um corpo técnico altamente qualificado que, em boa parte, se aperfeiçoou sem o apoio do Estado e que presta seus serviços na FEPPS. O trabalho material do estado depende do trabalho imaterial que o mesmo é capaz de fazer. Extinguir as fundações é exterminar esta dimensão do estado.
O Estado não está perdendo seus rumos quando mantém uma fundação – porque ter uma TV?, questiona Sartori. A pergunta está mal formulada: porque criamos uma TV? Para mobilizarmo-nos culturalmente como cidadãos. Ora, quando criou a Fundação Piratini o Estado estava se atualizando porque descobriu o poder de mobilizar a subjetividade; pela mesma razão os serviços de estado no campo do meio ambiente não dependem apenas de guarda de um parque como o da FZB, mas da existência de pesquisadores e linhas de investigação que fomentem políticas ambientais. Todas as instituições extintas tinham o papel de gerar um tipo de capital diferente do material, até agora chamado de capital humano, capaz de dar acesso ao estado o nível da ciência ou organizar os conhecimentos gerais no interior do estado que a sociedade precisa. Para Lazzarato & nEGRI, autores da obra Trabalho Imaterial, o capital variável, representado pelo trabalho vivo incorpora no corpo do servidor público é como o capital fixo cristalizado na maquinaria. Não adianta acervos e coleções botânicas sem a memória de sua pesquisa; não tem significado programas estatísticos de computador sem a presença de técnicos e analistas.
Por isto a demissão de servidores é uma tragédia: o ciclo do trabalho imaterial no interior do estado é constituído por uma força de trabalho do serviço público autônoma capaz de organizar o seu próprio trabalho e as relações da instituição com a sociedade. Nenhum estado pode dispensar a capacidade produtiva intelectual de seus servidores. Para Lazzarato & Negri, no desenvolvimento da sociedade pós-fordista, o trabalho se transforma integralmente em trabalho imaterial e a força de trabalho em intelectualidade de massa. Ela é responsável pela cultura das instituições, pelas formas de seu funcionamento e produtos de forma singular. Não há como uma empresa qualquer reproduzir o tempo de pesquisa que foi dispensado pelos servidores ora dispensados pelo governador José Ivo Sartori porque eles mesmos são recursos que constituem riqueza de estado, base de produção. Quer dizer, assim como a indústria deu-se conta que a criação de riqueza vem menos do tempo de trabalho do que da potência de trabalho do trabalhador, a produtividade do servidor público só existe porque ele dispôs sua existência na busca da qualificação e aperfeiçoamento de sua função.
Oposição de poderes
Na verdade, trata-se sempre de que servidores conquistaram um grau de autonomia no que concerne sua relação no trabalho, é essa independência e autonomia conquistada por cada instituição e seu servidores que as torna insubstituível. Para Sartori, tudo não passa de um processo formal de extinção de fundações, demissão de servidores e contratação de serviços junto a iniciativa privada: mas como substituir talentos da TVE e da Radio FM Cultura, jornalistas com programas com inserção na comunidade? É a história de cada servidor, de cada projeto e de cada programa que supera a capacidade de terceirização proposta pelo governador. Sartori demite servidores mas esquece que cada vez mais que são eles que são essenciais às políticas públicas e não o contrário. O paradoxo do estado no capitalismo pós-industrial é que, como nas empresas, os trabalhadores se tornam progressivamente independentes em sua função.
Se o trabalho se torna cada vez mais imaterial, se os serviços públicos dependem cada vez mais dessa imaterialidade, a hegemonia dos servidores responsáveis por estes serviços deveria ser capaz de inverter a posição de poder do governo. Mas o que se vê é ainda o antagonismo real, os processos de contestação dos servidores a seu estado que opõe servidores públicos e governo. Usando o único poder que detém, pagar os salários, o governo recusa dar aos servidores o poder que eles merecem: os confrontos ocorrem mais por um não reconhecimento do papel dos novos servidores públicos e por uma arraigada fixação do governador na ideia de que o estado é o difusor das diretrizes. Ora, o que este raciocínio nega é justamente a dialética, a dialética de interesses, a dialética de forças entre quem está no poder e seus servidores.
Poder retrógrado
Quer dizer, por não saber redefinir o trabalho de seus servidores, de reconhecer a importância de agregar o caráter imaterial é que o governo não consegue fundar uma nova definição de exercício de seu poder. A capacidade de sujeitos intervirem uns nos outros, ação sobre outra ação, como diria Michel Foucault é substituída por uma noção autoritária de poder. O estado não permitiu que o trabalho imaterial de seus servidores estabelecesse uma nova relação de poder. O Estado é moderno; os servidores são pós-modernos. O poder exercido por Sartori é o poder como sujeição, imposição de um modelo de organização.
Toda transformação da participação ativa dos servidores inaugurada por governos petistas, vai por água abaixo no governo Sartori. Ele desconsidera o valor intelectual de seus servidores, as características de produção imaterial do estado na produção audiovisual, na produção de informações e pesquisas e na gestão e pesquisas de espaços da cidade, manifestações particulares de ações de politicas públicas onde o cruzamento da prestação de serviços públicos com conhecimento é evidente. É o trabalho imaterial de servidores que faz politica pública. E eles produzem necessidades: os serviços oferecidos pela Fundação Piratini geram o mercado da TVE e da sua rádio; os serviços oferecido pela FZB, o conhecimento de coleções, gera a necessidade daquele conhecimento. É a dialética da produção de serviços públicos e necessidade de serviços públicos “O trabalho imaterial produz acima de tudo uma relação social”, dizem os Lazzarato & Negri.
Tudo o que os servidores detém de capital com conhecimento e anos de serviço toca viram ouro: a matéria prima das politicas públicas é a subjetividade do trabalhador, a capacidade do servidor público torna-se diretamente produtiva, é ativo do Estado. Os trabalhadores imateriais da FEE, da FZB e da Fundação Piratini satisfazem uma demanda de politicas públicas ao mesmo tempo que as constituem. O capitalismo derrubou as barreiras que separavam economia, poder e saber. Só Sartori que não se deu conta disso.