O estupro como espetáculo

Coluna Democracia e Política

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Créditos: Paulo Pinto/ AGPT

“É muito mais fácil um povo civilizado voltar a barbárie do que um povo bárbaro avançar em direção a civilização”. Dennis Diderot

O horror nos fascina. Ele está presente de seriados como The Walking Dead ao sensacionalismo dos programas rasteiros da TV aberta. Foi Michela Marzano em sua obra “La muerte como espectáculo” (Tusquets, 2007), que, ao analisar a violência, tortura e humilhação presente no pornô fez a pergunta essencial: ”a partir do momento em que se mostram indivíduos reduzidos a “coisas”, de quem se pode dispor ao prazer, o que nos impede de deslizarmos da ficção para a realidade”? Ao vislumbrar novamente o estupro coletivo a uma jovem de 17 anos feito, a resposta imediata que me vem é: mais nada. Pois o estupro coletivo rompe o limite artificial de qualquer representação pornô, de qualquer representação violenta, inclusive daquelas películas que supostamente representam violações reais. As cenas postas na internet pelos integrantes do estupro coletivo constituem uma prova real de que o horror da ficção já faz parte da realidade.

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Estande de divulgação da série ‘The Walking Dead’ na Comic-Con | Créditos: popculturegeek.com – originally posted to Flickr as Comic-Con 2010 – Walking Dead booth, CC BY 2.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=11407049

As cenas do vídeo do estupro da jovem provocaram a reação nacional e internacional porque  conjugou os piores pesadelos da violência real, do horror e do pornô hard. Eram cenas reais,  não havia simulação, era a tortura real que segundo Marzano são “uma violência e um horror que expressam a crueldade em estado puro”.  Imagens como as da violação de jovem até então só eram veiculadas em páginas da web profunda e no limite da ilegalidade: agora, bastou um participante do estupro coletivo postar em uma página pessoal que tornou-se acessível a visão da monstruosidade.

Tanto nas cenas do estupro real como as demais cenas de violência que circulam na internet, o efeito é que elas elevam nosso patamar de tolerância. Chama a atenção que, não bastasse os inúmeros depoimentos apoiando o estupro e denegrindo a jovem,  e  portanto, na contramão dos direitos mais fundamentais, foi a publicização da violação que foi considerada mais grave que a violação em si: felizmente, a maior parte dos fóruns foi de indignação em função da filmagem e questionando-se as razões não apenas da violência, mas também de sua divulgação. 

As imagens feitas revelam o ódio contra a mulher e a indiferença adquirida pelo Outro por uma geração de jovens. Sequer se trata de uma “cultura do estupro”, é outra coisa, é o estupro transformado em espetáculo das massas, forma cruel de violência que está penetrando na sociedade. Pergunta Marzano: estamos entrando na era da “realidade – horror”? Face ao fato de que todos temos uma máquina fotográfica e a capacidade de produzir filmes, o que nos obriga a filmar e mostrar tudo? É  informação que se coloca quando se as publica ou é outra coisa? Tais imagens são, é claro, divulgadas pelos estupradores porque são um elemento de propaganda, mesma estratégia usada por imagens e filmes de violência produzidas no oriente por grupos extremistas. 

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Créditos: Rafael Neddermeyer/ Fotos Públicas

Quem são os espectadores de tais filmes de violência extrema e de horror? Primeiro o mundo de telespectadores perversos e preconceituosos que desvalorizam a mulher mas que são incapazes da ação; segundo, e o pior, são aqueles que são capazes de provocar um ato violento contra a mulher. No caso mulçumano, os videos, afirma Marzano, são formas de recrutamento. Não temos certeza de que ocorra o mesmo, mas entendo que exacerbam o ódio contra a mulher, da mesma forma que faz o pornô. No caso do estupro da jovem adolescente, o uso de ferramentas de expressão virtual por um grupo ilegal e violento imita a forma terrorista, mas nega a forma sacrificial  “celebração da substituição do homem (mulher) pelo animal”. O grau de detalhe das descrições e opiniões sobre a jovem violentada mostra que a barbárie dos jovens e a profunda, mas é o próprio rito de sacrifício que se vê anulado na difusão das imagens: não se trata de substituir a vitima homem por uma vitima animal, é a própria mulher que se torna vitima de um sacrifício, é tratada como um animal. Nisso é pior que o terror.  

Já se diz que vivemos uma era de dessensibilização coletiva mas as imagens vieram a invadir a consciência com a imagem de um ser humano transformado em objeto, mostrando a fragilidade da ideologia de direitos humanos,
justamente o que motiva a mobilização popular. Essa recusa ao mesmo tempo incita reações e o próprio tráfico da região onde ocorreu o estupro coletivo tratou de reestabelecer a ordem e se encarregou de iniciar uma caçada aos criminosos na busca da…justiça. “A circulação destes vídeos no limite do insuportável tem como resultado instalar progressivamente no espectador uma forma de insensibilidade e de indiferença frente ao sofrimento dos demais. De maneira que o objetivo último será fará alcançado: eliminar, com a própria cumplicidade dos ocidentais, toda a forma de civilização”(p. 39). Mesmos entre os criminosos, há também uma ética. 

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Michela Marzano | Créditos: MEDEF – originally posted to Flickr as Michela Marzano, CC BY-SA 2.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=7753770

Não é possível dizer que não vimos cenas semelhantes de violência nos videojogos e alguns sites pornôs onde há mutilação, violação e tortura, e nesse sentido, a difusão das imagens do estupro é a fusão entre ficção e realidade. A ficção como assinala Marzano, foi apenas o preludio, a antessala da emergência da “realidade –horror”. Paul Virilio, de certa forma, também a antecipou ao apontar sua emergência na arte contemporânea, cada vez mais composta por restos, corpos mutilados, excreções em sua obra “Discurso sobre o horror na arte” (Casimiro Libros,2010). Essa ultrapassagem dos limites entre realidade e horror eram a palavra de ordem no seriado 24 horas, em que se  usava e abusava de afogamento, eletrocução e utilização de drogas: diz-se que as cinco primeiras temporadas da série teve não menos do que 67 casos de tortura e que o próprio exército americano havia reconhecido usar os métodos do seriado nos interrogatórios durante a Guerra do Iraque. 

Marzano aponta o surgimento destas formas de violência no fenômeno do “happy slapping“, que desde abril de 2006 estabeleceu-se como a moda e paradigma dessas imagens. Naquela data ocorreu uma agressão a uma professora da cidade de em Yvelines, França, filmada por um celular e colocada na internet. As chamadas “felizes bofetadas”, infligir dor e filmar, tornaram-se parte de uma diversão temível cujo objetivo era aplicar um “corretivo” na vítima, que passaram logo da violência à violação e o assassinato.  Esta não é exatamente a posição  assumida em parte nas redes sociais, de que a vítima “mereceu” o castigo? Essa agressão corporal quer humilhar, fazer vulnerável e principalmente “transformar o sofrimento do outro em fonte de entretenimento e diversão para compartilhar com os outros, que se tornaram numerosos graças a internet”(p.49).

Felizmente, a reação popular mostrou que ainda resta humanidade, de que não é possível acostumamo-nos ao inaceitável.  O  vídeo do estupro da jovem de 17 anos recupera uma prática bárbara antiga, dos sacrifícios humanos organizados para fins de espetáculo. Seu efeito, como qualquer vídeo violento, é produzir uma sociedade da indiferença. Filmar um estupro e divulga-lo on line, não é só divulgar uma imagem, mas é dar um valor, é atribuir-lhe um sentido. As imagens do estupro revelam uma visão do mundo e uma posição em relação ao “objeto” (sic) representado. O que há de obsceno nas imagens da menina estuprada não é apenas s imagem do sexo ensanguentado,  ela é terrivel, é claro, etc, é a ausência de qualquer mediação, é a exposição da crueldade em estado bruto como objeto de fascinação. O que o ato de postar o vídeo do estupro revela é o fracasso da razão, do pensamento de que parte da juventude que não é mais capaz de controlar suas emoções mais vis.  Como nos seriados de terror, a crueldade vem sempre acompanhada do sangue, o mesmo que foi visível nas imagens para servir de triunfo aos algozes. Não é apologia da violência das cenas que me preocupa – ela existe sim, é cruel e inumana-  mas algo ainda pior, é a apologia da indiferença que as imagens suscitam, essa sociedade sem compaixão que emerge dos comentários da internet.  Sem compaixão, sem um olhar ao Outro como ser humano, perde-se um dos fundamentos do sentimento de justiça.

 

 downloadJorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É chefe da Ação Educativa do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre e autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014). Escreve para Estado de Direito semanalmente.

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