* Elaine Harzheim Macedo
1 INTRODUÇÃO
O dogma da paridade – desdobramento da garantia constitucional da igualdade – vem duplamente contemplado na Constituição brasileira.
Enquanto o caput do art. 5º contempla a garantia que todos são iguais perante a lei, indiferentemente tratar-se de brasileiros ou estrangeiros aqui residentes, lincando a isonomia à inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, valores universais garantidos pela Carta Política, o inciso I desse mesmo artigo, pontua a igualdade entre homens e mulheres em direitos e obrigações.
Da filosofia grega, desde Aristóteles, o princípio da igualdade no tratamento político e jurídico se valeu ao longo dos séculos da proporcionalidade, na medida que toda e qualquer sociedade, tanto quanto a natureza, não se mostra igual, vem a necessidade de tratar – onde estiver presente a desigualdade – o tema a partir da proporcionalidade, afirmando o filósofo que igualdade é tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais.
Mas tal tratamento não tem um fim em si próprio e sim com vista à absoluta garantia de que a igualdade será, ao fim e ao cabo, respeitada em qualquer circunstância fática. Dizendo com outras palavras, a proporcionalidade visa a afastar as desigualdades materiais, operando como mero instrumento em favor do bem maior: a afirmação da igualdade! Ou seja, a proporcionalidade não pode servir à desigualdade, mas compensá-la, superá-la, afastá-la.
Esta é a base principiológica e constitucional da paridade entre homens e mulheres em direitos e obrigações.
Em nível de norma supranacional, basta citar o ODS n. 5, referente à Agenda 2030, firmada na Assembleia Geral da ONU de 2015, que estabeleceu a transversalidade da igualdade de gênero com vistas a uma sociedade igualitária e sustentável.
2 (ANTI)ADERÊNCIA DAS PRÁTICAS NOS ESPAÇOS PÚBLICOS DE PODER À IGUALDADE DE GÊNERO NO BRASIL
A despeito da garantia expressa impondo igualdade entre homens e mulheres em direitos e obrigações, o fato é que nos espaços de poder (público e privado) o Brasil não cumpre a paridade constitucional, desrespeitando-a dia a dia, desde sempre.
Centrando a questão no âmbito do poder público, até por respeito aos limites desta proposta de reflexão, atém-se ao problema da desigualdade de gênero no âmbito dos três poderes constitucionais: Legislativo, Executivo e Judiciário. Os dois primeiros focando na sua ascensão, que se dá pelo processo eleitoral; o último, peculiar na sua formação, na questão das promoções aos tribunais recursais locais e à composição dos tribunais superiores, já que o ingresso inicial se dá por concurso de provas e títulos, o que afasta, pelo menos em princípio, o debate de gênero, considerando a atual realidade vivenciada na seleção dos candidatos à carreira da magistratura.
2.1 Acesso aos parlamentos: o Brasil, pródigo em produção legislativa (são milhares e milhares de leis e outros atos normativos que regem a vida do brasileiro), conta com um único dispositivo tratando da questão de gênero no acesso aos cargos eletivos pelo sistema proporcional (vereança, deputados/as estaduais, deputados/as federais). Trata-se de um parágrafo de um artigo, mais precisamente o §3º do art. 10, da Lei n. 9.504/97, dispondo que os partidos deverão preencher a lista de candidaturas com um mínimo de 30 e o máximo de 70 por cento de cada gênero. Ironicamente, este dispositivo é denominado na doutrina e na jurisprudência de Lei de Quotas!, dando uma (falsa) aparência de regularidade e de atendimento ao princípio da paridade do art. 5º e seu inciso I da Constituição.
Os fatos provam o contrário.
A uma, reserva nas candidaturas, não nas vagas, tem representado um processo de exclusão e não de distribuição equânime entre os gêneros. A duas, tal disposição mostra-se kafkiana, na medida em que abre espaço para que cada partido distribua as candidaturas femininas em percentuais maiores ao mínimo estabelecido, autorizando a defesa de que o dispositivo está (formalmente) adequado à luz da Constituição, pois seus termos não vedam um maior percentual de mulheres. Porém, não é o que os partidos políticos praticam, pois nessas quase três décadas de sua vigência, a lista de candidatas mulheres para os cargos legislativos nunca ultrapassou 34%[1], conforme dados amplamente divulgados, permanecendo os homens nos percentuais máximos.
Não é diferente com os resultados das urnas, onde a representação feminina só alcançou, nas eleições de 2024, o percentual de 18% de vereadoras eleitas, nos mais de 5.500 municípios brasileiros[2], enquanto na Câmara de Deputados Federais, nas eleições de 2022, o percentual alcançado foi de 17,7% de mulheres eleitas[3].
Frente a tais dados estatísticos, é de se indagar: por que o Brasil não consegue ultrapassar esses índices que não chegam nem a 20%, eleição a eleição, com campanhas explícitas do TSE a favor da inclusão de mulheres; incentivos normativos na distribuição de recursos eleitorais públic para as campanhas eleitorais femininas; reserva de tempo de antena para as mulheres; debates acadêmicos? O que não está funcionando?
Esse contexto comprova que as práticas adotadas pelos partidos políticos são de exclusão das mulheres na participação da política brasileira e no descumprimento da garantia constitucional da igualdade de gênero, valendo-se de artimanhas tais como interpretar o que a lei diz que é piso como se fosse teto nas candidaturas femininas; fraudar a distribuição das verbas públicas eleitorais; lançar candidatas laranjas, fraudando a já restritiva Lei de Quotas; sonegar visibilidade às mulheres na vida partidária e mesmo durante a campanha, cujo somatório resulta prática inconstitucional de franca exclusão da participação da voz feminina nos ambientes legislativos.
2.2 Nas vagas dos cargos supridos pelo sistema majoritário. Pela tradição pátria, os cargos do Poder Executivo (Prefeituras, governança dos Estados e Presidência da República) e do Senado Federal são preenchidos pelo sistema majoritário de votos. Aqui a lei eleitoral é totalmente omissa: não há nenhum dispositivo tratando da participação da mulher: é um Brasil feito de homens. O resultado disso é óbvio: em mais de 100 anos de república e quase 40 da Constituição de 1988, apenas uma mulher foi eleita para o cargo de Presidente da República. Nos Estados, em 2022, das 27 unidades federativas, apenas duas governadoras foram eleitas, sequer alcançando o percentual de 10%. Nos municípios, cerca de 18% dos eleitos foram mulheres[4] nas últimas eleições municipais, com índices mais baixos em pleitos anteriores.
Não é diferente com o Senado Federal[5], que passou de 12 para 10 senadoras após as eleições de 2022, com um percentual um pouco acima de 10% de mulheres na Corte Alta.
Ou seja, que país é esse que se diz democrático e cuja Constituição de 1988 garante a paridade entre mulheres e homens em direitos e obrigações, que não consegue ao longo dessas décadas de vida republicana alcançar 20% da participação de mulheres nos cargos eletivos, embora sejam elas cerca de 52% da população, 53% do eleitorado e 46% dos filiados a partidos políticos?
2.3 As mulheres no Judiciário: o enfoque neste trabalho será a questão mais recentemente enfrentada especialmente pelo Conselho Nacional da Magistratura e que diz com a ascensão aos tribunais recursais das instâncias locais. Embora o preenchimento de suas respectivas vagas seja estabelecido pela Constituição, promovendo-se os juízes de carreira por listas alternadas de antiguidade e merecimento, o fato é que também nesses tribunais, de um modo geral, a presença de mulheres se mostra aquém da população de juízes de carreira, com nítida preferência aos candidatos homens nos atos de promoção.
Tal discrepância – também a jurisdição, como poder de Estado, deve contar com a presença e atuação das mulheres – levou o Conselho Nacional da Magistratura, órgão maior da administração do Poder Judiciário, à edição da Resolução n. 525/2023[6], ao efeito de promover a paridade de gênero nos tribunais, regulando sobre a composição de listas exclusivas de magistradas nos tribunais com menos de 40% de mulheres na sua composição, com alternância em relação à lista mista tradicional, evitando-se assim prática adotada para privilegiar nomes masculinos quando da promoção por merecimento.
Ainda que a regra não confirme a paridade integral, porque ao estabelecer sua adoção em tribunais com menos de 40% de mulheres em suas fileiras, ao fim e ao cabo enaltece cotas e não paridade absoluta, certamente é um caminho em direção à equidade de gênero nos tribunais.
Para arrematar, é flagrante e vergonhosa a falta de mulheres na composição do Supremo Tribunal Federal, onde, no máximo, tivemos duas ministras atuando simultaneamente e, na atualidade, seu número restou diminuído para uma única mulher, confirmando o que já se disse: O Brasil é um país feito de homens… e para homens, pois quando nos espaços de decisão se faz ausente a voz da mulher, a população feminina está sem representação e a população como um todo submete-se ao exercício de um poder assimétrico.
3 A TÍTULO DE CONCLUSÃO: ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL
Em breves palavras, o que se viu e continua se vendo, é que nas esferas de poder, a mulher é sub-representada. Numa sociedade onde mais de 50% da população é composta por mulheres, não há como se reconhecer uma democracia representativa. Se não há representação proporcional à população, as decisões tomadas pecam por falta de legitimação social, política e constitucional. Tal estado de fato caracteriza-se, frente às normas constitucionais, como um estado de coisas inconstitucional, o que urge ser enfrentado e superado. E o caminho, observado o devido processo legal, é o Supremo Tribunal Federal, cuja função maior é tutelar a Constituição.
- Sobre a Autora –
Elaine Harzheim Macedo
Possui graduação em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1972), especialização (1990) e mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1997) e doutorado em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2003). Foi magistrada de carreira, sendo promovida para Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em maio de 1998, onde atuou até maio de 2014. Foi Vice-Presidente e Presidente do Tribunal Regional Eleitoral, onde atuou no biênio 2012/2014. Professora catedrática adjunta, permanente, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul até 2019, tendo se aposentado em 2019. Professora palestrante da Escola Superior de Magistratura Ajuris e da ESA – Escola Superior da Advocacia da OAB/RS. Membro editorial da Revista da Ajuris, membro do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul e da Associação Brasileira de Direito Processual Constitucional. Presidente do IGADE – Instituto Gaúcho de Direito Eleitoral de 2015 a 2019, permanecendo como membro e conselheira até o presente. Associada honorária da ABEP – Associação Brasileira Elas no Processo. Advogada atuante, com ênfase em Teoria Geral do Processo, Direito Processual Civil, Direito Processual Eleitoral e Jurisdição Constitucional.
REFERÊNCIAS:
[1] In https://oglobo.globo.com/politica/eleicoes-2024/noticia/2024/08/29/numero-de-candidatura-de-mulheres-tem-a-maior-proporcao-dos-ultimos-24-anos-veja-historico.ghtml , acesso em 11/10/2025.
2 In https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2024/noticia/2024/10/07/presenca-de-mulheres-nas-camaras-cresce-e-vai-a-18percent-dos-eleitos.ghtml , acesso em 11/10/2025.
3 In https://www.cnnbrasil.com.br/politica/mulheres-aumentam-representacao-na-camara-mas-representatividade-ainda-e-baixa/ , acesso em 11/10/2025.
4 In https://www.camara.leg.br/noticias/1104771-estudo-da-camara-mostra-crescimento-de-dois-pontos-percentuais-no-numero-de-mulheres-eleitas/ , acesso em 11/10/2025.
5 In https://www12.senado.leg.br/noticias/videos/2022/10/bancada-feminina-do-senado-encolheu , acesso em 11/10/2025.
6 In https://www.cnj.jus.br/cnj-aprova-regra-de-genero-para-a-promocao-de-juizes-e-juizas/ , acesso em 11/10/2025.