O Direito Privado em 2018: retrospectiva

Autor Thiago Neves*

O ano de 2018 era um dos mais aguardados nos últimos anos no Brasil. Eventos importantes e marcantes não faltaram, para rechear de emoção nossas vidas. Dois singelos exemplos podem ser mencionados. No esporte, a Copa do Mundo se anunciava como uma redenção para a seleção brasileira, após a chocante derrota no último torneio,realizadoem nosso país, no ano de 2014. O fatídico 7×1 jamais será esquecido. As esperanças de vitória, no entanto, foram por água abaixo. Novo revés– menos humilhante desta vez, é verdade – e frustração para um povo que vê o time brasileiro como a pátria de chuteiras. Na política, a eleição mais polarizada desde a redemocratização foi marcada por discussões, brigas e violência, tanto no mundo virtual, quanto no real, como no fatídico episódio da tentativa de homicídio do candidato que acabou vencedor.Parafraseando um ex-presidente, nunca na história deste país se viu algo parecido. Foram, certamente, momentos tenebrosos e que, mesmo depois de encerrado o período eleitoral, ainda revela inúmeras tensões.

 

Mas, o objetivo deste texto não é, como nos programas de televisão que borbulham nesta época do ano, fazer um retrospectiva do que aconteceu em nosso país e, até mesmo, no mundo neste ano que termina. O que pretendo fazer é uma breve retrospectiva das principais decisões proferidas no âmbito do direito privado, e particularmente no STJ, por ser o Tribunal com competência constitucional para dar a última palavra em matéria de lei federal. Não se trata, portanto, de uma análise ampla do Judiciário em 2018, fato este que renderia não um artigo, mas muito provavelmente um tratado, daqueles com diversos volumes. Pretendo, pois, me ater ao campo de minha atuação, tanto como advogado, como professor. E esse reducionismo, ao contrário do que possa parecer, já gera inúmeros assuntos, pois não foram poucas as questões importantes decididas pelo Tribunal da Cidadania.

 

Vamos, então, à análise das dez decisões que penso ter sido mais relevantes e marcantes neste ano que se encerra.

 

Logo no início do ano Judiciário, no mês de fevereiro, a Terceira Turma do STJproferiu decisão nas polêmicas questões envolvendo retirada de conteúdos ofensivos na Internet. No julgamento do REsp 1.698.647, da relatoria da Ministra Nancy Andrighi, a Corte reiterou seu entendimento da necessidade de indicação, pela vítima, da URL – endereço eletrônico – da página que contenha as ofensas, a fim de viabilizar a determinação ao provedor de pesquisa da retirada da página de seus resultados, a chamada desindexação. Entendeu o Tribunal, ainda, que a retirada do resultado se limita à página indicada na ação, de modo que, caso venham a surgir novas publicações, ainda que replicadas da primeira desindexada, compete ao ofendido informar ao provedor de pesquisas, mediante notificação judicial ou extrajudicial, os demais endereços em que o conteúdo ofensivo venha a aparecer. A questão, por mim há muito criticada em diversas sedes, dificulta a defesa dos interesses da vítima e, particularmente, a tutela dos direitos da personalidade, sendo certo que o provedor de conteúdo tem à sua disposição toda a tecnologia necessária à busca dos resultados para a retirada dos resultados. No entanto, fico vencido diante da remansosa jurisprudência da Corte.

 

Também envolvendo casos de violação à honra na Internet, agora no mês de março,voltou à pauta do STJ a dramática questão da pornografia de vingança – revengeporn, que se caracteriza, em que pese algumas divergências, pela divulgação de conteúdo pornográfico e íntimo das pessoas como meio de vingança. Muitas imagens e vídeos são obtidos pelo agente causador do dano de modo consentido pela vítima, como nas relações entre namorados, que trocam o conteúdo privado durante a relação. No entanto, após o término desta, aquele que se sente injustiçado compartilha o conteúdo na rede mundial de computadores, expondo o outro a constrangimento e vexame, fato este que, infelizmente, acaba tendo comumente como vítimas as mulheres.Decidiu o STJ, em Recurso Especial cujo número é restrito, por se tratar de matéria afeta a segredo de Justiça, que os provedores de busca não podem ser obrigados a fazer controle prévio dos resultados que aparecem nas buscas feitas pelos usuários a fim de afastar a divulgação dos vídeos e imagens, de modo que, mais uma vez, faz-se necessário que a vítima indique todas as URLs em que o resultado vier a aparecer, a fim de que aquele conteúdo seja retirado. No entanto, destacou a Ministra Nancy Andrighi, relatora do recurso, que como previsto na Lei do Marco Civil de Internet, em se tratando de cenas de nudez e de atos sexuais de caráter privado, está dispensada a adoção de medidas judiciais, de modo que com a simples notificação extrajudicial ao provedor de pesquisa, já nasce a obrigação de retirar o resultado das buscas, sob pena de responsabilidade subsidiária com aquele que postou o conteúdo.

 

Ainda no mês de março, o STJ decidiu sobre a polêmica questão da obrigatoriedade, ou não, de planos de saúde serem obrigados a custear tratamentos experimentais, como a entrega de medicamentos ainda não registrados e autorizados a circulação pela ANVISA. No julgamento do Recurso Especial 1.628.854, a Quarta Turma do Tribunal Superior decidiu, conforme voto condutor da Ministra Relatora Isabel Gallotti, e em conformidade com o entendimento já firmado pela Segunda Seção do STJ, que é válida a exclusão contratual, assim como a recusa, pela operadora do plano de saúde, de custeio de tratamentos dessas espécies. Na hipótese, tratava-se do medicamento regorafenibe, para tratamento de câncer, e que fora negado pelo plano, tendo ocorrido a morte da beneficiária em decorrência da enfermidade.O espólio, então, na tentativa de obtenção de indenização por danos morais, teve a decisão proferida pelo Tribunal do Justiça do Estado do Rio de Janeiro reformada, decisão essa em que havia sido firmado o entendimento deque a operadora do plano deveria ter custeado o tratamento e, como não o fez, ficava obrigada indenizar. Em que pese a dramaticidade da questão, é certo que tratamentos experimentais podem causar mais prejuízos do que benefícios, de modo que, nessa ponderação, deve-se prevalecer o uso dos tratamentos já admitidos pelos órgãos competentes, cujos riscos já sejam conhecidos e possam ser plenamente assumidos pelo paciente e seus familiares.

 

Em abril, a Segunda Seção do STJ proferiu importante decisão no âmbito das relações decorrentes de contrato de seguro de dano. No julgamento do EREsp 973.725, da Relatoria do Ministro Lázaro Guimarães (Desembargador convocado do TRF5), entendeu o Tribunal que nos seguros de automóvel, é lícita a cláusula que prevê a exclusão da cobertura quando comprovado que o condutor do veículo sinistrado estava embriagado ou drogado. Na hipótese, a seguradora recusou o pagamento de indenização à família do condutor do veículo que se envolveu em acidente causando a sua morte. Segundo a Corte, a situação de embriaguez em que se encontrava o segurado levou a um agravamento do risco, que ao conduzir o automóvel nesse estado, não apenas assumiu o risco do resultado morte, mas aumentou a possibilidade de sua ocorrência. De fato, os contratos de seguro são fundados no risco, mas um risco calculado pelas partes e acobertado pela apólice. O segurado, ao se colocar em posição que dificulte uma condução segura do veículo, agrava o risco, violando inequivocamente o contrato a legitimar o afastamento do direito à indenização.

 

Foto: Agência Brasil

O STJ voltou a proferir decisão sobre a cobertura de tratamento, por operadoras de plano de saúde, agora no mês de maio. No julgamento do Recurso Especial 1.729.566, da relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, a Corte tratou da polêmica questão do tratamento off label, que se refere a uso de medicamento já aprovado e registrado pelos órgãos de controle e fiscalização, como a ANVISA, mas para fins diversos daqueles especificados na bula. Na hipótese, a beneficiária do plano de saúde pleiteava a cobertura de seu tratamento, mas com a utilização de medicamento que, segundo a bula, não seria indicado para a doença que lhe acometia. Entendeu-se, no referido recurso, que a proibição do tratamento, nesta hipótese, não deve ser negada pelo Poder Judiciário, na medida em que diversos medicamentos podem ser eficazes para outros fins não especificados no prospecto. Sem prejuízo, ressaltou o Ministro Relator a necessidade de observância do Enunciado 31 da I Jornada de Direito da Saúde, que recomenda ao magistrado, nessas hipóteses, o requerimento de informações ao Núcleo de Apoio Técnico, à Câmara Técnica ou a outros profissionais e serviços especializados, acerca do uso de medicamentos para hipóteses diversas da sua recomendação laboratorial. Trata-se, à toda evidência, de decisão importante, pois permite o avanço na utilização de medicamentos, já registrados e com venda autorizada no país, sem a limitação que as pesquisas originais para a criação do remédio impõem.

 

Também no mês de maio, a Corte proferiu outra importante decisão agora no que toca à proteção dos direitos da mulheres, particularmente à tutela de sua intimidade e à proteção da sua integridade física e psíquica. No julgamento do Recurso Especial 1.662.551, da relatoria da Ministra Nancy Andrighi, o STJ deu provimento ao recurso e condenou uma empresa de transportes a indenizar em R$ 20 mil uma mulher vítima de assédio sexual dentro de um trem. Nas instâncias inferiores, a pretensão foi rejeitada por ter entendidoo Judiciário paulista que a hipótese era abarcada por fato de terceiro e, assim, um caso fortuito, de modo que a prestadora de serviço de transporte não poderia ser obrigada a indenizar a vítima. O Tribunal Superior, entretanto, entendeu que a hipótese estava abarcada no risco da atividade, uma vez que o transportador tem o dever legal de transportar os passageiros incólumes e em segurança. Frisou-se, ainda, que nos transportes públicos as mulheres acabam mais vulneráveis a este tipo de fato, de modo que é dever do prestador de serviços zelar pela integridade delas. Tais casos, infelizmente, são cada vez mais corriqueiros não apenas em nosso país, comoao redor do mundo, e causam verdadeira repulsa, pelo quê a decisão se revela mais do que acertada, sendo esta uma forma de compelir os transportadores a adotar medidas que impeçam ou, menos, dificultem eventos odiosos como esses. Note-se, ainda, que a lei civil prevê expressamente que a responsabilidade do transportador não é elidida por culpa de terceiro, de modo que compete a ele indenizar e, posteriormente, regressar contra o agente causadordo dano.

 

Em junho, o Tribunal da Cidadania ingressou no campo afetivo, especialmente para os amantes de animais. Em decisão inédita e interessantíssima, a Corte, através do voto vencedor do Ministro Relator Luis Felipe Salomão,reconheceu o direito deum ex-companheiro em união estável de visitar o cão de estimação do casal após o rompimento da relação.Há que se observar, contudo, que o STJ não fez qualquer equiparação entre o pet e uma criança, mas,muito pelo contrário, reconheceu que o animal é um bem semovente, mas entendeu que muito embora sejam passíveis de posse e propriedade, não podem ser tratados como uma coisa meramente inanimada, haja vista as relações afetivas que travam com os seres humanos.Por essa razão, e mais uma vez sem confundir a guarda de uma criança com a situação em litígio, reconheceu o direito do ex-companheiro de ter consigo, em determinados períodos de tempo, a companhia do bicho, em prestígio à dignidade da pessoa humana do ex-dono que mantinha relação afetiva com seu animal de estimação. Tal decisão, por certo, revela a nova face do direito, que se preocupa mais com a afetividade e as emoções do que com a frigidez da natureza jurídica de um instituto. A inserção dos animais de estimação no meio familiar tem provocado inúmeras mudanças nas relações sociais, particularmente entre casais, sendo cada vez mais comuns o litígios envolvendo a posse desses seres que, embora não humanos, têm inequivocamente sentimentos, despertando o amor de seus donos, de modo que se revela importante o reconhecimento da relevância dessas relações.

 

Já no mês de agosto, o STJ tomou outra decisão relevantíssima, e que repercute na vida de milhares de brasileiros. No julgamento de Recurso Especial cuja numeração foi preservada por se caracterizar como segredo de Justiça, a Terceira Turma do Tribunal entendeu que a prisão civil do devedor de alimentos só pode ocorrer nos casos em que ficar comprovada a urgência no pagamento dos alimentos. No referido julgado, a Corte afirmou que a medida extrema de prisão só se justifica nos casos em que a não prestação imediata de alimentos põe em risco a vida do alimentando. Caso contrário, havendo a possibilidade de adoção de outras medidas de satisfação do crédito, estas é que devem ser manejadas, de modo a afastar a medida civil de restrição da liberdade do alimentante. Em que pese o emprego do fundamento da execução menos gravosa para o devedor, penso que o entendimento adotado pela Corte é perigoso e pode pôr em risco o maior interesse da criança, particularmente naqueles casos em que, embora tenha condições de pagar os alimentos, o genitor se furta ao cumprimento da obrigação, de modo que a prisão se revela como poderosa ferramenta de coerção.

 

Marco Aurélio Bellizze, STJ Foto

No mês de novembro, o STJ fixou importante teses para milhares de consumidores que se utilizam de transporte aéreo. No julgamento do Recurso Especial 1.699.780, da relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze, entendeu a Terceira Turma do Tribunal, unificando o entendimento da Corte, que é abusiva a prática das companhias de transporte aéreo de cancelar automaticamente o bilhete de volta do consumidor que não comparece no voo de ida. Segundo o voto do Ministro Relator, o cancelamento feito pelo transportador, obrigando o passageiro a adquirir nova passagem aérea, já estando paga a anterior, coloca o consumidor em posição de manifesta e exagerada desvantagem, evidenciando nítida ofensa à boa-fé. Na hipótese concreta, dois consumidores adquiriram passagens de ida e volta para destinos determinados, mas se equivocaram quanto ao aeroporto em que tomariam o voo de ida. Para não perder a viagem, adquiriram outra passagem, apenas de ida, para o primeiro itinerário. Ocorre que, ao tentar realizar o check in do voo de volta, descobriram que o bilhete fora cancelado pelo não comparecimento no voo de ida. Entendeu o STJ que o cancelamento da passagem de volta caracteriza o negócio como venda casada, na medida em que a companhia aérea condicionou a passagem de volta à utilização da passagem do trecho de ida.Entendeu-se, ainda, que embora a aquisição do pacote de passagens “ida e volta” seja mais barato do que a compra de passagens avulsas, há evidentemente duas compras, de modo que a não utilização de uma das passagens não pode invalidar a outra. Em nosso entender, a situação, embora não observado pela Corte, leva também a evidente enriquecimento ilícito, pois a companhia aérea, em que pese cancele o bilhete, mantém a venda, de modo que receberá duas vezes pelo mesmo itinerário.

 

Por fim, no final de novembro, o Superior Tribunal de Justiça proferiu decisão de grande repercussão social. Ao julgar o Recurso Especial 1.155.590, da relatoria do Ministro Marco Buzzi, entendeu o Tribunal que o benefício do passe livre em transporte interestadual, conferido pela Lei 8.899/1994 às pessoas com deficiência e de baixa renda, não se aplica aos transportes aéreos. O entendimento foi firmado no âmbito de Ação Civil Pública proposta pelo MP-DF, que pretendia assegurar o aludido direito também nessa espécie de transporte.Em primeira instância, o Juízo de piso entendeu pelo reconhecimento do direito, e condenou as companhias aéreas a destinar gratuitamente dois assentos em seus voos para pessoas com deficiência e seu respectivo acompanhante. Em sede recursal, o TJDF reformou a sentença e julgou improcedente o pedido, Acórdão que acabou por ser confirmado pelo STJ. Segundo a Corte Superior, a questão está abarcada pela discricionariedade do legislador, que não abrangeu o transporte aéreo no referido benefício, após regulamentação pelo Decreto 3.691/2000 e pela Portaria Interministerial 03/2001, de modo que não se poderia fazer uma interpretação ampliativa para estender o benefício a esta modalidade de transporte, de modo que o silêncio da lei não se revela como esquecimento, e sim como silêncio eloquente, isto é, uma não previsão propositadamente desejada, a fim de afastar o direito à gratuidade dos transportes aéreos. De fato, ao se tratar de uma hipótese de exceção, a extensão do benefício só poderia se dar por expressa previsão legal, em que pese a hipótese trate de pessoas hipervulneráveis. Ao intérprete não cabe substituir o legislador, pelo quê a decisão se revela tecnicamente acertada.

 

Uma retrospectiva de decisões judiciais não é uma tarefa fácil. Em um país em que se multiplicam os processos, escolher aquilo que parece ser mais relevante para uma apresentação e curta análise é de extrema dificuldade. Sem prejuízo, há temas que afetam, inequivocamente, o direito de milhares de pessoas, que justificam uma maior atenção. E foi isso que eu pretendi com este texto. Penso, sem dúvida alguma, que alguns assuntos não menos relevantes acabaram ficando de fora, mas, diante da infinidade de matérias, este me pareceu o top tena ser examinado. Com essa relação é possível perceber o quão conflituosas e representativas são as discussões em matéria de direito privado, que é o ramo do direito responsável pela regulação das relações privadas do dia-a-dia dos indivíduos. Neste curto artigo, foram examinadas desde questões envolvendo a privacidade das pessoas, até questões contratuais meramente patrimoniais que afetam a vida de um “sem número” de sujeitos. E assim é, ano a ano, em nosso Judiciário, e não há nenhuma expectativa de que esta caminhada tenha um fim. Por isso, desejo a todos um feliz 2019, com a esperança de que, mesmo sem um ponto de chegada, o trajeto possa ser um pouco menos conflituoso.

 

  • Thiago Neves é Professor de Direito Civil, Empresarial e Consumidor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ, Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e Vice-Presidente Administrativo da Academia Brasileira de Direito Civil. Articulista do Jornal Estado de Direito.
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