Magda Azário Kanaan Polanczyk**
Introdução. O binômio inseparável do Direito Administrativo Contemporâneo.
Este relatório defende a tese de que o Direito Administrativo brasileiro, impulsionado pela promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF/88), transcendeu sua concepção clássica de um conjunto de regras para a gestão da máquina estatal. Ele se transformou em um campo jurídico dinâmico, cuja legitimidade e função se definem na intersecção de dois eixos interdependentes: a reconstrução institucional e a promoção da justiça social. A primeira vertente refere-se ao processo contínuo de tornar o Estado mais democrático, transparente, probo e eficiente. A segunda, à sua finalidade precípua de concretizar direitos fundamentais e reduzir as profundas desigualdades que marcam a sociedade brasileira.
A trajetória do Direito Administrativo no Brasil revela uma transição de um paradigma autoritário, formalista e focado nas prerrogativas estatais para um modelo democrático, consensual e finalístico.1 Este movimento é fruto direto do fenômeno da “constitucionalização” do direito público, que impregnou todos os ramos jurídicos com os valores e princípios da Carta de 1988.2 A Constituição deixou de ser um documento de intenções políticas para se tornar a norma fundamental que irradia seus efeitos sobre toda a atividade administrativa, conferindo-lhe um novo sentido e propósito.4 Este processo, contudo, não é linear nem isento de tensões. Ele representa uma arena de disputas contínuas sobre os rumos e o papel do Estado, onde avanços convivem com desafios e ameaças de retrocesso. A análise que se segue buscará desvendar essa dupla hélice, demonstrando como a reconstrução das instituições e a busca pela justiça social se entrelaçam e se condicionam mutuamente, e como a legislação se tornou o principal campo onde essa transformação se materializa.
Parte I. Fundamentos da Transformação. A Releitura do Direito Administrativo sob a Égide da Constituição.
Capítulo 1. A Constitucionalização como Matriz da Mudança.
O fenômeno da constitucionalização é a pedra angular da transformação do Direito Administrativo brasileiro. Ele não se resume à mera inserção de matérias administrativas no texto constitucional, mas representa um movimento profundo de “releitura de institutos e conceitos básicos da Administração Pública à luz dos princípios constitucionais”.4 Nesse novo arranjo, a Constituição assume o “centro da razão do Estado”, e sua força normativa passa a condicionar a validade e a interpretação de toda a ordem jurídica infraconstitucional.2
Essa mudança possui um marco filosófico e teórico claro: a superação do positivismo jurídico estrito, que apartava o direito da moral e da justiça, e a ascensão do pós-positivismo.2 Este novo paradigma reconhece a normatividade dos princípios, que deixam de ser meras diretrizes programáticas para se tornarem normas jurídicas vinculantes, capazes de orientar a decisão e invalidar atos que com eles sejam incompatíveis. A interpretação jurídica, e em especial a administrativa, passa a exigir uma “argumentação jurídica” robusta, que pondere valores e justifique as decisões não apenas com base na letra fria da lei, mas em sua conformidade com o projeto constitucional.2 Opera-se, assim, um verdadeiro “giro epistemológico na hermenêutica administrativa”, no qual a compreensão da norma administrativa se torna indissociável dos valores e fins consagrados na Constituição.5
No cerne dessa transformação está a centralidade assumida pelos direitos fundamentais. A ordem jurídica inaugurada em 1988 posiciona a dignidade da pessoa humana como valor supremo e os direitos fundamentais como o núcleo axiológico do sistema.2 Essa nova arquitetura reorienta toda a atividade administrativa, que passa a ter como finalidade primordial a tutela e a concretização desses direitos.6 A Administração Pública não atua mais primariamente para a realização de um interesse estatal abstrato, mas para a garantia das condições de uma vida digna para todos os cidadãos.
Capítulo 2. A Reconstrução Institucional em Foco.
A “reconstrução institucional” pode ser definida como o processo contínuo de reformulação das estruturas, práticas e normas da Administração Pública para alinhá-las aos princípios da democracia, probidade, transparência e eficiência. É a materialização da “Reconstrução Democrática do Direito Público” 2, um esforço para superar um legado de autoritarismo e formalismo. Esse movimento é impulsionado, em parte, por uma “crise da legalidade”, na qual o modelo de uma administração estritamente submetida à lei emanada de um parlamento em crise se mostra insuficiente, aumentando a relevância dos órgãos de controle e do Poder Judiciário.7
Uma das manifestações mais claras dessa reconstrução é a superação da centralidade do ato administrativo. A doutrina clássica concebia o ato como a principal forma de manifestação unilateral da vontade estatal.1 A visão contemporânea, por sua vez, valoriza o processo e o procedimento administrativo como espaços essenciais de participação, diálogo e justificação das decisões públicas.8 A legitimidade da atuação administrativa não reside mais apenas na autoridade de quem emana o ato, mas na qualidade do procedimento que o antecede.
Essa mudança de perspectiva força uma releitura dos pilares clássicos do regime jurídico-administrativo:
a)Supremacia do Interesse Público: Este princípio, antes invocado como um “cheque em branco” para justificar a imposição da vontade estatal sobre o indivíduo, é redimensionado. O interesse público primário passa a ser a realização dos fins constitucionais, notadamente a dignidade da pessoa humana e a efetivação dos direitos fundamentais.6 O interesse da coletividade não se contrapõe, mas se realiza através da garantia dos direitos de cada um.
b)Discricionariedade Administrativa: A margem de escolha do administrador público deixa de ser uma zona isenta de controle. A discricionariedade transforma-se em um poder-dever vinculado aos princípios e objetivos da Constituição. As escolhas do gestor devem ser motivadas e justificadas com base na sua adequação para atingir as finalidades constitucionais, sujeitando-se a um controle judicial mais intenso quanto à razoabilidade e proporcionalidade.9
c)Os Princípios do Artigo 37 da CF/88. O famoso acrônimo LIMPE (Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência) constitui o alicerce operacional dessa reconstrução.10 A legalidade passa a ser entendida como conformidade a todo o bloco de constitucionalidade, não apenas à lei em sentido estrito. A impessoalidade veda que a atuação estatal seja usada para beneficiar ou prejudicar pessoas específicas, exigindo um tratamento isonômico a todos.11-12 A moralidade exige honestidade e boa-fé, e a publicidade, que deve ter “caráter educativo, informativo ou de orientação social”, torna-se um pressuposto para o controle e a participação.14 Por fim, a eficiência impõe à Administração o dever de buscar os melhores resultados com o menor custo, sempre em prol do interesse público.
Capítulo 3. A Justiça Social como Finalidade Administrativa.
Se a reconstrução institucional redesenha os meios da atuação estatal, a justiça social define seus fins. A conexão entre a atividade administrativa e a busca por uma sociedade mais justa é direta e explícita no texto constitucional. O artigo 3º da CF/88 estabelece os Objetivos Fundamentais da República, que funcionam como “nortes básicos a serem seguidos pelo Poder Público”.15 Estes objetivos – construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades; e promover o bem de todos – não são meras declarações de intenção, mas sim mandatos constitucionais que vinculam e direcionam toda a Administração Pública.16 A interpretação e aplicação de toda a legislação administrativa, incluindo os princípios do artigo 37, devem ser feitas à luz dessas metas finalísticas.19
A materialização desses objetivos ocorre, em grande medida, através da efetivação dos direitos sociais elencados no artigo 6º da CF/88, como educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer e segurança.20 A garantia desses direitos exige uma postura ativa e prestacional do Estado, que se concretiza por meio de políticas públicas e da prestação de serviços pela Administração.23 Portanto, a justiça social deixa de ser um conceito abstrato para se tornar a própria substância da função administrativa.
Essa dinâmica reflete a evolução do papel do Estado no Brasil. O Direito Administrativo acompanha a transição de um Estado Liberal, que se limitava a garantir a ordem, para um Estado Social, que assume a responsabilidade pelo bem-estar de seus cidadãos, e culmina no Estado Democrático de Direito, que busca uma síntese entre a autoridade estatal e o respeito intransigente aos direitos fundamentais.24 Nesse novo contexto, o Direito Administrativo se afirma como um “instrumento para a perpetuação da democracia” e um meio indispensável para a “consecução da justiça social”.24
É fundamental compreender que reconstrução institucional e justiça social não são agendas paralelas, mas sim interdependentes. Uma instituição pública marcada pela corrupção, pelo clientelismo ou pela ineficiência é estruturalmente incapaz de promover justiça social de forma efetiva. Os recursos se perdem, as políticas não chegam aos seus destinatários e a confiança pública é erodida. Por outro lado, a demanda crescente por justiça social – seja nas ruas, seja nos tribunais através da judicialização de direitos – expõe as fragilidades institucionais e pressiona por sua reforma. A busca pela efetivação de um direito social, como o acesso à saúde, pode revelar a necessidade de maior transparência nos gastos, de processos de contratação mais eficientes e de um combate mais rigoroso aos desvios. Assim, a reconstrução não é um fim em si mesma, mas o meio necessário para o fim maior da justiça social, e a busca por este fim, por sua vez, torna-se o principal motor da reconstrução.
Parte II. O Arsenal Legislativo da Mudança: Instrumentos Normativos de Reconstrução e Justiça.
A transformação do Direito Administrativo não ocorre apenas no plano doutrinário ou jurisprudencial. Ela se manifesta em um robusto conjunto de leis que, desde 1988, vêm redesenhando a relação entre o Estado, os cidadãos e o mercado. Cada uma dessas normas atua, simultaneamente, como um vetor de reconstrução institucional e como um catalisador para a justiça social, conforme sintetizado na tabela abaixo.
Norma | Objetivo Principal | Artigos Relevan-tes (Exem-plos) | Vetor de Reconstrução Institucional | Vetor de Justiça Social |
Lei nº 12.527/2011 LAI | Garantir o acesso à informação pública. | Art.3º, V; Art.7º; Art.8º. | Fortalece a transparência, o controle social, a governança e a cultura de responsabi-lidade (accountabi-lity). | Empodera o cidadão para fiscalizar políticas públicas, exigir direitos e combater a corrupção que drena recursos sociais. |
Lei nº 8.429/1992 LIA | Punir atos de improbidade administrativa | Art. 1º; Art. 9º; Art. 10; Art. 11. | Combate a corrupção, protege a moralidade administrativa e a integridade do patrimônio público e social. | Assegura que recursos públicos sejam aplicados em suas finalidades, viabilizando políticas sociais. Permite o ressarcimento de danos. |
Lei nº 12.846/2013 (Anticorrupção) | Responsabilizar objetivamente pessoas jurídicas por atos de corrupção. | Art. 1º; Art. 5º; Art. 7º. | Induz a adoção de programas de compliance, mudando a cultura corporativa e a relação público-privado. | Permite a recuperação de ativos via acordos de leniência, que podem ser destinados a áreas sociais, reparando o dano à coletividade. |
Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações) | Modernizar e dar eficiência às contratações públicas. | Art. 5º; Art. 11; Art. 25; Art. 62. | Aumenta o planejamento, a governança e a transparência (PNCP). Cria novas modalidades de contratação. | Promove o desenvolvimento nacional sustentável, a inclusão de micro e pequenas empresas e a exigência de conformidade social. |
Lei nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade) | Ordenar o desenvolvimento urbano e a função social da propriedade. | Art. 2º; Art. 28; Art. 40. | Cria instrumentos de planejamento (Plano Diretor) e gestão democrática das cidades. | Combate a especulação imobiliária, promove a regularização fundiária e busca garantir o direito à moradia e a cidades mais justas. |
Lei nº 12.990/2014 (Lei de Cotas) | Promover a igualdade racial no acesso a cargos públicos federais. | Art. 1º; Art. 2º. | Reconstrói a burocracia estatal para torná-la mais representativa da diversidade social, aumentando sua legitimidade e eficiência. | Atua como política de reparação histórica, promovendo a inclusão e a igualdade material para grupos historicamente marginalizados. |
Capítulo 4. Transparência e Controle Social: A Lei de Acesso à Informação( Lei 12.527/2011 – LAI ).
A Lei de Acesso à Informação (LAI) é um dos pilares da reconstrução democrática do Estado brasileiro. Ela materializa o princípio constitucional da publicidade (Art. 37, CF/88) de forma radical, invertendo a lógica histórica do sigilo como regra e da publicidade como exceção. A LAI estabelece que o acesso à informação pública é um direito fundamental do cidadão, e o dever de fornecer essa informação é uma obrigação do Estado.27 Ao instituir mecanismos de transparência ativa (a divulgação proativa de dados de interesse público, como orçamentos e contratos) e passiva (a resposta a pedidos de informação feitos por qualquer cidadão), a lei reconstrói a relação entre governantes e governados, submetendo a Administração a um escrutínio público permanente e fortalecendo o controle social.29
Do ponto de vista da justiça social, a LAI é uma ferramenta de empoderamento. Ela permite que cidadãos, jornalistas, pesquisadores, movimentos sociais e organizações não-governamentais (ONGs) monitorem a formulação e a execução de políticas públicas, verifiquem a alocação de recursos e cobrem a efetivação de direitos.27 Estudos de caso demonstram como ONGs e movimentos sociais utilizam a LAI para fiscalizar desde a aplicação de verbas na educação e saúde até o impacto de grandes projetos de infraestrutura, tornando-se um instrumento vital na luta por direitos e no combate à corrupção que drena recursos que deveriam financiar políticas sociais.31 A transparência na gestão dos recursos públicos é, portanto, um pré-requisito indispensável para a justiça distributiva e para a própria consolidação da cidadania.28
Capítulo 5. O Microssistema de Defesa da Probidade e do Patrimônio Social
As legislações de combate à corrupção formam um verdadeiro microssistema normativo que atua diretamente na reconstrução da integridade institucional e, por consequência, na viabilização da justiça social. Elas não operam de forma isolada; pelo contrário, formam um ecossistema interligado. A transparência garantida pela LAI é o que frequentemente fornece os insumos para a atuação dos órgãos de controle. As informações obtidas via LAI sobre um contrato suspeito podem deflagrar uma investigação por improbidade administrativa contra o gestor público responsável e um processo de responsabilização contra a empresa envolvida. Ao final, os valores recuperados por meio dessas ações podem ser revertidos para a sociedade, financiando as políticas sociais que foram prejudicadas pelo desvio, fechando um ciclo virtuoso que conecta a reconstrução da probidade com a promoção da justiça.
5.1. A Lei de Improbidade Administrativa ( Lei 8.429/92 e alterações da Lei 14.230/2021 ).
A Lei de Improbidade Administrativa (LIA) é um dos principais instrumentos jurídicos para a defesa da moralidade e da probidade no setor público. Seu objetivo central é tutelar a “integridade do patrimônio público e social”, punindo agentes públicos e terceiros que praticam atos de enriquecimento ilícito, lesão ao erário ou que atentam contra os princípios da Administração Pública.35 Nesse sentido, a LIA é uma ferramenta essencial de reconstrução institucional, pois busca expurgar práticas corruptas que minam a legitimidade e a capacidade do Estado. O Ministério Público detém um papel proeminente na propositura das ações de improbidade, atuando como defensor da sociedade contra a má gestão e o desvio de recursos.37
A conexão com a justiça social é direta e inegável. Cada real desviado pela corrupção é um real a menos para a construção de escolas, hospitais e para o financiamento de programas sociais.40 A Lei de Improbidade Administrativa, ao prever o ressarcimento integral do dano e a aplicação de multas, não apenas pune o agente ímprobo, mas também busca recompor o erário, viabilizando que os recursos retornem à sua finalidade social. A lei pode ser utilizada, por exemplo, para responsabilizar gestores que deliberadamente descumprem as leis orçamentárias, deixando de aplicar os mínimos constitucionais em saúde e educação para priorizar gastos de menor relevância social.40
A reforma promovida pela Lei nº 14.230/2021 gerou intenso debate, ao extinguir a modalidade culposa de improbidade e exigir a comprovação de dolo específico para a condenação. Essa alteração foi vista por alguns como um retrocesso no combate à corrupção e por outros como uma medida necessária para evitar a criminalização da política e proteger o gestor probo de punições por erros escusáveis. O Supremo Tribunal Federal( STF ), no julgamento do Tema 1.199 (ARE 843.989), pacificou parte da controvérsia, definindo que a nova lei, por ser mais benéfica, retroage para atingir os atos de improbidade culposos praticados antes de sua vigência, desde que ainda não haja condenação transitada em julgado. O Superior Tribunal de Justiça( STJ ) tem seguido essa orientação, consolidando a tese da retroatividade limitada.41
5.2. A Lei Anticorrupção ( Lei 12.846/2013 ).
A Lei Anticorrupção representou uma mudança de paradigma no ordenamento jurídico brasileiro. Inspirada em convenções internacionais, como a da ONU e da OCDE, das quais o Brasil é signatário 44, a lei inovou ao estabelecer a responsabilidade objetiva – civil e administrativa – de pessoas jurídicas por atos de corrupção praticados em seu interesse ou benefício.48 Isso significa que a empresa pode ser punida independentemente da comprovação de culpa de seus dirigentes. Essa mudança radical na reconstrução institucional visa a atacar a corrupção em sua origem, incentivando as empresas a adotarem robustos programas de integridade e compliance como forma de prevenir, detectar e remediar ilícitos.
O principal instrumento de justiça social previsto na lei é o acordo de leniência. Por meio dele, a empresa que colabora com as investigações pode ter suas sanções atenuadas, mas se compromete a reparar o dano e a devolver os valores obtidos indevidamente.50 A destinação desses recursos é um ponto crucial. Segundo dados da Controladoria-Geral da União (CGU), os acordos de leniência já celebrados somam mais de R$ 19,3 bilhões em valores acordados, com uma parcela significativa já restituída aos cofres públicos.50 Esses valores, que de outra forma teriam sido perdidos para a corrupção, podem e devem ser revertidos para o financiamento de políticas públicas, transformando o mecanismo de combate à corrupção em uma fonte de recursos para a promoção da justiça social.51 O Painel de Acordos de Leniência, mantido pela Controladoria-Geral da União(CGU ), é a ferramenta de transparência que permite à sociedade acompanhar esses números e a destinação dos valores recuperados.53
Capítulo 6. A Contratação Pública como Ferramenta de Desenvolvimento: A Nova Lei de Licitações( Lei 14.133/2021 ).
A Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021) é um exemplo paradigmático de como o Direito Administrativo busca conciliar a reconstrução institucional com a justiça social. No plano institucional, a lei visa modernizar e tornar mais eficientes as compras públicas, introduzindo novas modalidades de contratação, fortalecendo a fase de planejamento e, crucialmente, criando o Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) como plataforma única para a divulgação de todos os atos do processo licitatório, ampliando a transparência e o controle.55
O grande avanço da lei, contudo, está na sua dimensão de justiça social. Ela eleva o desenvolvimento nacional sustentável à condição de princípio fundamental (Art. 5º) e de objetivo explícito do processo licitatório( Artigo 11 ).56-57 Isso representa uma mudança conceitual profunda: a licitação deixa de ser um procedimento que busca apenas selecionar a proposta economicamente mais vantajosa (o menor preço) para se tornar um instrumento de indução de políticas públicas. O Estado, como o maior comprador do país, passa a usar seu poder de compra para fomentar práticas empresariais alinhadas com a sustentabilidade em sua tríplice dimensão: ambiental, social e de governança (ESG).58
Na prática, isso se traduz na possibilidade de incluir nos editais critérios de desempate ou até mesmo requisitos de habilitação que valorizem empresas com certificações ambientais, que promovam a equidade de gênero, que contratem pessoas com deficiência ou egressos do sistema prisional, e que mantenham a regularidade de suas obrigações trabalhistas e sociais.61 Além disso, a lei mantém e aprimora o tratamento favorecido para microempresas e empresas de pequeno porte (Artigo 4º), por meio de mecanismos como licitações exclusivas e cotas, o que contribui para a desconcentração de mercado e a distribuição de renda.63 Assim, o ato de contratar do Estado deixa de ser um fim em si mesmo para se tornar um poderoso meio de moldar o comportamento do mercado e promover, de forma indireta mas efetiva, a justiça social.
Capítulo 7. Ações Afirmativas e a Reconstrução Interna do Estado.
A busca por reconstrução institucional e justiça social não se limita à relação do Estado com a sociedade, mas também se volta para dentro, para a própria composição da burocracia estatal e para a forma como o espaço urbano é organizado.
7.1. A Lei de Cotas no Serviço Público( Lei 12.990/2014, atualizada pela Lei 15.142/2025 ).
A política de cotas raciais em concursos públicos é uma intervenção direta na estrutura interna do Estado. No plano da reconstrução institucional, a lei busca remodelar a burocracia brasileira para que ela se torne mais representativa da diversidade étnico-racial da nação. O STF, ao declarar a constitucionalidade da Lei nº 12.990/2014, endossou o argumento de que a medida contribui para a eficiência administrativa ao criar uma “burocracia representativa”, capaz de incorporar diferentes perspectivas e interesses na formulação e implementação de políticas públicas, tornando-as mais legítimas e eficazes.64
No eixo da justiça social, a lei é um dos mais importantes instrumentos de ação afirmativa do país. Ela atua como uma política de reparação pelas desvantagens históricas impostas à população negra e como um mecanismo de promoção da igualdade de oportunidades e da igualdade material.65 Estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada( IPEA )demonstram o impacto positivo da lei, com um aumento significativo no ingresso de servidores negros no Executivo federal, embora ainda persistam desafios relacionados à desigualdade de remuneração e à sub-representação em cargos de alta hierarquia.67 A recente atualização da política, que ampliou a reserva de vagas para 30% e incluiu expressamente indígenas e quilombolas, aprofunda seu compromisso com a justiça social e a reparação histórica.65
7.2. O Estatuto da Cidade( Lei 10.257/2001 ).
O Estatuto da Cidade é a principal norma de Direito Urbanístico do país e um poderoso instrumento de justiça social. Seu objetivo central, conforme o Art. 2º, é “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana”.70 No campo da reconstrução institucional, o Estatuto redefine a governança urbana, tornando obrigatória a elaboração de um Plano Diretor para municípios com mais de 20 mil habitantes e estabelecendo a gestão democrática da cidade, com a participação da comunidade na formulação e acompanhamento das políticas de desenvolvimento urbano.70
Sua vocação para a justiça social é explícita. A lei visa garantir o “direito a cidades sustentáveis”, o que inclui o direito à moradia, ao saneamento, ao transporte e aos serviços públicos.70 Para isso, cria uma série de instrumentos para combater a especulação imobiliária e as profundas desigualdades socioespaciais que caracterizam as cidades brasileiras. Ferramentas como a Outorga Onerosa do Direito de Construir (que cobra do empreendedor para construir acima de um coeficiente básico), as Zonas Especiais de Interesse Social( ZEIS )e os diversos instrumentos de regularização fundiária buscam democratizar o acesso à terra urbanizada e garantir que a valorização imobiliária gerada pelo investimento público seja revertida em benefício da coletividade.72 O Estatuto, portanto, subordina o direito de propriedade ao seu cumprimento de uma função social, sendo uma peça legislativa fundamental na luta por cidades mais justas e inclusivas.
Parte III. O Judiciário como Arena: A Concretização e os Limites da Justiça via Tribunais.
A transformação do Direito Administrativo tem no Poder Judiciário um de seus protagonistas mais visíveis. A “expansão da jurisdição constitucional” 2 e a demanda social por justiça levaram os tribunais, em especial o STF, a assumirem um papel ativo na concretização de direitos e no controle das políticas públicas, atuando como uma arena central onde as tensões entre reconstrução institucional e justiça social são mediadas e, por vezes, decididas.76 A tabela a seguir sintetiza julgamentos paradigmáticos que ilustram essa evolução.
Tema/Julgamento | Tese Firmada (Síntese) | Votos Relevantes | Impacto na Relação Reconstrução / Justiça Social |
ADPF 347 (Estado de Coisas Inconstitucional – Sistema Prisional) | Reconhecimento de uma violação massiva e persistente de direitos fundamentais no sistema carcerário, exigindo a adoção de medidas estruturais pelos Poderes Executivo e Legislativo. | Rel. Min. Marco Aurélio. | Inova ao reconhecer uma falha estrutural do Estado, forçando uma reconstrução institucional coordenada e dialogada para garantir a dignidade (justiça social) da população carcerária. |
RE 684.612 (Tema 698 – Judicialização de Políticas Públicas) | A intervenção judicial em políticas públicas é legítima em caso de omissão grave, mas deve, como regra, apontar finalidades e determinar que a Administração apresente um plano, em vez de impor medidas pontuais. | Redator p/ Acórdão: Min. Luís Roberto Barroso. Votos vencidos: Min. Ricardo Lewandowski, Min. Edson Fachin. | Modula o ativismo judicial, buscando um equilíbrio entre a efetivação de direitos sociais e o respeito à separação de poderes e à discricionariedade administrativa. Propõe um modelo de “diálogo institucional”. |
ARE 843.989 (Tema 1199 – Nova LIA) | A revogação da modalidade culposa pela Lei 14.230/2021 retroage para beneficiar réus em ações em curso, mas não atinge a coisa julgada. O novo regime prescricional não retroage. | Rel. Min. Alexandre de Moraes. Votos parcialmente vencidos em diferentes pontos. | Redefine o alcance da responsabilidade por improbidade, impactando a reconstrução do arcabouço de probidade. A retroatividade beneficia agentes, mas a irretroatividade da prescrição mantém a proteção ao erário em casos mais antigos. |
RE 852.475 (Tema 897 – Imprescritibilidade do Ressarcimento) | As ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato de improbidade administrativa doloso são imprescritíveis. (“Tema 897 do STF – Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos …”) | Redator p/ Acórdão: Min. Edson Fachin. | Fortalece o pilar da reconstrução da probidade, garantindo que o Estado não perca o direito de reaver valores desviados por atos dolosos, o que tem impacto direto na capacidade de financiar políticas sociais. |
ADC 41 (Lei de Cotas no Serviço Público) | Declarou a constitucionalidade da Lei nº 12.990/2014, validando a reserva de vagas para negros em concursos públicos como medida compatível com o princípio da isonomia. | Rel. Min. Luís Roberto Barroso. | Legitimou judicialmente um dos mais importantes instrumentos de reconstrução da burocracia estatal e de promoção da justiça social, consolidando a política de ações afirmativas no âmbito da Administração Pública. |
Capítulo 8. A Judicialização das Políticas Públicas e o Diálogo Institucional.
A judicialização de políticas públicas é um dos fenômenos mais marcantes do direito público brasileiro contemporâneo. Diante da omissão ou da atuação deficiente do Poder Executivo na garantia de direitos fundamentais, cidadãos e instituições como o Ministério Público e a Defensoria Pública têm recorrido cada vez mais ao Judiciário para exigir prestações estatais, como o fornecimento de medicamentos, a construção de creches ou a realização de obras de saneamento.76 Essa dinâmica coloca o Judiciário em uma posição delicada, equilibrando-se entre o dever de garantir a efetividade da Constituição e o risco de violar a separação de poderes ao interferir na discricionariedade do administrador público.77
O julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 684.612, que fixou a tese do Tema 698, é um marco na tentativa do STF de balizar essa questão. O caso envolvia uma decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que determinava ao município a realização de concurso público para um hospital específico, entre outras medidas pontuais.79 No voto vencedor, o Ministro Luís Roberto Barroso, embora reafirmando a legitimidade da intervenção judicial em casos de inércia ou deficiência grave do serviço, propôs uma mudança de abordagem.81
A tese firmada estabelece que o Judiciário, como regra, deve abster-se de determinar medidas específicas. Em vez disso, deve “apontar as finalidades a serem alcançadas e determinar à Administração Pública que apresente um plano e/ou os meios adequados para alcançar o resultado“.82 Essa solução busca promover um diálogo institucional. Ela respeita a expertise técnica e a visão sistêmica do administrador, que está em melhor posição para alocar recursos escassos e definir as prioridades dentro de uma política pública complexa. Ao mesmo tempo, não deixa o direito desprotegido, pois o plano apresentado pela Administração será submetido ao controle judicial quanto à sua adequação e efetividade. Esse modelo transforma o processo judicial de um ato de substituição da decisão administrativa para um ato de indução e monitoramento, representando uma forma sofisticada de conciliar a busca por justiça social com a reconstrução de uma relação mais colaborativa e eficiente entre os Poderes.
Magda Azario Kanaan Polanczyk é advogada, mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, especialista em Metodologia do Ensino Superior (PUCRS), com destacada atuação nas áreas de Direito Tributário, Administrativo, Contratos e Sucessões. Professora universitária por mais de três décadas, lecionou na PUCRS (1997–2023), na Faculdade de Direito da UFRGS e na Faculdade São Judas Tadeu. Foi juíza do Tribunal Administrativo de Recursos Fiscais da SEFAZ/RS, conselheira do CARF/MF em Brasília e diretora-adjunta da ESA/OABRS, onde também idealizou o Primeiro Simpósio de Direito Administrativo. Integra entidades como a FESDT, IBDT, IARGS, AASP, CMA/OABRS e o Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/RS. É conferencista, parecerista e autora de artigos jurídicos. Atua com firme compromisso com a ética, a equidade e a formação crítica na advocacia.
O estudo continua na próxima semana, acompanhe no site www.estadodedireito.com.br