Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Fabiana da Silva Oliveira. O Direito Achado nos Lares: o Sexismo Doméstico e suas Implicações na Carreira das Magistradas Brasileiras. Dissertação de Mestrado apresentada e aprovada no Programa Interinstitucional – Minter (Escola de Magistratura do Estado do Amapá) de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Brasília, 2024, 96 fls.
Participar da banca examinadora e orientar o estudo que a ela foi submetido foi para mim uma experiência de muita satisfação. A dissertação, como está no título, foi desenvolvida no âmbito do programa interinstitucional (Minter) que a Faculdade de Direito da UnB (Programa de Pós-Graduação) desenvolveu com a Escola de Magistratura do Estado do Amapá (TJAP).
Tem sido um programa muito bem sucedido. Há pouco participei da defesa de uma outra candidatura originada do programa – https://estadodedireito.com.br/o-apagao-no-amapa-os-movimentos-sociais-e-o-direito-fundamental-a-energia-eletrica/ – a de Lêda Simone Lima Rodrigues. O Apagão no Amapá: os Movimentos Sociais e o Direito Fundamental à Energia Elétrica. Dissertação de Mestrado. Brasília: Faculdade de Direito da UnB/Programa de Pós-Graduação em Direito, 2023, 99 fls., tema de uma recensão nesta Coluna Lido para Você.
No curso da resenha mencionei ter participado intensamente das atividades docentes no projeto interinstitucional, desenvolvendo a disciplina O Direito Achado na Rua que certamente, trouxe muitas sugestões para os pesquisadores do projeto incluindo, explicitamente, a autora da Dissertação.
Anotei que não só o trabalho de Lêda, mas a própria mobilização do grupo de mestrandos, não obstante a referência comum de sua origem funcional (magistrados e agentes do sistema de justiça), acabaram por demonstrar decidida aceitação aos fundamentos político-teóricos que dão lastro à disciplina. E mencionei a criação, ao tempo de realização do projeto, da coluna Coluna: O Direito achado nas ruas, campos, rios e florestas amapaenses (http://odireitoachadonarua.blogspot.com/search?q=direito+achado+nos+campos+amapaenses), cujo texto inaugural – seguiram-se outros – com o mesmo título, foi publicado na Gazeta do Amapá, edição de 23/01/2022, chamada de capa e página 17, com a assinatura do Desembargador João Guilherme Lages Mendes.
Entre os muitos ensaios assinados pelo desembargador João Lages Mendes, ou por seus colegas de Minter, por eles convidados, no contexto da Coluna, também Fabiana se apresentou com contribuição na qual exercitou elementos autorais, empíricos e teóricos, que antecipam aspectos que vieram a se integrar ao seu tema de dissertação.
Remeto – https://agazetadoamapa.com.br/as-maes-da-pandemia-e-o-direito-achado-no-lares/ – à abertura sentipensante (Fals Borda) que está presente no trabalho, e que já se percebe na abertura do artigo:
A visão humanista da epidemia do Coronavírus é de dor e crueldade para todos. No entanto, estou aqui para falar sobre as mães da pandemia. As mães dizimadas pela dor da morte dos seus filhos, pela fome, pelo desemprego, pelo isolamento. As mães com seus filhos sem escola, sem tecnologia, sem amigos, sem brincar, sem sorrir. As mães que perderam suas mães. As mães que perderam sua rede de apoio, seja pelo isolamento, seja pelo luto, seja pela ausência de escolas e de creches. Sim! O Coronavírus foi letal às mães, pela depressão da solidão, excesso de trabalho, falta trabalho, falta de comida, falta de esperança.
As mães se desdobraram e as mães sangraram. Sangraram em silêncio. Vivenciaram uma dor de morte, de exaustão da carga de trabalho, dos traumas, da fome e da miséria. São mães jovens, mães solo, mães casadas, mães estudantes, mães desempregadas, mães empregadas, mães solitárias e com solidão, mães da Amazônia, mães do Amapá, mães das Pontes e das Palafitas, mães das Aldeias, mães do Bailique, mães do Mundo, mães de luto, mães com filhos e sem filhos. Para todas elas a pandemia foi mortal em algum sentido.
A doença aqui no Amapá chegou rápido, primeiro em Macapá e depois foi enraizado e se alastrando paras os interiores, chegaram nas aldeias, nas comunidades ribeirinhas, chegou na fronteira. Essas mães sentiram cada desgaste físico e mental que as restrições sanitárias trouxeram e passaram por situações que jamais poderiam imaginar. Foi desumano para nós.
O cuidado exigido pela pandemia para a redução da contaminação pela COVID-19, foi levado para dentro de casa e tem como protagonista as Mães. Aulas remotas, trabalho a distância, cuidados com a casa, alimentação, higiene com objetos. Nesse momento, ficou claro que os homens/pais não receberam a mesma sobrecarga de trabalho das mulheres/mães, e a divisão sexual do trabalho ainda é sexista. Essas mães também perderam seus empregos, suas diárias, viram seu comércio fechar e tiveram que retornar ao lar e dizer aos seus filhos que não tinham o que lhes dar de comer. Muitas mães deram ossos e pés de galinha como alimentos para seus filhos.
Para concluir de modo bem interpelante, aliás, como é próprio de sua assertividade que aprendi a valorizar desde o processo bem demarcado pelo autoral, na orientação:
O artigo não era para falar sobre o Direito Achado nas Ruas, Campos, Rios e Florestas Amapaenses? Sim, mas essa Mãe que aqui vos escreve, resolveu falar sobre O Direito Achado dentro dos Lares, relatando como foi e como é para nós Mulheres/Mães o cotidiano de sobrecarga de trabalho, e o quanto a pandemia nos levou à exaustão física e mental, crises de ansiedade e depressão. Contei apenas algumas histórias vividas pelas nossas personagens Mães, na sua maioria Amapaenses.
Falando de Direito Achado na Rua, trago aqui a construção dialética de Roberto Lyra Filho e sua visão de libertação humana e concretização dos Direitos Humanos. Nesse contexto, precisamos pensar e debater sobre a desigualdade de gêneros em todos os seus aspectos, inclusive sobre a divisão de trabalhos domésticos, responsabilidade paterna e maternidade real, são pautas importantes para a libertação e desromantização da Mulher/Mãe e concretização de seus direitos.
Aqui uma apenas uma reflexão sobre Mulheres/Mães da pandemia e o quanto precisamos lutar por essa igualdade de gênero e pelo fim de uma sociedade patriarcal, na esperança de um dia sermos libertas das amarras do machismo, preconceito.
Peço ao leitor que ao final dessa leitura pergunte a uma mãe próxima a você se ela precisa de ajuda. E vamos refletir sobre o papel da mulher dentro dos lares na busca por concretizar a libertação feminina. Viva o Direito Achado nas Ruas e nos Lares! Viva as Mulheres! Viva as Mães! Mulheres/Mães, Empoderem-se e Libertem-se!
Essa disposição, característica do protagonismo da Autora, seu carisma, e atitude perseverante sobretudo com seus objetivos temáticos, podem ser vivamente contstados desde a entrevista, que concedeu para o jornalista João Negrão, para a série O Direito Achado na Rua: https://expresso61.com.br/2022/04/05/o-direito-achado-na-rua-entrevista-a-juiza-fabiana-oliveira/.
Volto à Dissertação de Fabiana. A Banca Examinadora foi formada por mim (Presidente), na condição de orientador e pelas professoras Lívia Gimenes Dias da Fonseca (membro interno, UnB) e Eneida Vinhaes Bello Dultra (membro externo). E de que trata o trabalho, diz o seu Resumo:
Esta dissertação aborda duas questões interligadas: o sexismo no trabalho doméstico e a participação das mulheres na magistratura, destacando as consequências desse primeiro fenômeno nas políticas judiciárias para a promoção da igualdade de gênero da equidade. Discute-se o trabalho doméstico não remunerado, frequentemente invisível e permeado por sexismo e a consequente desigualdade na divisão das tarefas domésticas, que resulta em diversas consequências negativas, incluindo dificuldades enfrentadas pelas mulheres no mercado de trabalho e, logicamente, na carreira jurídica. Apesar dos avanços sociais, a igualdade na divisão do trabalho doméstico ainda é sutil, levando à desvalorização e sobrecarga das mulheres. Para isso, são explorados conceitos como sexismo e gênero, evidenciando como essas questões influenciam as relações sociais e a estrutura patriarcal que perpetua a divisão desigual do trabalho doméstico para destaca a importância de reconhecer o sexismo doméstico como um problema arraigado culturalmente, que macula a garantia da igualdade constitucional e impede uma transformação que liberte as mulheres da integralidade das responsabilidades domésticas que prejudicam suas carreiras e saúde. Em contrapartida, aborda-se o avanço das mulheres na magistratura, destacando a luta contra o machismo estrutural e a necessidade de promover a igualdade de gênero no sistema judiciário. Apesar dos marcos históricos que evidenciam a superação de obstáculos decorrentes do sexismo, as mulheres ainda enfrentam desafios significativos para alcançar representatividade nos mais altos escalões da magistratura. A persistência da divisão desigual das tarefas domésticas também é mencionada como um fator que impacta negativamente a ascensão profissional das mulheres. Assim, a pesquisa propõe o reconhecimento do “Direito Achado nos Lares”, uma extensão do conceito de “O Direito Achado na Rua”, que visa trazer a reflexão sobre o direito para dentro do ambiente doméstico, para a proposição de políticas públicas e iniciativas institucionais que promovam a equidade de gênero na magistratura, incluindo a implementação de ações afirmativas, políticas efetivas de valorização das magistradas e medidas para combater o sexismo doméstico. Para tanto, enfatiza-se a necessidade de uma mudança cultural e política para enfrentar o sexismo e promover a igualdade de gênero, tanto no ambiente doméstico quanto profissional. A valorização do trabalho doméstico, a redistribuição equitativa das responsabilidades familiares e o combate ao machismo estrutural são apontados como passos essenciais para alcançar uma sociedade mais justa e igualitária.
Para desenvolver seu escopo a Autora elaborou um roteiro analítico que está representado no Sumário da Dissertação:
INTRODUÇÃO
1 O SEXISMO DOMÉSTICO: A DESIGUAL DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO NO LAR
1.1 O SEXISMO E SUAS CONCEPÇÕES
1.2 O SEXISMO NA DIVISÃO DO TRABALHO DOMÉSTICO
1.2.1 O papel da mulher no lar
1.2.2 A busca pela igualdade nos lares
1.3 A CONSEQUÊNCIA DO SEXISMO DOMÉSTICO PARA A CARREIRA PROFISSIONAL DA MULHER
1.3.1 A cultura patriarcal e a inserção da mulher no mercado de trabalho
1.3.2 A mulher profissional e as dificuldades encontradas em razão do sexismo doméstico
2 A PARTICIPAÇÃO FEMININA NO PODER JUDICIÁRIO
2.1 A HISTÓRIA DA MULHER NO JUDICIÁRIO
2.2 A PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES NA MAGISTRATURA BRASILEIRA
2.3 AS JUÍZAS TAMBÉM SÃO “DONAS DE CASA”: OS DESAFIOS NA ASCENSÃO DA CARREIRA DE MAGISTRADA
3 O DIREITO ACHADO NOS LARES: ANSEIOS DE EQUIDADE DE GÊNERO NA CASA E NO TRABALHO DAS MAGISTRADAS
3.1 O DIREITO ACHADO NA RUA: A CONCEPÇÃO DE DIREITO APLICADO AOS LARES
3.2 AS DIFICULDADES DA CARREIRA E DA VIDA PRIVADA DAS MAGISTRADAS
3.3 OS REFLEXOS DO DIREITO DE IGUALDADE ACHADO NO LAR E AS AÇÕES DE ENFRENTAMENTO AO SEXISMO DOMÉSTICO
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
Não foi fácil, nem protocolar o debate da Autora com a Banca, notadamente com as professoras que a integraram, ambas expoentes no campo dos estudos feministas. O resultado final, nos limites de um trabalho dissertativo, foi reconhecido por sua correção no desenho final, resultado do acolhimento de muitas indicações das examinadoras, acolhidas pela Autora, tanto no foco – a perspectiva da atuação da mulher magistrada e a agenda de seu protagonismo de luta por reconhecimento – e no enquadramento epistemológico.
Fabiana deu ênfase assim, até por seu engajamento militante na condição de magistrada, aqueles enunciados de cujas gestões participou, hoje inscritos como itens de relevância e parâmetros pelo próprio Conselho Nacional de Justiça – https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/protocolo-para-julgamento-com-perspectiva-de-genero/. E, especificamente, os que mais mobilizaram Fabiana: a política de participação feminina no Poder Judiciário e o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero.
De minha parte, cuidei que o trabalho de Fabiana se inscrevesse com pertinência ao construto paradigmático do Movimento (Coletivo, Grupo de Pesquisa) O Direito Achado na Rua: a determinação do espaço de manifestação do social instituinte de direitos – a rua, o cárcere, o manicômio, os becos, a aldeia, os quilombos, as florestas, as águas, a noite, a rede, o constitucionalismo, os lares…; o sujeito (sempre coletivo na perspectiva do protagonismo instituinte e os achados; que vão adensar e cartografar a fortuna crítica de O Direito Achado na Rua (https://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-contribuicoes-para-a-teoria-critica-do-direito/).
Quero fazer circular entre os pesquisadores do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, nas palavras da Autora, a sua contribuição para inserir nessa fortuna crítica o seu trabalho:
A expressão “O Direito Achado na Rua”, idealizada pelo Professor José Geraldo de Sousa Júnior, que em continuidade e homenagem ao Professor Roberto Lyra Filho, formula, programa e organiza no ano de 1987, a concepção de Direito que surge dos espaços públicos – Rua – onde os protagonistas do Direito participam através da comunicação democrática em sua formação e concepção, tratando-o como expressão transformadora e de liberdade:
Ora, O Direito Achado na Rua se articula a partir de uma dimensão prática e outra teórica. A sua origem remonta à proposta formulada por Roberto Lyra Filho da chamada Nova Escola Jurídica Brasileira – designada Nair, em homenagem consagrada pelo professor a uma de suas fundadoras, a professora Nair Bicalho – não só por ser a Nair-gente, mas por se representar como a Nayyr (ár.), brilhante, luminosa que, por seu turno, constitui talvez o seu primeiro referencial teórico, fincando as bases de uma teoria crítica do direito eminentemente brasileira, com raízes na sociologia e filosofia jurídica em perspectiva dialética, como expresso no posicionamento que inaugura em 1982, a Revista Direito e Avesso, dirigida pelo José Geraldo de Sousa Júnior. (Sousa Júnior, 2021, p. 20)
Assim, a concepção de “O Direito Achado na Rua” é fruto da reflexão e da prática de um grupo de intelectuais reunidos no movimento Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR), cujo principal expoente foi o professor Roberto Lyra Filho, responsável por encontrar essa “nova concepção do Direito nas ruas, como espaço concreto de manifestação e metaforizada enquanto esfera pública democratizada” e por possibilitar a formação da “expressão de uma das mais vibrantes correntes críticas do direito no Brasil”, designada de O Direito Achado na Rua” (Sousa Júnior, 2021, p. 20).
Assim, O Direito Achado na Rua (ODANR) firmou-se não só como um movimento libertador, mas como a proposta de um direito alternativo capaz de promover a justiça social, isto porque, após morte de Roberto Lyra Filho, em 1986, passou a ser um projeto da Universidade Nacional de Brasília (UNB) coordenado pelos professores José Geraldo de Souza Júnior e Alexandre Bernardino Costa:
[…] O Direito Achado na Rua, um curso à distância (operacionalizado por cartas no diálogo com os alunos) que reuniu de renomados nomes da filosofia e sociologia crítica do direito e ciências sociais, em um momento de profunda transformação do direito, do Estado e da sociedade brasileira, sob os auspícios da Constituinte. A partir daí, o sucesso e reedição do curso, o José Geraldo recebe propostas parcerias de sindicatos, associações de juristas e movimentos sociais para organizar novas edições daquele tal O Direito Achado na Rua, consolidando, assim, já no início da década de 1990, a dimensão prática do projeto, constituindo-se como curso de articulação de intelectuais e setores críticos do campo jurídico com setores organizados da sociedade.
Foi assim que se consolidou, no início da década de 1990, a dimensão prática do projeto materializado como curso de extensão, por meio de cursos de formação e projetos de extensão realizados a partir da Universidade de Brasília, que resultou na Série O Direito Achado Rua, atualmente composta por dez volumes editados, disponíveis no blog dedicado ao assunto :
o Introdução crítica ao direito (Volume 1, 1987);
o Introdução crítica ao direito do trabalho (Volume 2, 1993);
o Introdução crítica ao direito agrário (Volume 3, 2002);
o Introdução crítica ao direito à saúde (Volume 4, 2009 );
o Introdução crítica ao das mulheres (Volume 5, 2011);
o Introducción crítica al derecho a la salud (Volume 6, 2012);
o Introdução crítica à de transição na América Latina (Volume 7, 2015);
o Introdução ao direito à comunicação e à informação (Volume 8, 2016);
o Introdução crítica ao direito urbanístico (Volume 9, 2019); e
o Introdução crítica ao direito como liberdade (Volume 10, 2021).
Essa série vem se constituindo uma:
[…] coleção de referência na universidade em seu diálogo com os movimentos sociais, suas assessorias jurídicas, operadores do Direito e agentes de cidadania, a partir dos temas que formam um expressivo acervo por meio do qual se estabelece o diálogo entre a justiça social e o conhecimento necessário à sua realização. (Sousa Junior, 2019, p. 2778)
Para além do espaço de pesquisa acadêmica e institucional propriamente dita, esse movimento concentra seu objetivo na transformação dos ambientes públicos para permitir a modificação social por um novo pensar do direito:
O direito como ‘expressão de uma legítima organização social da liberdade’ constitui o marco conceitual original do projeto denominado O Direito Achado na Rua. Nascido há 30 anos em meio à resistente beleza do Cerrado, O Direito Achado na Rua floresce no ambiente histórico dos trabalhos da Assembleia Constituinte, para constituir-se em um projeto de formulação de uma nova concepção de direito, em uma nova sociedade que se anunciava mais livre, justa e solidária, e que por seu turno apresenta hoje dilemas e desafios que nos convocam à reflexão-ação. (Sousa Júnior, 2021, p. 19)
Assim, nasce ODANR como uma expressão da organização social, dos movimentos populares, das perspectivas de liberdade e emancipação do direito. É a partir das Ruas, dos Campos, das Pontes, dos Rios, das Florestas e de tantos outros lugares que se encontra a voz que ecoa, através de O Direito Achado na Rua, para emancipar, dar acesso à justiça, encontrar o Direito Alternativo, autônomo e libertador.
Nessa linha de pensamento, o Direito Achado na Rua inspira os Lares para propor a reflexão por um direito moderno, que derruba as paredes do patriarcado, do racismo, do preconceito no que diz respeito ao resgate histórico de uma sociedade colonial.
O professor José Geraldo de Sousa Junior em sua resenha acerca das contribuições de O Direito Achado na Rua para a teoria crítica do direito e dos direitos humanos (SOUSA JUNIOR: 2024), lembra que “depois da realização do Seminário Internacional O Direito Como Liberdade: 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, o volume 10 da Série, com o título de Introdução Crítica ao Direito como Liberdade, estava posto como mais amplo e atualizado balanço da fortuna crítica desse projeto substantivo”.
Ele anota que nessa fortuna crítica, há contribuições que desde “a sua concepção até os momentos atuais, a partir de suas linhas de pesquisa, ora para se projetar em novas formulações teóricas e práticas, a partir de uma atualização de temas que hoje”. Trata-se, ele acrescenta, de demarcar essas novas contribuições e emergências, ou constituindo novos temas ou revistando questões já designadas. Assim, diz ele:
nos trabalhos cotidianos, do fazer acadêmico e político, o contínuo desse projeto se realiza permanentemente, atento à emergências, revisitações e discernimentos próprios de uma travessia que responde a urgências de discernimento sobre as três perspectivas que balizam o projeto: determinar o espaço social e político de sociabilidades vivas; compreender e reconhecer os protagonismos que se movem nesses espaços, seus movimentos e os sujeitos coletivos de direito que neles se manifestam; e aferir os achados que desafiam inteligibilidade como categorias de um direito vivo.
Isso se materializa em monografias, ensaios, artigos, dissertações, teses, que aplicam essas categorias e esses parâmetros, e que formam hoje um magnífico repositório, a partir de resultados que se espalham no Brasil e mundo afora (SOUSA JUNIOR: 2024).
Assim que, do “Direito achado na rua” ao “Direito achado na noite”, busca-se tornar visíveis as estratégias discursivas, administrativas e jurídicas que alguns grupos de poder põem em prática em prol da lógica de gentrificação de nossas cidades, em nome de certos valores morais conservadores. E o faz, desestabilizando essas tentativas, demonstrando suas armadilhas e contradições, sua intenção contrária ao gozo efetivo dos direitos. Ao mesmo tempo, retoma o caminho da transformação, da construção de possibilidades frente a essas dinâmicas. Ainda em comentário à construção dessas possibilidades, ao examinar o livro de Willy Moura, traça o professor José Geraldo (SOUSA JUNIOR: 2024), um percurso no qual O Direito Achado na Rua se atualiza e se reinventa em sua concepção e prática:
São esses referenciais que vão lhe dar confiança para aventar categorias inéditas como “a noite como espaço”, nessa fortuna crítica que em O Direito Achado na Rua tem levado a alargar, na ação dos sujeitos coletivos de direitos e suas práticas instituintes de novos direitos, a demarcação de novos espaços sociais, para além da metáfora da rua, e assim discernir, ressignificando, espaços críticos como direitos achados na rede, nas águas, nas aldeias, nas florestas, no campo, no cárcere, no manicômio, no armário, no gueto…na noite. Uma construção que dialoga com os sujeitos em seu protagonismo inter-subjetivo quando assumem a titularidade coletiva de direitos (SOUSA JUNIOR, et al Orgs: 2021).
A proposta, nesse contexto, é acolher o ideário de O Direito Achado Na Rua e levá-lo para dentro de casa, pois não há mais que se fechar as portas dos lares para a rua, mas fazê-la adentrar com a mesma visão humanista, libertadora e igualitária. Pretende-se, desta forma, avaliar, questionar e, principalmente, transformar a situação da mulher dentro de casa, libertando-a de seu papel limitado de “dona de casa”, criadora de filhos, para dar voz e sustentar direitos que a proteja da sobrecarga advinda do trabalho doméstico não remunerado, que lhe representa dupla ou tripla jornada, e que, por isso, afeta seu avanço nos espaços de poder.
Nessa perspectiva, “O Direito Achado nos Lares” é a expressão lançada no espaço privado – doméstico – para visibilizar o direito e o papel social da mulher de superar e romper as estruturas patriarcais e alcançar a igualdade de divisão de tarefas com os homens, parceiros de jornada.
Para tanto, O Direito Achado nos Lares procura impulsionar a mudança do papel social e sexual dos indivíduos nas relações decorrentes das construções familiares modernas, retirando a mulher do papel de protagonista das atividades não remuneradas exercidas no lar e responsável, quase que de forma exclusiva, pelas funções de cuidado com a organização e gerenciamento das obrigações domésticas e criação dos filhos, ou seja, desconstruindo a imagem da família com estruturas predominantemente patriarcais.
É claro que desde a perspectiva de O Direito Achado na Rua, sua concepção e prática, ainda que a configuração do doméstico, nos lares, não significa uma redução ao individual atomizado da dimensão consciente dessa redução. Há uma intra-subjetivação que se agudiza na mobilização que leva, tal como indica O Direito Achado na Rua, instaurar ressignificando espaços sociais nos quais a atuação instituinte de sujeitos coletivos de direito, abre novas juridicidades, novos achados de direito (SOUSA JUNIOR et al Orgs: 2023).
Por isso que antecipo aqui a constatação que levo para as conclusões, ao aludir ao protagonismo de diversos movimentos, como o Grupo Antígona do Tribunal de Justiça do Paraná e a Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE), e desde o seu pioneirismo a Associação Juízes para a Democracia (AJD), que têm se mobilizado em prol da igualdade de gênero no judiciário, buscando implementar políticas e ações que promovam a participação e valorização das magistradas.
Ao longo do estudo, tal como se reporá na conclusão desta Dissertação, foi possível constatar que já resta consolidada a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário, instituída pelo Conselho Nacional de Justiça em 2018, a qual tem o objetivo de transpor o “telhado de vidro” já referido e caracterizado.
Desde a implementação dessa política de enfrentamento da desigualdade de gênero, foram realizadas pesquisas e oportunizados debates voltados ao mapeamento dessa baixa participação feminina, o que deu ensejo à elaboração de alguns normativos responsáveis pela implementação de ações em busca dessa equidade de gênero nos tribunais.
Considero perfeitamente válida a aproximação que Fabiana de Oliveira faz para a abordagem de O Direito Achado na Rua desde a vertente do Direito Achado nos Lares. Curiosamente, sustentada de modo muito orgânico, no sentido intelectual e político do termo, ela tem nuances que a presentem, embora por distintas razões. Mas com opções adotadas com muita consciência de que ela traduz engajamento.
Há sempre uma aproximação que não necessariamente carrega uma mesma intencionalidade, mas que, talvez por isso, corrobore a consistência de escolhas bem definidas. Em IL DIRITTO DI AVERE DIRITTI, di minima&moralia pubblicato giovedì, 10 Ottobre 2013 • 3 Commenti (https://www.minimaetmoralia.it/wp/estratti/stefano-rodota-il-diritto-di-avere-diritti/), notável jurista (e político recém-falecido) Stefano Rodotà, nos fala sobre “a necessidade inegável de direitos e de direito manifesta-se em todo o lado, desafia todas as formas de repressão e inerva a própria política. E assim, com a ação quotidiana, diferentes sujeitos encenam uma declaração ininterrupta de direitos, que tira a sua força não de alguma formalização ou reconhecimento de cima, mas da profunda convicção de mulheres e homens de que só assim podem encontrar reconhecimento e respeito pelos seus dignidade e pela sua própria humanidade. Estamos perante uma ligação sem precedentes entre a abstração dos direitos e a concretude das necessidades, que põe sujeitos reais a trabalhar”.
Para ele, certamente, “não os ‘sujeitos históricos’ da grande transformação moderna, a burguesia e a classe trabalhadora, mas uma pluralidade de sujeitos agora ligados entre si por redes planetárias. Não um “intelecto geral”, nem uma multidão indeterminada, mas uma multiplicidade laboriosa de mulheres e homens que encontram, e sobretudo criam, oportunidades políticas para evitar ceder à passividade e à subordinação”.
Mas, realmente, numa aferição que me surpreende porque ativa uma categoria metafórica com a qual instalamos toda uma linha de pesquisa (O Direito Achado na Rua, cf. Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq), ele prossegue: “Todos estes sujeitos ignoram o que, no final do século XVIII, começou em torno das duas margens do “Lago Atlântico”, não são dominados por alguma ‘tirania de valores’, mas interpretam, cada um à sua maneira, a liberdade e os direitos ao longo do tempo que vivemos. Aqui não é a ‘razão ocidental’ em ação, mas algo mais profundo, que tem as suas raízes na condição humana. Uma condição histórica, porém, não uma natureza da qual se possa extrair a essência dos direitos. Por que, de fato, só agora tantos condenados da terra os reconhecem, invocam, desafiam? Por que são eles os protagonistas, os adivinhos de um ‘direito achado da rua’? (‘diritto trovato per strada’)”.
Foto Valter Campanato | José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55 |