O combate à corrupção

Coluna Pensando Poeticamente Direito e Política

Se você deseja se tornar um colunista do site Estado de Direito, entre em contato através do e-mail contato@estadodedireito.com.br
Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Poder do Estado

Escrevi, num passado não muito distante, que o Brasil se caracteriza por ser um país de formação nitidamente patrimonialista, entendendo-se por patrimonialismo, de maneira singela, aquela “forma de organização social que se sustenta no patrimônio considerado como conjunto de bens, materiais e não materiais, mas com valor de uso e de troca, e que podem pertencer a um indivíduo ou a uma empresa, pública ou privada“, consoante a noção fornecida pelo verbete do Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa.

Sob tal aspecto, a riqueza maior é concentrada em poder do Estado, que, por causa disso, passa a exercer enorme pressão sobre o meio empresarial, notadamente nos setores oligopolistas como telecomunicações, energia, transporte aéreo, exploração de petróleo etc.). Em consequência desse modelo, as pessoas com capacidade verdadeiramente empreendedora são envolvidas num emaranhado jurídico quase impossível de ser obedecido, ainda que assessoradas por excelentes advogados.  Em razão de tal circunstância, são obrigadas a manter uma espécie de relação simbiótica com o Poder Público a fim de se sustentarem empresarialmente.

Apontamentos da origem

O eminente professor Luís Roberto Barroso (O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas, 5ª ed., Renovar, Rio de Janeiro/São Paulo, 2001,  p. 316), também ministro da nossa mais alta Corte de Justiça, refere-se ao atávico patrimonialismo da formação social brasileira, fazendo-o da seguinte forma: “O colonialismo português, que, como o espanhol, foi produto de uma monarquia absolutista, assentou as bases do patrimonialismo, arquétipo de relações políticas, econômicas e sociais que predispõem à burocracia, ao paternalismo, à ineficiência e à corrupção. Os administradores designados ligavam-se ao monarca por laços de lealdade pessoal e por objetivos comuns de lucro, antes que por princípios de legitimidade e dever funcional. Daí a gestão da coisa pública em obediência a pressupostos privatistas e estamentais, de modo a traduzir fielmente, na Administração Pública, as aspirações imediatas da classe que lhe compõe o quadro burocrático. O agente público, assim, moralmente descomprometido com o serviço público e sua eficiência, age em função da retribuição material e do prestígio social.”    

Nada mais exato, ao que parece. A etiologia da nossa corrupção endêmica está indissoluvelmente ligada a tais aspectos, postos em realce nas judiciosas considerações do citado ministro.

Perguntado se a corrupção no Brasil teria sua origem nesse caráter patrimonialista da nossa sociedade, assim se pronunciou o cientista político Bolívar Lamounier, em entrevista publicada no jornal “O Estado de São Paulo” (edição de 13/07/2008, caderno Aliás, p. J4):

“O problema da corrupção é muito mais profundo. Hoje estamos muito desarmados intelectualmente para compreender suas origens. O que nos sobra são dois consensos. O primeiro é que a corrupção é generalizada na sociedade e todos discordamos do comportamento de todo mundo. O segundo é que a impunidade é ampla. Há uma total incapacidade de aplicar as leis. Se fôssemos punir, segundo o que manda a lei, toda a corrupção que há no País teríamos que pôr na cadeia metade da população.”

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Razão assistia, por certo, ao ilustre articulista do Estadão. A impunidade no Brasil sempre foi, de fato, amplíssima, tendo os magistrados e os tribunais, muitas vezes — mesmo dotados de plena capacidade e qualificação para aplicar as leis penais —, encontrado numerosas dificuldades para torná-las eficazes, tantos são os meandros existentes no processo penal brasileiro em favor dos réus e dos que escarnecem do estatuto repressivo em vigor no País…

Manutenção do status quo

Quando o Brasil consegue — seja pelo que já se obteve com a operação Lava Jato, seja pela luta das instituições como Polícia Federal, Ministério Público Federal e Poder Judiciário —, pela vez primeira, dar mostras de que é possível inaugurar-se uma nova era, totalmente diversa da acrasia ética que sempre caracterizou o Estado brasileiro, colocando-se na cadeia gente poderosíssima e que sempre se considerou acima da lei, eis que as forças dos diversos tipos de oligarquias ainda remanescentes (estas, sim, extremamente conservadoras)  unem-se para a manutenção do status quo que sempre lhes favoreceu… O recente exemplo do Congresso Nacional, cavilosamente trabalhado na calada da madrugada, para intimidar juízes, procuradores e policiais, fala por si…

Resultados positivos

E, sob tal aspecto, pode-se até concluir que o ano de 2016 terá apresentado alguns resultados muito positivos no que se refere às primícias de uma nova era para o Brasil: afastou-se uma Presidente da República que não só destroçou a “Última Flor do Lácio, inculta e bela”, de que nos falava o grande Olavo Bilac, como desgraçou o País do Oiapoque ao Chuí e dos pampas aos seringais; prendeu-se um todo-poderoso presidente da Câmara dos Deputados, que deu um espetáculo de pirotecnia hermenêutica para explicar as fortunas camufladas na Suíça; coarctou-se os superpoderes de um presidente do Senado que teve a proeza de realizar admirável contorcionismo exegético da Constituição da República para que a ex- presidente fosse cassada por ter cometido o crime de responsabilidade, mas permanecesse habilitada para o exercício dos seus direitos políticos…

Tal episódio fez-me lembrar de um artigo, publicado pelo Estadão, em plena época da ditadura militar, no qual eu tentava explicar a razão pela qual o movimento surrealista, que tanto êxito obtivera no domínio das artes, em várias partes do mundo, praticamente passara despercebido nas terras brasileiras. É que a arte atua como um sucedâneo da realidade e o Brasil já era — e sempre terá sido — um País surrealista…

Vem à balha, a propósito, a seguinte afirmação do saudoso humorista Chico Anysio, em entrevista concedida ao jornalista Marcone Formiga, no fim do ano de 2002:

“O Brasil não foi o país que inventou a corrupção, mas inventou o perdão para ela.”

Ninguém questionará que o perdão é uma grande virtude da caridade cristã, mas está mais do que na hora de reconhecermos que sua aplicação não deve ocorrer no plano da administração pública e sim, apenas, no âmbito da vertente religiosa. É hora de construirmos um novo Brasil…

 

Newton de Lucca.jpg]
Newton De Lucca é  Articulista do Estado de Direito – Mestre, Doutor, Livre-Docente, Adjunto e Titular pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde leciona nos cursos e graduação e pós-graduação; Desembargador Federal do TRF da 3a. Região – presidente no biênio 2012/2014; Membro da Academia Paulista de Magistrados. Membro da Academia Paulista de Direito. Presidente da Comissão de Proteção ao Consumidor no âmbito do comércio eletrônico do Ministério da Justiça. Vice-Presidente do Instituto Latino-americano de Derecho Privado.

Comente

Comentários

  • (will not be published)

Comente e compartilhe