JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: A dívida histórica que o Brasil precisa pagar

Por Dra. Sara Wagner York*

A “justiça de transição”, um conceito que busca reparar e garantir a não-repetição de atrocidades cometidas por regimes autoritários, nunca se consolidou de fato no Brasil. O que testemunhamos, ao longo da nossa história recente, foi uma *”justiça de transação”* — uma barganha política em que a impunidade se tornou a moeda de troca para a tão almejada estabilidade democrática. Essa tese, amplamente debatida em círculos acadêmicos, ecoa no Congresso Nacional e ganha contornos de urgência com uma proposta que busca, finalmente, quebrar esse ciclo.

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do senador Rogério Carvalho, que conta com a contribuição de juristas como a Dra. Carmela Grüne, Laura Taddei Alves Pereira Pinto Berquó e o Professor Ricardo Antônio Lucas Camargo, é um marco nesse debate. A PEC propõe tornar o *crime de tortura imprescritível*, além de garantir que as ações de responsabilização civil do Estado por danos decorrentes dessa prática também não prescrevam. Essa medida não é apenas uma formalidade legal; é uma resposta a um passado que insiste em se manifestar no presente.

Como discutido no TECHTALK da TV 247, a justificativa da PEC é clara: a prescrição da tortura “compactua com a impunidade e perpetua a violência institucional”, como afirmou o assessor parlamentar Marcus Paulo. A proposta busca alinhar a legislação brasileira a padrões internacionais de direitos humanos, como a Convenção contra a Tortura da ONU e o Pacto de San José da Costa Rica, que impõem a obrigação de punir severas violações sem possibilidade de prescrição. O Brasil, como signatário desses tratados, tem a responsabilidade de honrar seus compromissos. A Corte Interamericana de Direitos Humanos já se manifestou sobre a imprescritibilidade de graves violações, e as decisões dessa corte podem fortalecer a aprovação dessa proposta no Brasil.

A PEC também busca o reconhecimento de que a tortura atinge de forma desproporcional as populações mais vulneráveis. A imprescritibilidade do crime oferece uma ferramenta legal para que essas vítimas, muitas vezes silenciadas, possam buscar justiça mesmo anos após a ocorrência dos fatos. No entanto, o debate sobre essa proposta não é simples. Setores da sociedade podem argumentar que a medida traria insegurança jurídica ou dificultaria a defesa de agentes do Estado, uma perspectiva que o próprio senador Carvalho deve enfrentar no Congresso.

A discussão sobre a tortura no Brasil ganhou uma nova camada de complexidade com a ascensão de figuras políticas que, como o ex-presidente Jair Bolsonaro, fizeram declarações que muitos interpretaram como apologia à prática e à ditadura militar. Essa cultura política que relativiza a tortura é um obstáculo para a consolidação de uma democracia plena. A PEC, portanto, não é apenas um instrumento legal, mas uma resposta a essa cultura que, ao glorificar a violência, coloca em risco os fundamentos do Estado Democrático de Direito e a dignidade humana.

A “justiça de transação”, que barganhou a punição pela estabilidade, agora pode ser confrontada por uma proposta que reafirma a necessidade de uma *”justiça de transição” verdadeira*. A imprescritibilidade do crime de tortura não é apenas uma mudança em um artigo da Constituição; é um passo histórico para que a memória das vítimas seja honrada, os responsáveis sejam devidamente punidos, e a tortura, essa marca histórica de violência, seja, de uma vez por todas, expurgada do futuro do Brasil. Ponto para os senadores que estão apreciando e já concordaram com o avanço da PEC!

Violações que ecoam no presente

A busca por uma “justiça de transição” que combata a impunidade ecoa em situações que mostram a perpetuação das violações de direitos humanos no país. Um exemplo contundente é o resgate de *563 trabalhadores de condições análogas à escravidão* na obra da TAO Construtora em Porto Alegre do Norte (MT), uma informação divulgada recentemente pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e pelo Ministério Público do Trabalho (MPT).

Auditores-fiscais encontraram trabalhadores, recrutados majoritariamente do Norte e Nordeste, em situação degradante durante a construção de uma usina de etanol. As condições insalubres incluíam alojamentos precários e falhas constantes no fornecimento de energia e água potável, levando a um possível protesto dos trabalhadores, que teriam provocado um incêndio em parte dos alojamentos.

Esse caso, assim como a violência institucional e a tortura, ilustra como as violações de direitos humanos continuam a se manifestar no presente, atingindo as populações mais vulneráveis. A proposta de tornar a tortura imprescritível, defendida na PEC, se conecta diretamente com a necessidade de garantir que crimes contra a dignidade humana não fiquem impunes. É uma prova da urgência de uma justiça que não transacione a punição em troca de conveniência, reafirmando que a luta por um Brasil mais justo e equitativo está longe de ser um debate superado.

 

Sobre a autora –

Dra. Sara Wagner York – Pós-Doc UNESP. Drª. em Educação UERJ. Mª. em Educação. Jornalista, Letras (UNESA), Biomedica (UNINOVE) e Pedagoga (UERJ). 🏳️‍⚧️ Trans | PcD | Pai&Avó.

Fonte – https://www.brasil247.com/blog/justica-de-transicao-a-divida-historica-que-o-brasil-precisa-pagar

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