Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

“O esforço (da obra) é para identificar a abordagem sobre o ensino jurídico no Brasil defendida por Roberto Lyra, autor da frase inscrita no pórtico de entrada do auditório da Universidade do Distrito Federal que dizia: “aqui só entra quem sabe sociologia”.
Trata-se de claro enaltecimento à interdisciplinaridade, a valorização da proposta de pensar o direito com as ciências humanas e sociais, afastando-se da perspectiva dogmática e tecnicista.
O pensamento crítico, proveniente do marco teórico, seria o eixo fundamental para a desconstrução de afirmações sem fundamento científico que se perpetuam no senso comum teórico jurídico no Brasil. Parabéns Eugeniusz e seja feliz.”
Do prefácio de Gizlene Neder e Gisálio Cerqueira Filho
Nota Dos Coordenadores
Prof. Dr. Alexandre Wunderlich E Prof. Dr. Salo De Carvalho
Prefácio
Gizlene Neder e Gisálio Cerqueira Filho
Agradecimentos
Introdução, Delimitação Do Objeto, Metodologia E Problema De Pesquisa
Capítulo 1
Apresentação E Crítica Dos Fundamentos Da Teoria Do Conhecimento Para A Escola Clássica E A Escola Positiva: Elementos Centrais Para O Mapeamento Do Pensamento De Roberto Lyra
1.1. Teoria Tradicional E Teoria Crítica.
1.2. Teorias Tradicionais Nas Ciências Criminais (Escolas Clássica E Positiva)
1.3. Ideologia Da Defesa Social (Ids) E Contradições Ideológicas
1.3.1. A Ideologia Da Defesa Social
1.3.1.1. A Ideologia Da Defesa Social E O Sistema Penal
1.3.1.2. A Contribuição De Althusser Para Uma Compreensão Interdisciplinar Do Sistema Penal Como Aparelho Repressivo De Estado (Are)
1.3.2. O Mito Da Neutralidade Científica
1.3.3. A Escola Do Fim Das Ideologias
1.3.4. O Caráter Ideológico Da Ideologia Da Defesa Social
1.4. A Relação Entre O Poder Punitivo E O Capital
Capítulo 2
O Universo Político E Ideológico Em Torno De Roberto Lyra
2.1. Considerações Políticas, Ideológicas E Metodológicas
2.2. Antecedentes Da Família Lyra: Raízes Abolicionistas
2.3. O Jovem Lyra E A Faculdade Livre De Sciencias Jurídicas E Sociaes Do Rio De Janeiro
2.3.1. Os Lyra: Uma Família Tradicional
2.3.2. A Formação Na Faculdade Livre De Sciencias Juridicas E Sociaes Do Rio De Janeiro E A Ideologia Punitivista Na Primeira República
2.3.3. Sociabilidade Com Professores, Influenciadores E O Debate Sobre A Pena De Morte
2.3.4. Produção Científica Em Matéria Penal Na Década De 1920 E O Eixo Cultural Rio-São Paulo Em Perspectiva Empírica
2.4. O Pensamento Científico E Político De Roberto Lyra Como Chaves Interpretativas Para A Compreensão De Sua Obra
2.4.1. Positivismos E O Positivista Indisciplinado
2.4.2. O Direito Penal Normativo E O Direito Penal Científico
2.4.3. Do Pensamento Político Socialista À Criminologia Contra-Hegemônica E Anticarcerária
Capítulo 3
A Militância Como Professor: A Universidade Do Distrito Federal Como Círculo De Sociabilidade Intelectual, Política E Espaço De Lutas Ideológicas No Campo Da Educação
3.1. Mapeamento Das Origens E Da Fundação Das Primeiras Faculdades De Direito No Brasil: A Escola De Recife Como Berço Das Abordagens Interdisciplinares
3.2. A Recepção Das Ideias De Recife: Tobias Barreto E Silvio Romero
3.3. O Magistério De Roberto Lyra
3.3.1. Uma Vida Dedicada Ao Ensino E À Produção Acadêmica
3.3.2. Início Da Docência E A Disputa Com Nelson Hungria
3.4. A Udf Como Projeto Inovador Na Educação Superior: A Adesão De Lyra À Ideia De Anísio Teixeira
3.4.1. Conjuntura Política Na Educação Na Década De 1930 E A Nova Concepção De Ensino
3.4.2. A Incorporação Da Faculdade De Direito Do Rj Pela Udf: “Aqui Não Entra Quem Não For Sociólogo”
3.5. Intelectuais, Pluralidade Ideológica E A Questão Religiosa: Educação Laica E O Poder Eclesiástico
3.6. Ministro Da Educação Socialista, Golpe E Renúncia
3.6.1. Período Histórico Antecedente Ao Primeiro Governo De Esquerda Brasileiro
3.6.2. O Ministro Da Educação No Primeiro Governo De Esquerda Do Brasil
3.7. O Drama Trágico De Roberto Lyra
3.7.1. Teoria Do Drama Trágico
3.7.2. Sobre Lyra Pai E Lyra Filho
Conclusão
Referências Bibliográficas
Anexos
Antecedentes Da Família Lyra
Claro que por instigação do filho eu me interessei muito pela leitura e pela busca das raízes da formação de Roberto Lyra Filho, meu orientador no mestrado e com quem colaborei sobre muitos aspectos principalmente na formação da Nova Escola Jurídica Brasileira, a Nair, seu veículo de divulgação, como Boletim da Nova Escola Jurídica, a revista Direito e Avesso, e a concepção de O Direito Achado na Rua que acabei por levar da ideia à realização, depois de sua morte em 1986, sobretudo com a Série O Direito Achado na Rua.
Li, de Roberto Lyra, por sugestão do filho, muitos ensaios – A Liberdade e a Jurisprudência do S.T.F., Formei-me em Direito, e Agora?, o material que ele organizou em Sociologia Criminal. Quadro de Idéias e Fatos em Todo o Mundo Especialmente no Brasil, uma publicação da Sociedade Brasileira de Criminologia, da qual foi Diretor; por último, uma publicação lançada pela editora Sophia Rosa (que Roberto Lyra Filho criou para publicar seus trabalhos e o primeiro foi do pai: Contribuição para a História do Primeiro Governo de Esquerda do Brasil (Conselho de Ministros Brochado da Rocha, 1962). Este livro, eu o tenho, com uma dedicatória muito carinhosa com sua caligrafia elegante: “Para os modelares Nair e José Geraldo, com admiração e reconhecimento. Roberto Lyra, Rio, 20.9.80).
Foi nessa leitura que encontrei uma indicação metafórica para em Roberto Lyra, pai, perceber o delito como um ponto de vista sobre o social e criminologicamente, abrir o imaginário para o pensar crítico na própria Criminologia, no que ele tomou em Santo Agostinho (A Cidade de Deus, livro quarto), sobre a semelhança entre reino sem justiça e pirataria (na minha edição da Editora das Américas S.A. – EDAMERIS, 1º volume, São Paulo, 1964, p. 205-206), percebo Santo Agostinho um precursor da Criminologia Crítica dado o modo de deslocar o olhar cognitivo para poder enxergar o que está diante dos olhos e não se vê, aliás, uma chave de leitura para ler politicamente o mundo hoje:
Desterrada a justiça, que é todo reino, senão grande pirataria? E a pirataria que é, senão pequeno reino? Também é punhado de homens, rege-se pelo poder de príncipe, liga-se por meio de pacto de sociedade, reparte a prêsa de acordo com certas convenções. Se esse mal cresce, porque se lhe acrescentam homens perdidos, que se assenhoreiam de lugares, estabelecem esconderijos, ocupam cidades, subjugam povos, tomam o nome mais autêntico de reino. Êsse nome dá-lhe abertamente, não a perdida cobiça, mas a impunidade acrescentada. Em tom de brincadeira, porém a sério, certo pirata prêso respondeu a Alexandre Magno, que lhe perguntou que lhe parecia o sobressalto em que mantinha o mar. Com arrogante liberdade, respondeu-lhe: ‘O mesmo que te parece o manteres perturbada a Terra toda, com a diferença apenas que a mim, por fazê-lo com navio de pequeno porte, me chamam ladrão e a ti, que o fazes com enorme esquadra, imperador’”.
Também de dona Sophia A. Lyra, a esposa, li por oferta do filho, Rosas de Neve (Como eram as mulheres no começo do século) e O Maior e o Melhor dos Lyras, uma visão de seu pai Augusto Tavares de Lyra, curiosamente para mim, uma materialização de um símbolo, pois, na adolescência em minha Natal, quantas vezes, sem sequer imaginar que o símbolo tomaria forma, tomei o barco na Ribeira, no cais da Tavares de Lyra, para atravessar o rio Potengi, em direção à praia da Redinha, até quando ficou mais prático e claro, menos romântico, fazer a travessia pela Ponte do Igapó.
Mas devo dizer que meu encontro mais intenso com o pensamento e a prática de Roberto Lyra, pai, se fez por uma introdução entre afetiva e celebratória promovida pelo carinhoso e exemplar zêlo de meu admirado Evandro Lins e Silva. Não só em conversas, principalmente no livro O Salão dos Passos Perdidos, sua biografia construída em Depoimento ao CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas, Rio.
Aqui neste espaço da Coluna Lido para Você, fiz uma recensão da obra: https://estadodedireito.com.br/o-salao-dos-passos-perdidos/. Trasladando minha leitura desse texto magnífico, recorto de minha resenha, um excerto pertinente ao que se elabora no trabalho, Eugeniuzs:
Um pouco dessa projeção recai sobre o meu próprio trabalho acadêmico, um tanto como legado, não fosse Roberto Lyra Filho, que a amizade de Evandro com Roberto Lyra, o grande adversário no Júri, promotor brilhante e colega em comissões como a do Código Penal, não tivesse se prorrogado no filho, o Deco, que trouxe para Brasília, apresentando-o a Darcy Ribeiro e instalando-o na UnB, para formar o Instituto Central de Ciências Humanas. Acompanhei Lyra Filho, que por encomenda de Evandro, o que muitas vezes aliviou seu contido contracheque de professor, elaborava preciosos pareceres para fundamentar suas defesas criminais.
De Roberto Lyra Filho procede a concepção de O Direito Achado na Rua, atentamente avaliada por Evandro: “Na Faculdade de Direito de Brasília também há um movimento, que tem como patrono e inspirador o professor Roberto Lira Filho, que deixou alguns livros magníficos a respeito. Um deles tem um título altamente sugestivo: O direito achado na rua. Não é uma beleza? E tem um livrinho pequenino também, O que é direito, outra beleza de livro. Quem conduz o movimento em Brasília é José Geraldo de Sousa, professor da universidade” (p. 498).
Desdobrando as referências revisito o texto de Evandro, para extrair de seu depoimento, a propósito de Roberto Tavares de Lira, páginas 79, 94, 97, 100-103, 111, 195, 196, 200, 212, nelas distinguindo os aspectos do criminólogo, do penalista, do promotor de justiça e do amigo.
O Criminólogo. Evandro enfatiza o papel de Roberto Lyra como um dos introdutores de uma visão criminológica moderna no Brasil, atento à sociologia criminal e às transformações do direito penal a partir de uma ótica humanista. Ele é apresentado como alguém que não se restringia ao tecnicismo jurídico, mas que ampliava o horizonte com uma compreensão social e política do crime, inspirando a juventude acadêmica e profissional. Evandro reconhece nele um mestre que atualizava o debate brasileiro com aportes da criminologia europeia e latino-americana.
O Penalista. Evandro destaca Roberto Lyra como um penalista rigoroso, conhecedor profundo da dogmática, mas que não era formalista. Ele transitava com autoridade entre a teoria e a prática, sendo citado como um jurista que unia erudição, clareza e capacidade de formular sínteses críticas. Evandro lembra que Lyra tinha uma preocupação com a justiça material e com a adaptação do direito penal a uma ordem social democrática, rompendo com as tendências autoritárias que marcaram parte da tradição penal brasileira.
O Promotor de Justiça. No depoimento de Evandro, Roberto Lyra aparece também na dimensão institucional, como membro do Ministério Público que dignificava a função. Evandro o menciona em episódios de atuação forense, valorizando sua coragem e firmeza na defesa da legalidade e da justiça. Ele se tornara uma espécie de modelo de promotor, pela independência de caráter e pela inteligência na sustentação de suas teses. Em alguns momentos, Evandro sugere que Lyra foi uma inspiração para o fortalecimento de um Ministério Público autônomo e ativo, antecipando debates que só ganhariam corpo mais tarde na Constituição de 1988.
O Amigo. Por fim, aparecendo o lado pessoal, Evandro fala de amizade, convivência e admiração mútua, descrevendo Roberto Lyra como figura generosa, afetuosa e leal. Há menções ao convívio intelectual, às conversas densas mas também ao calor humano que compartilhavam. A relação não era apenas profissional: havia companheirismo, solidariedade e respeito profundo, o que faz com que Evandro evoque Lyra não só como jurista, mas como amigo da vida inteira.
Assim, a imagem que Evandro constrói de Roberto Lyra é a de um jurista completo, que somava competência técnica, visão crítica e qualidades humanas raras.
Lê o trabalho de Eugeniusz Costa Lopes da Cruz, sobre Roberto Lyra, o pai, permite voltar a Roberto Lyra, o filho. Diz Eugeniuzs p. 13-14: “Voltar a Roberto Lyra Filho possibilita identificar também alguns aspectos de Roberto Lyra Filho, que não será aqui estudado uma vez que tal análise demandaria outra tese. Ainda assim, há espaço suficiente para registrar que este foi o primeiro a promover um diálogo sobre o marxismo e a questão criminal no Brasil. Lyra Filho é considerado uma referência na criminologia crítica brasileira e é reconhecido na comunidade acadêmica, principalmente, por sua obra Criminologia Dialética, que simboliza no Brasil aquilo que Punição e Estrutura Social (aqui em referência a Salo de Carvalho) representa para os estudos críticos da criminologia. Posteriormente, Lyra Filho aprofundou seus estudos no campo da economia política e publicou, em homenagem a Gisálio Cerqueira Filho e Leandro Konder, Karl, meu amigo: diálogo com Marx sobre o Direito”.
É certo que Roberto Lyra Filho, para acentuar um aspecto que associa esses interlocutores, expõe com muita precisão todo o processo de dialetização em seu diálogo problemático que passa por Hegel e Marx., sobretudo no cuidado de não desviar-se por abreviações infradialéticas quando opera a ultrapassagem que leva à totalização, na qual os contrários realizam a fusão que é o propulsor da própria dialética. Isso está em vários textos (A Reconciliação de Prometeu, Filosofia, Teologia e Experiência Mística, em Karl, meu amigo: diálogos com Marx sobre o Direito) e por derradeiro, considerando o último registro editado antes de sua morte, em Desordem e Processo: um Posfácio Explicativo, in Desordem e Processo. Estudos sobre o Direito em Homenagem a Roberto Lyra Filho. In LYRA, Doreodó Araújo (org). Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986).
Temas difíceis. Ainda bem que há confrarias e sororidades no mundo intelectual e muitas trocas permitindo aplainar os obstáculos de percurso. Aqui, no passado, valia o recurso das cartas, muitas reunidas de modo sistemático em volumes de correspondências. Menciono, por exemplo, das Editions Sociales, de Paris, a alentada publicação de Marx Engels Correspondance. Eu tenho os primeiros 8 volumes, o primeiro com 660 páginas, compreendendo o período de cartas entre 1835 e 1848. Nas cartas chaves de leitura preciosas ajudam a compreender a obra dos dois formuladores do materialismo histórico.
Penso na correspondência entre Martin Heidegger com Hannah Arendt, importante fonte para compreender a relação complexa entre eles, mas também por suas cartas acompanhar a discussão que sustentavam sobre filosofia e política para além de suas questões pessoais.
Hannah Arendt, também manteve correspondência com Karl Jaspers e em suas cartas discutiram questões de filosofia política, ética e a condição humana, especialmente no contexto do pós-guerra.
E o que dizer da correspondência entre Albert Einstein e Sigmund Freud, com insights fascinantes sobre suas visões de mundo, ciência e humanidade. Embora não tenham mantido uma correspondência extensa, suas interações e discussões são significativas. Essas cartas podem ser lidas hoje com força de atualização. Em “Por que a Guerra?” (1932), uma das correspondências mais conhecidas entre Einstein e Freud – uma troca de cartas organizada pela Liga das Nações em 1932, publicada com este título, Einstein pergunta a Freud sobre a possibilidade de dirigir a evolução psíquica dos seres humanos para evitar a guerra. Freud responde discutindo a natureza humana, o instinto de agressão e a complexidade de controlar tais impulsos.
Por suas cartas se percebe que ambos compartilhavam uma visão crítica sobre a guerra e a destruição que ela traz. Einstein, com sua teoria da relatividade, e Freud, com sua psicanálise, abordaram a questão da agressão humana de maneiras diferentes, mas ambos reconheceram a complexidade do problema. Einstein, um pacifista convicto, acreditava que a humanidade poderia ser educada para evitar a guerra. Ele via a ciência e a educação como ferramentas para promover a paz e a cooperação internacional. Freud, com uma visão mais pessimista sobre a natureza humana, acreditava que os impulsos agressivos são inatos e que a civilização tenta controlar esses impulsos através de normas e leis. Ele ainda argumentava que, embora a educação e a cultura possam influenciar o comportamento humano, elas não podem erradicá-lo completamente.
Entre nós, no Brasil, para não citar outros, vale visitar a correspondência entre Manuel Bandeira com Mário de Andrade, uma troca de cartas entre esses dois grandes modernistas brasileiros revelando detalhes sobre suas obras, visões artísticas e pessoais. Também a correspondência entre Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, em que discutiram poesia, literatura e questões culturais, mostrando a interação entre os principais nomes do modernismo brasileiro.
Coincidentemente, Gisálio Cerqueira Filho, orientador da tese que dá origem ao livro, entreteve essa amizade com Roberto Lyra Filho que transparece na dedicatória de uma de suas obras de referência (Karl, meu amigo).
Amizade nutrida num intercâmbio substancioso. Fui testamenteiro de Roberto Lyra Filho e guardo muitos de seus papeis e rascunhos que quando cabe vou divulgando (veja-se esta Coluna Lido para Você: https://estadodedireito.com.br/minhas-memorias-da-unb-edson-nery-da-fonseca/; https://estadodedireito.com.br/modo-de-aquisicao-todos-relatorio-de-exemplar-processo-de-aquisicao-comodato-roberto-lyra-filho/.
Alguns originais, manuscritos, puderam ser publicados ainda em vida do grande mestre. A propósito a paradigmática Carta Aberta a um Jovem Criminólogo: Teoria, Práxis e Táticas Atuais. Revista de Direito Penal, nº 28/ julho-dezembro/1979). Aliás, sobre esse assunto e também como referência para, ao ensejo do retorno a Roberto Lyra Filho, ver meu texto em Criminologia Dialética, 50 Anos: Um Diálogo com o Legado de Roberto Lyra Filho, que co-organizei junto com José Carlos Silva e Filho e Salo de Carvalho que apresenta o livro de Eugeniuzs, conforme https://estadodedireito.com.br/criminologia-dialetica-50-anos-um-dialogo-com-o-legado-de-roberto-lyra-filho/, onde inclusive anoto a auto-identificação do jovem criminólogo, agora um eminente e respeitado acadêmico e escritor.
Mergulhar na obra de Eugeniusz foi ensejo para recuperar também da amizade entre seu orientador Gisálio Cerqueira Filho e Roberto Lyra Filho, e, a propósito, um acervo inédito de cartas que então trocavam (1981), ao menos aquelas enviadas por Roberto Lyra Filho, manuscritas, preservadas em carbono e reprografadas, nas quais há achados preciosos. Menciono a Carta a Gisálio, Brasília, 27.1.81. Dela retiro um trecho raro, no qual o criador da Nova Escola Jurídica Brasileira – NAIR, explica o sentido que atribui ao conceito de infradialetização:
“(IX) Tu me pedes que te explique em que sentido emprego a palavra ‘infradialetização’: convenhamos em que há, fundamentalmente, dois tipos de pensamento (e não só de pensamento, pois a dialética não é só mental, mas da totalidade); o pensamento lógico-abstrato, que ‘supõe’ uma realidade sem contradições a traduzir num pensamento ‘lógico’; e o pensamento dialético, que, em lugar de excluir arbitrariamente a contraditoriedade do real, modela uma lógica-ontológica (dialética), que ABSORVE essas contradições e, assim, ‘reflete’ o real, em lugar de pô-lo numa camisa de força. Não posso, explicar aqui, toda a riqueza da dialética; mas dou por sabido, entre nós, porque és um homem culto, que entendes essa oposição dos dois tipos de pensamento. Nessa perspectiva, nota-se que é tão forte a pulsão ideológica, advinda de sustentação sociológica (que aqui não há tempo de analisar) do pensamento lógico-abstrato (entre nós, isto é, em nosso ciclo histórico-social, ele tem ligação básica, através de muitas e manhosas mediações, com a estrutura burguesa) que, muitas vezes, o pensador (o intelectual de qualquer tipo), que professa uma orientação dialética, perde o fôlego dialético; retorna à linearidade more geométrico do pensamento lógico-abstrato, idealista, do que Gabel (ligando falsa consciência, ‘racionalidade mórbida’ e a pulsão infraestrutural, através da práxis rombuda, também linear, que ideologiza igualmente) – do que Gabel, repito, chama de ‘esquisofrenia social’. Esse colapso teórico-prático (não se separam práxis e teoria), então, desdialetiza as funções cognitivas; cai aquém da dialética e, pretendendo ser dialético – isto é, estar à altura da dialética real – ou de todo se aparta da dialética (expressa ou implicitamente) ou continua a ‘fingir’ (inconsciente de seu colapso) que dialetiza, mas, na realidade, está infra-dialetizando. Aliás, como Gabel demonstra, muitas concepções da falsa consciência são infradialetizadas (La Fausse Conscience, Paris, Editions de Minuit, 1962, p. IV e passim), na medida em que movimentam esquemas causais-explicativos bastante mecanicistas e de modelo positivista. Um exemplo característico das infradialetizações é fornecido pelo quadro de ‘explicações’, ‘determinações’ e ‘sobredeterminações’ que armam blocos maciços, feixes de derivações, com dois traços infredialéticos: eliminaram a flexibilidade, o devir intrínseco e a ligação da totalidade com o movimento; e excetuam a si mesmos, ‘cientistas’, ‘objetivos’, ‘lúcidos’, ‘rigorosos’, ‘certos’, donos da ‘verdade’ toda impante – isto é, reduzem o arsenal de idéias do marxismo a mais uma Teoria de estilo positivista. Alttusser faz isso (as duas coisas), com frequência. Mas deixemos em paz o pobre homem, que está vivendo o seu drama existencial na última fase dum problema psíquico arrasador. Não; não estou sugerindo que as teorias alttusserianas foram ‘determinadas’ pelos seus problemas psíquicos. Nem posso, daqui, e sem dados válidos, sequer visualizar qual é o problema psíquico, dele, Louis Altthusser, embora algum haja, e seja grave (ou ele não teria estrangulado a esposa). Mas NÃO CONFIO na pseudo-psiquiatria (a tal, que a antipsiquiatria – ou, como prefiro, à Basaglia, a psiquiatria alternativa – denuncia, com razão). Os ‘diagnósticos’ dos ‘peritos’ que lá atuam – e que aqui alguns repetem de ouvido, via comunicados jornalísticos (!!) – não vale um peido.
Na sequência, ítem X, Lyra Filho vai esclarecer o que chama de ‘monismo verdadeiro e rigorosamente dialético’. Mas esse é, ele diz, uma questão bem mais complexa e que vou deixar para apresentá-la quando uma outra boa ocasião se apresente.
Na entrevista que concedi ao Autor, com os meus limites de conhecimento demarco alguns aspectos da complexa relação entre Lyra pai e Lyra filho. Não coloquei na entrevista, mas sob o ângulo da influência política, posso aqui, trazer ainda, dessa relação, o que o próprio Roberto Lyra Filho põe em relevo, como conselho para o qual guardou redobrada atenção:
Há perto de 40 anos, dizia meu pai Roberto Lyra, que ‘se o centro resulta da média entre a extrema revolucionária e a extrema reacionária, é claro que, fixada praticamente ao centro a suposta esquerda legislativa e executiva, a direita esgotará a margem de retrocesso e o poder exprimirá recuos insuportáveis, subversivos do progresso e dissolventes das quotas já incorporadas à ordem’.
Assim, prossegue Lyra pai, ‘os conservadores serão substituídos pelos retrógrados’, com ‘ameaça permanente ao statu quo’, isto é à dose mínima da democracia, que já conquistamos e à qual não teríamos chegado, sem desprezar as ameaças da direita e cotucar a preguiça do centro e da velha ‘esquerda’ acomodatícia.
E note-se que esses conselhos, revelam o velho socialista, ainda em 1949, numa lúcida leitura do conjuntural político (LYRA, Roberto et alii. Três gerações apreciam os problemas do Brasil e do mundo. Rio de Janeiro: REBRAC, 1949), ainda não experimentadas nas injunções de ministro da educação cargo que ocupou no período parlamentarista, no gabinete socialista de Brochado da Rocha (1962).
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José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55 |