Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Diversidade e Equidade: Olhares da Advocacia Pública. Aline Leal Nunes, Fernanda Mainier Hack. Kleidson Nascimento e Márcia dos Anjos (Organização). Salvador: Editora Mente Aberta, 2025, 312 p.
Interessante na edição da obra é que figura na organização o único homem com status autoral. Todas as demais autorias (incluindo a organização) são femininas, mulheres procuradoras e uma servidora de carreira em Procuradoria: Aline Teixeira Leal Nunes, Ana Carla Pires Meira Cardoso, Apoenna Alencar de Amaral Castro, Cintia Morgado, Claudia Zacarias Almeida Medici, Fabíola Marquetti Sanches Rahim, Fernanda Mainier Hack, Ivania Lúcia Silva Costa, Lais Maria Costa Andrade, Laura de Araújo da Silva, Lenita Leite Pinho, Márcia dos Anjos, Margarete Gonçalves Pedroso, Mariana Andrade Vieira, Maristela Barbosa Santos, Martha Jackson Franco de Sá monteiro, Sara da Cunha Campos Rabelo e Suzana Magalhães Campos.
Elas traduzem desde seu ofício, mas com fundamentos que seus compromissos com a diversidade, a equidade que constituem o núcleo da função essencial de promoção da justiça, imprimem à atuação que realizam em procuradorias de estado.
Para Lenita Pinheiro, Presidente do Fonped (Forum Permanente de Equidade e Diversidade), ligado ao Conpeg (Colégio Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados e do Distrito Federal) e para Aline Leal Nunes, vice-presidente, “a iniciativa de organizar a coletânea teve como norte a compreensão de que a atuação institucional verdadeiramente transformadora passa pelo reconhecimento das desigualdades estruturais e pela proposição de caminhos concretos para enfrenta-las e para fomentar e fortalecer políticas públicas comprometidas com os direitos humanos”.
A obra conta com 16 artigos tratando, com essa disposição, de temas sobre Governança e Equidade Institucional; Gênero, Raça e Carreiras; Contratações e Responsabilidade Social; Direitos Socioambientais e Justiça Territorial e Comunicação, Cultura e Engajamento; e seu impacto social na advocacia pública em recíproca circuição, vale dizer, o impacto da advocacia pública, no social.
Assim é que Márcia dos Anjos, uma das autoras e organizadoras, que participa das atividades acadêmicas da pós-graduação em direito e em direitos humanos, no âmbito da disciplina O Direito Achado na Rua, confere a sua própria atuação, funcional e autoral, afirmando-se, tal como está em seus artigos na obra, mas especialmente na dedicatória manuscrita que me atribuiu ao me oferecer o livro, como o manifestar-se “de almas inquietas pelo uso do seu múnus público em busca da redução de desigualdades, no exercício de uma prática jurídica emancipatória”.
No Prólogo do livro, aliás, as organizadoras (e o organizador), justificam a publicação nesses fundamentos: “A advocacia pública, em sua essência, desempenha um papel fundamental na construção de uma sociedade justa e democrática. Ela é a guardiã dos direitos fundamentais, a defensora da legalidade e da justiça nas esferas governamentais. E, mais do que isso, a advocacia pública tem um papel estratégico na promoção da equidade e da diversidade, dentro da administração pública, sendo o pilar da implementação de políticas que busquem diminuir desigualdades e construir um futuro mais inclusivo para todas as pessoas”.
Na Apresentação da obra Inês Maria dos Santos Coimbra, Procuradora-Geral do Estado de São Paulo e Presidente do Conpeg, demarca o seu alcance:
Como procuradora-geral do Estado de São Paulo e presidente do Conpeg, vejo a urgência de uma advocacia pública que não apenas seja efi ciente e técnica, mas que abrace a legitimidade e a inclusão em sua essência. Não podemos nos dar ao luxo de ignorar os debates cruciais da nossa sociedade, e a equidade é, sem dúvida, um deles.
A diversidade não é pauta secundária; é o alicerce para construirmos instituições mais humanas, democráticas e verdadeiramente representativas. É por isso que o Fórum Permanente de Equidade e Diversidade (Fonped) – uma iniciativa do Conpeg – é tão significativo. Ele reflete nosso compro misso com a promoção de justiça dentro da própria advocacia pública.
Criado em 2022, o Fonped surgiu como resposta direta à necessidade de combater as desigualdades que, muitas vezes, persistem silenciosamente em nossas procuradorias estaduais. Refiro-me às questões de gênero, raça, orientação sexual, deficiência e outros marcadores sociais. A presença do Fonped no Conpeg demonstra nossa crescente consciência de que a advoca cia pública estadual precisa estar em sintonia com as transformações sociais e com a demanda por instituições mais inclusivas e representativas.
Esse é um passo fundamental, alinhado a uma pauta que ganha cada vez mais força no debate público. Reconhecemos que a diversidade e a equi dade são, de fato, pilares para o fortalecimento institucional. Ao analisar a composição de nossas PGEs, a distribuição das posições de poder e os obstáculos enfrentados por grupos historicamente sub-representados, o Fonped estabelece-se como um espaço contínuo para ouvir, diagnosticar e propor mudanças.
Para mim, o Fonped vai além de um grupo de trabalho, representando uma postura institucional clara: não podemos mais aceitar a exclusão como algo natural. A presença de mulheres, pessoas negras, LGBTQIAPN+, pes soas com deficiência e outras identidades diversas em nossas procuradorias não deve ser vista como uma exceção ou uma conquista individual. É exigência ética e republicana, que demanda políticas estruturadas, dados confiáveis, recursos adequados e, acima de tudo, vontade coletiva de transformação.
Os esforços do Fonped – como o diagnóstico nacional da força de trabalho nas PGEs, a articulação de representantes estaduais, a promoção de debates internos e a construção de estratégias inclusivas – dialogam dire tamente com os temas que este livro explora. Esta coletânea de artigos traz 9 10 | Apresentação – Inês Maria dos Santos Coimbra reflexões inestimáveis sobre os desafios e as potencialidades da advocacia pública sob a ótica da diversidade.
Em cada texto, percebemos a reafirmação de que o direito não é neutro e que as instituições só se transformam quando enfrentam ativamente as desigualdades que as permeiam. A obra busca ampliar o debate sobre equi dade na advocacia pública, ampliando a visibilidade e conferindo substância a experiências, conhecimentos e propostas que nos guiam para um futuro mais plural.
A equidade, para mim, não é um ideal abstrato; é prática diária, escolha institucional e compromisso com um Estado mais justo. Que este livro seja mais do que uma coletânea. Que seja instrumento para que a advocacia pú blica brasileira caminhe com firmeza rumo a uma cultura institucional que, em sua totalidade, reconheça e valorize a diversidade de seus membros e de sua missão.
De minha parte assinalo que a coletânea proporciona uma leitura emancipatória da advocacia pública porque desloca o ofício e a aplicação do direito da posição burocrática de defesa da máquina estatal, isolada num legalismo estiolante que bloqueia o olhar vigilante sobre as exigências do justo, incapaz de apreender o direito achado na rua (CANOTILHO, J. J. Gomes. Teoria da Constituição e do Direito Constitucional, nota 122). Ao contrário, com inspiração em teorias de sociedade e de justiça abre perspectivas para reconstruir-se como agente de efetivação de direitos humanos, promoção da justiça social e democratização do Estado.
Penso que essa forma de ativar o agir institucional guarda pertinência com os enunciados de O Direito Achado na Rua, sua concepção e prática, que tem procurado atribuir à prática jurídica e da própria advocacia pública uma agência interesse público emancipatório, ou seja, uma advocacia voltada à realização concreta dos direitos humanos e sociais, à transparência administrativa e à inclusão dos sujeitos historicamente invisibilizados nas decisões do Estado.
Essa concepção rompe com a visão meramente técnica ou corporativa e insere a advocacia pública no campo das lutas sociais pela dignidade, como parte da construção de um “direito insurgente” — aquele que nasce de baixo, das ruas, dos movimentos e das demandas coletivas.
Nos marcos dessa corrente teórica, o direito é compreendido como: “expressão das práticas sociais de liberdade” (Lyra Filho, O que é Direito, 1982), tanto que, no que toca à advocacia pública, esta é convocada a ser mediadora dessas práticas de liberdade, reconhecendo os sujeitos coletivos de direito e orientando sua atuação não apenas pela legalidade formal, mas pela legitimidade democrática e pelo compromisso ético com os direitos fundamentais.
Concretizar a função social do Estado e não apenas defendê-lo formalmente; é fazer o controle interno da juridicidade com base nos direitos humanos; é agir como promotora da diversidade e da equidade dentro da administração e em suas políticas públicas; é abrir espaços institucionais de escuta e participação popular; é resgatar o sentido republicano da coisa pública, impedindo a captura privada do Estado.
Pode-se dizer, nesse passo, que a advocacia pública emancipatória é o exercício ético e político da defesa do interesse público fundado nos direitos humanos, na justiça social e na participação democrática, sendo expressão da juridicidade cidadã que transforma o Estado em instrumento da liberdade.
Sobre essa perspectiva emancipatória que convoca a advocacia pública e principalmente a defensoria pública, ver https://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-na-sociedade-acesso-a-justica-genero-e-protecao-de-direitos/; https://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-e-as-possibilidades-de-praticas-juridicas-emancipadoras/;
Para onde tange essa perspectiva? Para escapar ao estiolamento formalista a que alude Canotilho. A mera enunciação de direitos, não se mostra suficiente para assegurar o respeito aos ditames essenciais para o regime democrático. Além da notória inflação legislativa, que em momentos críticos tende a reprimir com mais severidade, lesionar, ainda mais, os já lesionados e fragilizados, e a blindar, com mais força, os já extremamente poderosos e bem-sucedidos em suas empreitadas, temos o próprio agir judicial, que não reconhece potências nos destinatários das normas, que esbarra em questões técnicas de pouca importância e que atua em uma agir que fica distanciado dos reais conflitos que perpassam a sociedade e que marcam o distanciamento entre os muitos que não possuem quase nada e os poucos que tem quase tudo.
As audiências e os processos judiciais, físicos ou digitais, são marcados por hierarquias, submissão, poderes. Acredita-se no primado da lei e há uma crença (quase) inabalável no simbolismo da normatização. Uma verdadeira fé cívica na norma, que mastiga qualquer possibilidade de análise crítica em seus efeitos e em seus postulados, de tal sorte que direito material e processual se confundem quanto à relevância, em detrimento do bem da vida discutido e dos efeitos sociais implicados pela decisão. E, nisso, o direito e a rua se perdem para formalismos contrafactuais. Consagra-se uma estrutura sistêmica que obsta, ou dificulta sobremaneira, o atendimento sinestésico de magistrados, promotores, defensores e advogados com os reais interesses, preocupações e necessidades da vítima. A anestesia judicial, atenta expressão cunhada por David Sánchez Rubio (Encantos e desencantos dos direitos humanos: de emancipações, libertações e dominações. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 128), afasta o elemento que poderia dotar de maior potencialidade o sistema judicial, que consiste em uma atuação mais próxima e atenta para a proteção dos direitos humanos, com sensibilidade, preocupação real, enfim, afetividade na atuação com populações diariamente vitimizadas por condições sociais desiguais (AMARAL, Alberto Carvalho. A violência doméstica a partir do olhar das vítimas: reflexões sobre a Lei Maria da Penha em juízo. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017; AMARAL, Alberto Carvalho. Mulheres, violência de gênero e as dificuldades no acesso às proteções judiciais da Lei Maria da Penha. In: 13º Congresso Mundos de Mulheres e Seminário Internacional Fazendo Gênero, “Transformações, Conexões, Deslocamentos”. Florianópolis: UFSC, 2018).
A humanização do direito e do sistema judicial demanda, também, discutir o direito que se ensina e que é aprendido. Aponta-se, com bastante destaque, que o positivismo hermético, matriz adotada pelas nossas faculdades de direito e que é reforçada pela prática diária calcada em precedentes, enunciados, estudos para concursos, vai firmar uma docência e uma prática na qual “não há direito para os juristas. O que existem são leis. Logo, nossas faculdades não são de direito, são escolas técnicas de leis. Isso significa que está na hora de criarmos os cursos jurídicos no Brasil” (AGUIAR, Roberto A. R. de. O Imaginário dos Juristas. In CARVALHO, Amilton Bueno de (Diretor). Revista de Direito Alternativo, São Paulo, n. 2, 1993, p. 26), fazendo-se ressoar outros saberes e outras matizes de pensamento que não se vinculem e não exteriorizem um direito que se acha válido por si e que afaste a realidade na consideração de sua própria legitimidade.
Compulsando o trabalho o que se confirma é o desiderato assinalado por suas Organizadoras (e organizador), contando-se que cada texto é uma contribuição valiosa para a reflexão sobre a implementação de políticas públicas inclusivas e a construção de um serviço público mais acessível, plural e atento às diversas realidades e necessidades da sociedade. Aqui, o compromisso com a justiça não se limita à interpretação das leis, mas se estende à aplicação delas de maneira equânime, com respeito às diferenças e com um olhar atento para as questões de gênero, raça, orientação sexual e outras identidades muitas vezes marginalizadas.
Foto Valter Campanato |
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55 |
Foto Valter Campanato