Direitos Humanos e Educação Libertadora

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

Direitos Humanos e Educação Libertadora: Gestão Democrática da Educação Pública na Cidade de São Paulo. Paulo Freire. Organização e Notas de Ana Maria Araújo Freire e Erasto Fortes Mendonça. 1ª edição. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2019, 351 p. 

            Em Coluna Lido para Você recente, a propósito do livro Educação, diversidade, direitos humanos e cidadania. Escritos e compromissos. Organizadoras: Lúcia Helena Cavasin Zabotto Pulino e Clerismar Aparecido Longo. São Paulo: Editora Letra e Voz, 2020, ISBN: 978-65-86903-06-5. 214 p. (https://estadodedireito.com.br/educacao-diversidade-direitos-humanos-e-cidadania/), conclui o meu texto com uma nota evocativa: “Trata-se, diz freireanamente a Professora Pulino, no Prefácio, de forjar ‘a escrita e a leitura como direito e dever de mudar o mundo’, o que significa compreender, ainda com Paulo Freire, conforme mostram Ana Maria Araújo Freire e Erasto Fortes Mendonça (Direitos Humanos e Educação Libertadora. Gestão Democrática da Educação Pública na Cidade de São Paulo. Paulo Freire Patrono da Educação Brasileira. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2019), livro ao qual em breve, terei Lido para Você. Trata-se, em suma, conforme diz Erasto, na dedicatória manuscrita de seu livro com Nita Freire, certamente na expectativa de que eu o resenhe, de ‘compreender a educação como prática social humanizadora’, e com Paulo Freire, ‘assumir nossa causa comum, a dos Direitos Humanos’”.

            Eis que, para cumprir minha promessa, concluí a leitura da obra e o trago em resenha, neste Lido para Você. Mas o faço com uma nota prévia, recuperada de um momento de forte emoção para mim, então Reitor da UnB, quando pude marcar os eventos do jubileu da universidade, com um conjunto de eventos marcados por muito simbolismo, entre os quais a outorga do título de Doutor Honoris Causa, post-mortem, a Paulo Freire.

            Na cerimônia, mais ainda elevada em seu significado pelo discurso de Nita Freire, especialmente convidada pela Reitoria para o protocolar elogio ao homenageado, ensaiei uma aproximação que me parecia importante fazer, tratando-se da UnB: “Paulo Freire e Darcy Ribeiro: o reencontro possível” (publicado em coluna que eu mantinha na Revista do Sindjus nº 76, setembro-outubro de 2011).

            Lembrei um fato para mim significativo nesse sentido. O de que a 8 e 9 de junho de 1991, deu-se em Niterói, Rio de Janeiro, um evento singular na história da educação brasileira, com imenso valor simbólico para o processo de redemocratização do país. O seminário CIEP – Crítica e Autocrítica que permitiu a reunião de profissionais de diferentes áreas com o próposito de debater alternativas aos modelos de educação oferecidos pela rede pública. Era também a primeira vez, desde o retorno do exílio, que se encontravam em ato público os mestres Paulo Freire e Darcy Ribeiro.

            Uma série de fatores se alinharam em suas trajetórias para conduzí-los a este momento de eclipse. A despeito de nunca haverem trabalhado juntos, estes pensadores e criadores estiveram sempre lado a lado na história do Brasil, da América Latina e da UnB, irmanados pelo desejo de emancipar através da educação.

            Por suas ações revolucionárias – Paulo Freire em Recife, com seu projeto de alfabetização universal, e Darcy Ribeiro em Brasília, na fundação de uma universidade com inovadora proposta de ensino – podem ser considerados intelectuais de importância tanto teórica quanto política, dada a capacidade de transbordar a dimensão do discurso sobre a dimensão da prática. Foram ambos, por esta mesma razão, forçados a deixar o país em 1964.

            Freire e Darcy, como me indicou Layla Jorge em sua pesquisa para o meu texto, durante anos, acompanharam um ao outro intelectualmente, ligados por uma amizade baseada no respeito e admiração mútuos. Sobre esta relação, diria Paulo Freire, por ocasião do referido seminário, em 91:

            “Eu sou amigo do Darcy, nós somos da mesma idade, possivelmente eu sou mais velho um ano que Darcy, mas eu comecei o meu querer bem a Darcy por uma admiração ao intelectual Darcy, quando ambos éramos, faz tempo, muito jovens. (…) Eu me lembro ainda hoje da emoção com que eu estive diante da cara moça, quase menina, da sua inquietação. E daí em diante ficamos, mesmo que não com encontros assíduos, mas ficamos sempre sabendo um da existência do outro. (…) essas estórias, esses pedaços de estórias, no fundo, fazem parte da nossa história, da nossa história de educadores, de intelectuais deste país, por isso mesmo de políticos deste país, um pedaço da história maior que é a história nossa de nós todos no Brasil.”

            Quando do seu regresso, Paulo Freire se instalou em São Paulo como professor da Universidade de Campinas e atuou como secretário de educação do município de São Paulo. Darcy Ribeiro, coincidentemente, atuou como secretário de educação do Rio de Janeiro e investiu na criação e coordenação dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs). Sobre o desenvolvimento deste último projeto, organiza o seminário em Niterói e convida a Paulo Freire para uma oportunidade de reafirmarem a sua cumplicidade.

            Na conferência de encerramento, Paulo Freire coloca:

            “(…) Eu diria a vocês que homens como Darcy, a quem eu me junto, não encerram coisa nenhuma, inclusive encontros como esse. A gente tá no mundo é pra abrir, por isso mesmo não vamos fechar esse encontro de hoje, de jeito nenhum. (…) Eu quero, então, trazer para ti [Darcy] não só o meu querer bem, porque tu sabes que há muito tempo eu já te dei, mas a minha solidariedade de educador, de cara que pensa um pouco também a educação desse país. E a vocês todos e todas o grande abraço de um cara que também briga por uma escola melhor, por uma escola mais séria, mais competente, mas, sobretudo, por uma escola que provoque alegria”.

            Ao que replica Darcy:

            “Paulo é a consciência e a emoção da educação brasileira, (…) Paulo é a sabedoria da educação brasileira. Mas eu acho que o traço fundamental é esse: um respeito de educador pelo educando. (…) As idéias se encarnam nas pessoas. E, quando se encarnam, elas ganham a possibilidade de existirem, de se perpetuarem.

            Neste mês de setembro, no dia 19, somos convidados pela força da data a refletir novamente sobre a importância de seguirmos encarnando e perpetuando nosso respeito pela educação. Trata-se da comemoração dos 90 anos de nascimento do educador Paulo Freire, aniversário que nos inspira a recordar (do latim ricordare, tornar a passar pelo coração) sua proposta de educação como prática da liberdade, da mudança, da esperança, da autonomia e da indignação.

            Na Universidade de Brasília, a homenagem a Paulo Freire, que foi membro de seu Conselho Diretor (1985) coincidiu com a realização da Semana Universitária, evento em que a universidade se abre para o público externo, com mais de 500 atividades distribuídas nos quatro campi. O objetivo foi deslocar os papéis de aluno e professor para descobrir, como já Paulo Freire nos apontou, que a educação somente se faz no contato com o ser concreto, inserido em sua realidade histórica. Com a outorga do honoris causa a Paulo Freire, foi também uma oportunidade para fazer o encontro entre dois gigantes que permaneceram encarnados nas ações de educandos e educadores também quando experimentaram a “gestão democrática da educação pública”, conforme tão bem documentada na organização deste Direitos Humanos e Educação Libertadora.

            O livro, uma atualização atualizada de um experimento que não pode ser considerado datado e que se faz necessário sobretudo na conjuntura de deliberado esvaziamento da função emancipatória da educação pública é, dizem os seus organizadores, “uma reunião de escritos e falas de Paulo Freire. Apresenta, sob um ponto de vista inédito, a experiência do educador como secretário de Educação da cidade de São Paulo, entre 1989 e 1991. A esses textos, acrescentaram-se outros, escritos por alguns daqueles que compartilharam com Freire o sonho de reinventar a escola da Rede Municipal paulistana e democratizar a educação pública de qualidade”.

            A chave de leitura que Paulo Freire indica para extrair significado da obra está, em texto que ele justifica o seu título: “Direitos Humanos e Educação Educadora”, na extensão de uma concepção muitas vezes lançada em seus trabalhos, segundo a qual a educação não transforma o mundo, transforma as pessoas que transformam o mundo. Por isso, em sua justificativa, ele recupera essa chave: “A educação não é a chave, a alavanca, o instrumento para a transformação social. Ela não o é, precisamente porque poderia ser” (p. 38) Explicitando: “É exatamente porque a educação se submete a limites que ela é eficaz…Se a educação pudesse tudo, não haveria por que falar nos limites dela. Mas constata-se, historicamente, que a educação não pode tudo. E é exatamente não podendo tudo que pode algumas coisa, e nesse poder alguma coisa se encontra a eficácia da educação. A questão que se coloca ao educador é saber qual é esse poder ser da educação, que é histórico, social e político” (p. 39).

            Por isso que na Apresentação, Ana Maria Araújo Freire (Nita Freire) situa a proposta filosófica de Paulo Freire na sua perspectiva de autonomia no sentido utópico de “um inédito viável de humanização”, que pôde ser orientado por uma gestão apta a traduzir a compreensão “ético-político-antropológica de uma epistemologia crítico-educativo-conscientizadora, que, em última instância, tem como ponto central a humanização de todos e todas”, portanto, um programa para “dignificar as gentes, as pessoas”, sendo assim, substantivamente, uma política de educação em e para os direitos humanos (p. 14-15).

            Isso o confirma Paulo Freire. A Educação em Direitos Humanos pressupõe “compreensão política, ideológica do professor” (p. 37) para se constituir em “educação para os direitos humanos, na perspectiva da justiça, (que) é exatamente aquela educação que desperta os dominados para a necessidade da briga, da organização, da mobilização crítica, justa, democrática, séria, rigorosa, disciplinada, sem manipulações, com vistas à reinvenção do mundo, à reinvenção do poder” (p. 39-40). Em suma, “Essa educação para a liberdade, essa educação ligada aos direitos humanos nesta perspectiva, (que) tem que ser abrangentes, totalizante, (que) tem a ver com o conhecimento crítico do real e com a alegria de viver” (p. 43).

            Por essa razão é que, no prefácio, O querido amigo e colega Erasto Fortes Mendonça, ex-Diretor da Faculdade de Educação da nossa UnB, também Coordenador Geral de Educação em Direitos Humanos, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (Governo Lula), não hesita em inserir a educação na modelagem conduzida por Paulo Freire gestor, como um programa exaltado de educação em direitos humanos, tomada como eixo articulador de um processo de gestão educacional” (p. 26).

            O livro, forte em enunciados recolhidos ou colecionados do próprio Paulo Freire, reúne material organizado e anotado por Erasto Fortes e Nita Freire, distribuído em cinco grandes blocos, para além dos seus elementos pre-textuais: (I) A Chegada e o Início da Gestão do Educador Paulo Freire na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo; (II) Entrevistas de Paulo Freire sobre a Educação na Rede Municipal de São Paulo; (III) Depoimentos sobre Dificuldades Encontradas na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo; (IV) Testemunhos dos que caminharam com Paulo Freire no Sonho de ‘Mudar a Cara’ da Escola da Rede Municipal de São Paulo; (V) A Despedida e o Fim da Gestão do Educador Paulo Freire à Frente da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo

            Junto com Paulo Freire e o Organizador e a Organizadora, na obra, refletiram sobre a experiência gestora de democratizar a educação pública de qualidade: Luiza Erundina de Sousa, Mario Sergio Cortella, Coletivo do Núcleo de Ação Educativa, Lisete R. G. Arelano, Ana Maria Saul, Ivanna Sant’Ana Torres.

            Num registro, que bem pode ser considerado uma avaliação inspirada no presente para  aplicar-se ao futuro, esse nosso atual que abriu o obscurantismo político e pedagógico amordaçador, acovardado, militarizado, censurado, sem ideologia ou partido (quer dizer, com a pretensão ideológica exclusivista e partidariamente subjugadora), sobressai a autoreflexidade dos co-gestores da experiência democrática e emancipadora, num texto a seis maõs assinado por Luiza Erundina de Sousa, Paulo Reglus Neves Freire e Mario Sergio Cortella. Eles dão conta de que “Nesse processo, a autonomia da escola tem se construído, as unidades de ensino deixam de ser meros desaguadouros das políticas centrais, o orçamento e o planejamento deixam de ser assuntos apenas de técnicos e especialistas e se explicitam, progressivamente, as prioridades, as necessidades de recursos, as dificuldades, os interesses de vários grupos sociais e as limitações do município enquanto esfera de poder, sendo, por isso, um excelente instrumento de construção e de afirmação da cidadania” (p. 347).

            É esse processo, diz Nair Heloisa Bicalho de Sousa, motivada pela leitura de Nita Freire em aludir à “pedagogia dos direitos humanos” como proposta freireana de “inserção crítica dos homens e das mulheres nas suas sociedades ao possibilitar-lhes terem voz, dizerem a sua palavra, biografarem-se (FREIRE, Ana Maria Araújo (Nita Freire). Acesso à Justiça e a Pedagogia dos Vulneráveis. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al. Organizador. Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação. Série O Direito Achado na Rua, vol. 8. Brasília: FAC/UnB Livros, 2017, p. 69-77), uma base consistente, apta a constituir um programa de educação em e para os direitos humanos e a orientar a “construção de saberes, práticas pedagógicas e metodologias participativas da educação em direitos humanos” (cf. Retrospectiva Histórica e Concepções da Educação em e para os Direitos Humanos. In PULINO, Lúcia Helena Zabotto et al. (Orgs). Educação em e para os Direitos Humanos. Biblioteca Educação, Diversidade Cultural e Direitos Humanos volume II. Brasília: Paralelo 15, 2016, p. 73-124).

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

 

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