Coluna (Re)pensando os Direitos Humanos, por Ralph Schibelbein*, articulista do Jornal Estado de Direito.
Não há como estudar a história do Brasil sem levar em conta a presença negra em nosso país. Essa afirmação óbvia parece ganhar outro significado quando percebemos a importância da Lei 11.645 que prevê a obrigatoriedade da História e cultura africana, afro-brasileira e indígena em todo o currículo escolar. Mas se os povos negros têm importância na formação da nossa nação, o que precisamos problematizar é a maneira que suas histórias aparecem no cotidiano escolar. Livros didáticos, planejamentos e aulas tendem ainda a limitar a população negra ao lugar de “escravos” ao longo dos séculos coloniais. É comum também abordagem das heranças culturais africanas e afro-brasileiras na constituição da brasilidade. O racismo, aparece timidamente, como manifestação que deve ser evitada, porém, faz-se necessária não só uma educação não racista. Precisamos ter um processo educacional antirracista.
Uma educação antirracista é um exercício de olhar para as nossas histórias. Problematizar as desigualdades, questionar a visão eurocêntrica, analisar a resistência da população negra, são alguns pontos essenciais nesse (re)pensar a prática pedagógica com um comprometimento nas questões étnico-raciais. Ainda hoje sentimos o genocídio e epistemicidio negro. A população negra, juntamente com seus saberes, segue sendo silenciada violentamente. Na tentativa de um embranquecimento, após a abolição incompleta da escravatura no Brasil, essas populações passaram a ser marginalizadas geográfica e socialmente.
Desnaturalizar a condição de escravizados, já que não eram “escravos”, mas eram escravizados e, portanto, vítimas de uma violência racista e colonial. Analisar a pluralidade dessas populações africanas, que vinham traficadas desde o outro lado do atlântico, para onde seus idiomas, crenças, saberes, passariam a não valer mais. Separados de suas famílias, arrancadas de sua terra, homens e mulheres, crianças e velhos, quando sobreviviam ao tráfico negreiro, eram negociados e passavam a vida em condição de submissão, exploração e desumanização.
O país que tem uma das legislações mais rígidas contra o racismo (crime inafiançável), na prática ainda vive o mito da democracia racial, onde existe racismo, mas não há racistas. É como se continuássemos ainda a legislação figurativa, que desde a Lei Eusébio de Queiróz 1850, feita para agradar a Inglaterra (daí a expressão “para inglês ver”), que sob pressão internacional proibiu o comércio mas não a escravização, passando pela Lei do Ventre Livre (que permitia a liberdade da criança mas mantinha a mãe ainda escravizada) ou a Lei do Sexagenário que libertava os negros após os 60 anos. (sendo que a expectativa naquele período e condições, raramente chegava-se aos 60 anos. E quando se alcançava não havia documento para provar). Nosso problema está além da esfera da legislação teórica. Está na raiz educacional que modela a prática cultural.
É fundamental que os professores do Ensino Básico desenvolvam novas práticas educativas voltadas ao ensino de história e do papel do negro na formação da cultura afro-brasileira, resgatando historicamente os processos pelos quais a população negra foi marginalizada e invisibilizada da história. Compreender o abismo social existente na pós abolição, (incompleta) entre a dita “modernidade” e a urbanização seletiva nas cidades, é solidificar o conhecimento coletivo sobre racismo. Uma abordagem crítica de compreensão histórica, que aplicada na esfera da educação, contribui para minimizar o silenciamento da memória negra e o embranquecimento dos espaços públicos urbanos, a partir de uma urbanização seletiva e excludente.
Deve-se olhar para o passado para responder as perguntas do presente. Por que existe racismo? Por que nos morros, vilas e favelas há mais negros que brancos? Por que o sistema carcerário é majoritariamente composto por negros? Por que nas escolas particulares há mais brancos que negros, e na pública mais negros que brancos? Por que falar de cotas raciais? Compreendendo o passado, mas também o presente, colonial, segregacionista e embranquecido da história da população negra é que podemos progredir em uma educação não apenas não racista, mas antirracista.
É importante desenvolver, analisar e problematizar nas atividades pedagógicas a valorização da memória histórica, da diversidade cultural e das relações de interculturalidade. Entende-se por interculturalidade, a promoção de uma educação para o reconhecimento do “outro”, para o diálogo entre os diferentes grupos sociais e culturais, uma educação para a mediação cultural, para a paz, integração e humanização do indivíduo.
O tema deve aparecer nas aulas, as referências devem conter autores(as) negros (as), o conteúdo deve ser visto de forma interdisciplinar, problematizada, crítica e plural, relacionando ao cotidiano e sobretudo, fomentando o sentimento de equidade e fraternidade entre todos na valorização e defesa da dignidade humana. A História potencializa-se na construção do saber, quando o conhecimento é experiência pessoal e torna-se internalizado. A aplicação em sala de aula destas práticas, mostra que uma abordagem crítica de compreensão histórica, que aplicada na esfera da educação patrimonial, na memória e no não silenciamento e embranquecimento dessas história, contribui para combater as práticas sociais discriminatórias e coloca o negro como sujeito ativo na formação do Brasil e como protagonista de sua própria história, que lutou, resistiu e existiu.
Referências para sabermos sobre o tema:
ADICHIE, Ngozi Himamanda. O Perigo de uma história única. Companhia das Letras, 2019.
ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural? Letramento, 2018.
CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: ASHOKA Empreendimentos Sociais; TAKANO Cidadania (Orgs.). Racismos contemporâneos. Rio de janeiro; Takano Editora, 2003.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016
EVARISTO, Conceição. Da representação auto-representação da mulher negra na literatura brasileira. Revista Palmares. Cultura Afrobrasileira. Ano I, nº I – agosto, 2005, ISSN 108 7280.
FANON, Franz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador, EDUFBA, 2008.
HOOKS, Bell. Intelectuais Negras. Revista Estudos feministas. Nº2/95. vol.3. 1995.
RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual Antirracista. Companhia das Letras, 2019.
Ver: Portal Geledes.org.br
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