Coluna Lido para Você
Dimensão Jurídico-Política da Reforma Psiquiátrica Brasileira: Limites e Possibilidades. Ludmila Cerqueira Correia e Rachel Gouveia Passos (Organizadoras). Rio de Janeiro: Editora Gramma, 2017, 290 p.
Por uma Pedagogia da Loucura: Experiências de Assessoria Jurídica Popular Universitária no Contexto da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Ludmila Cerqueira Correia. Tese de Doutorado. Brasília: Universidade de Brasília/Faculdade de Direito, 2018, 380 p.
Aconteceu em Brasília, conforme se vê na ilustração, o lançamento do livro Dimensão jurídico-política da Reforma Psiquiátrica brasileira: limites e possibilidades.
O livro, organizado por Ludmila Cerqueira Correia e Rachel Gouveia Passos, publicado em 2017 pela Editora Gramma, visa apresentar fundamentos teórico-críticos e jurídico-políticos que possibilitem reflexões para os diversos sujeitos sociais e coletivos, a fim de possibilitar o avanço da Reforma Psiquiátrica brasileira e o seu aperfeiçoamento.
Segundo as organizadoras, no release preprado para o lançamento, pretende-se suscitar questões sobre os desafios encontrados não só com a criação e regulamentação das legislações, mas também com os entraves para a sua efetivação e os engessamentos que ocorrem quando se descola a militância política da política pública, implicando novos impasses e desafios. Trata-se se uma coletânea com 11 capítulos, resultantes de pesquisas de dissertações de mestrado e teses de doutorado, de núcleos de estudo, pesquisa e extensão e de experiências empíricas.
As autoras e os autores que contribuíram para esta obra estão inseridos em diferentes instituições, proporcionando um olhar multidisciplinar para a dimensão jurídico-política da Reforma Psiquiátrica brasileira. São elas/eles: Artur Perrusi (UFPE), Marco José de Oliveira Duarte (UERJ), Ludmila Cerqueira Correia (UFPB), Fabiana da Cunha Saddi (UFG), Carlene Borges Soares (SES-GO), Haroldo Caetano da Silva (Ministério Público/GO), Maria Aparecida Diniz (SES-GO), Karen Michel Esber (SES-GO), Manuella R. de Almeida Lima (SES-GO), Ellen Ribeiro Veloso (UFG), Matthew J. Harris (Imperial College London), Luana da Silveira (UFF), Ana Isabel Pereira Moreira (UFF), Ana Vitória Lossávaro Custódio (UFF), Carolina Cordeiro Gonçalves (UFF), Isabella Pessanha Bittar de Carvalho (UFF), Jéssica Pereira da Silva (UFF), Leniara Dias Barreto (UFF), Patrícia Henrique de Souza Durans (UFF), Vitor Duncan Marinho (UFF), Daniel Adolpho Daltin Assis (Ministério da Saúde), Alyne Alvarez Silva (UFCG), Anna Luiza Castro Gomes (UFPB), Murilo Gomes Franco (UFPB), Olívia Maria de Almeida (UFPB), Rachel Gouveia Passos (UFRJ) e Tathiana Meyre da Silva Gomes (UFF).
O lançamento em Brasília marcou as comemorações dos 30 anos de O Direito Achado na Rua que, neste ano de 2018, segue um extenso e marcante calendário de celebrações e registros culturais, acadêmicos e políticos.
A convitre das Organizadoras fiz o prefácio da obra. Ali, para me aproximar do tema proposto, salientei que em meus estudos sobre a questão da norma e da normalização fui levado, inexoravelmente, a estabelecer algumas aproximações e umas tantas distinções para poder afirmar, no meu campo de pesquisa, o jurídico, uma particularidade não apropriável, em outros campos, com foco na mesma questão.
Vale dizer, tomando como ponto de partida uma consideração antropológica, que enquadra o Direito no moderno e, especialmente no urbano, aí se nota o que Ralph Linton indicou para o objeto jurídico, por meio da normalização, apresentando-se este como “um substitutivo pratico da religião”, levando a admitir, no pós-moderno, poder considerar-se a psiquiatria, na sua condição normalizadora, um substitutivo prático do direito.
Por isso, nesses meus estudos, levei muito em conta o que me pareceu ser uma conclusão possível, extraída do livro A Escravidão Psiquiátrica de Tomas Szasz, referido às suas análises da sociedade norte-americana, constatando que nos Estados Unidos “mais pessoas são condenadas a internação psiquiátrica, sob o fundamento de que são perigosas para si mesmas e para o grupo, do que pessoas são condenadas a internação penal sob o mesmo fundamento, isto é, de que são perigosas para si mesmas e para o grupo”.
Com efeito, ao buscar-se o substrato ontológico da “normalização”, isto é, da condição de “normalidade”, daquilo que é, por convenção ou por tradição, “normal” ou, conforme a “norma”, não se pode negar, apresentar-se esse substrato, ora como “normalização” religiosa, “normalização” juridicial ou, seguindo Szasz, “normalização” psiquiátrica. Esse substrato esteve sempre presente nos processos que serviram de medição a “desvios”, para enquadramento nos padrões de “normalidade” vigentes enquanto pontos de vista em determinado tempo e lugar.
São essas questões que animam o conjunto de textos e reflexões reunidas no livro “Dimensão jurídico-política da Reforma Psiquiátrica brasileira: limites e possibilidades”, organizado com muito critério por Ludmila Cerqueira Correia e por Rachel Gouveia Passos.
O livro, como destaca o Prefácio de Isabel Lima, coordena abordagens que confrontam a “complexidade que envolve a temática” nele examinada, com base em “artigos que resultam de pesquisas” desenvolvidas em diferentes centros de investigação, todos “capturados, teórica e empiricamente, de modo interdisciplinar, em sua “dimensão jurídico-política”.
Para a autora do Prefácio, os “artigos – reunidos no livro – possuem a preocupação de proporcionar aos leitores e leitoras não só uma reflexão crítica acerca do movimento da realidade, quanto a busca da sua transformação, seja através da garantia dos direitos, com o aprofundamento da dimensão jurídico-política, seja pela superação do pensamento manicomial através das demais dimensões: epistemológica, técnico-assistencial e sociocultural”. Eles se prestam, tal como advertiam Szasz, Cooper, Laing, a romper com um imaginário de conformação, ilustrado pelo paradigma manicomial, em sua função também política, configurada em termos bem definidos por Roberto Aguiar (Direito, Poder e Opressão), para quem, tudo se realiza como “questão de exercício de poderes e de controles necessarios no sentido da urdidura das teias que exprimem as ideologias e os controles necessários para a sustentação de uma dada ordem ligada a interesses e a um imaginário ideológico”.
Anoto a advertência de Basaglia, chamando a pensar a loucura a partir da lógica positivista que a concebe apenas como um produto social. Para ele, a loucura pode até ser pensada como uma doença, mas uma doença que é a expressão das contradições de um corpo que tem de ser compreendido como um corpo orgânico e social. Por isso, valho-me mais uma vez da consideração proposta no Prefácio para caracterizar este livro: “Em tempos em que o conservadorismo se atualiza e se fortalece, é necessário reafirmarmos a que veio a Reforma Psiquiátrica brasileira: “Por uma sociedade sem manicômios”, sejam eles as instituições, os valores, as legislações ou toda a prática que produz o encarceramento, o isolamento e a exclusão”. A separação entre esses elementos produz comumente certos paradoxos que não são percebidos. O positivismo, por exemplo, legal ou epistemológico. Os ensaios reunidos reunidos no livro, contribuem para emancipar o tema, desafiando as formas redutoras contidas na sobrevivência alienante do pensamento manicomial.
Esse sentido de emancipação é o forte da tese de Ludmila Cerqueira Correia, Por uma Pedagogia da Loucura: Experiências de Assessoria Jurídica Popular Universitária no Contexto da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Ludmila Cerqueira Correia. Tese de Doutorado. Brasília: Universidade de Brasília/Faculdade de Direito, 2018.
Chamo a atenção dos Editores para esse trabalho. Atenção meus caros amigos Plácido Arraes (Editora D’Plácido) e Cristiano Mabilia (Editora Lumen Juris). É um trabalho de fôlego, de grande alcance teórico-político, que se apresenta como uma leitura indispensável para compreender a complexidade desse tema.
A tese, que tive o privilégio de orientar, analisa – diz o seu resumo – as experiências de assessoria jurídica popular universitária em direitos humanos e saúde mental no Brasil, na perspectiva do acesso ao direito e à justiça. Partindo de um conjunto articulado de argumentos teóricos, nas áreas da saúde mental e do direito, destacam-se dois aspectos: a mobilização jurídico-política do Movimento Antimanicomial e sua constituição enquanto sujeito coletivo de direito; e a elaboração conceitual do acesso ao direito e à justiça e sua interface com a saúde mental.
O conceito ampliado de acesso ao direito e à justiça é tomado como referência ao lado dos métodos da assessoria jurídica popular e da extensão universitária popular para a análise da atuação dos grupos investigados. Foram selecionados todos os grupos de assessoria jurídica popular universitária com atuação em direitos humanos e saúde mental no Brasil, quais sejam: Grupo de Pesquisa e Extensão Loucura e Cidadania (UFPB), Grupo Antimanicomial de Atenção Integral (SAJU/UFRGS) e Coletivo Um Estranho no Ninho (UFF).
Contextualizando a luta antimanicomial no Brasil na perspectiva de O Direito Achado na Rua, destaca-se a relação desta corrente teórico-prática com a Psiquiatria Democrática italiana e define-se o Movimento Antimanicomial como um sujeito coletivo de direito. Identificam-se a mobilização jurídico-política deste movimento social e suas demandas por acesso ao direito e à justiça para loucas e loucos no âmbito das III e IV Conferências Nacionais de Saúde Mental. Consideram-se as estratégias de acesso ao direito e à justiça no âmbito da saúde mental, com destaque para a assessoria jurídica popular na extensão universitária.
Na tese, a Autora procede a uma revisão teórica sobre o acesso ao direito e à justiça, a assessoria jurídica popular e a extensão universitária. A estratégia da pesquisa consistiu em um estudo de campo sobre as experiências de assessoria jurídica popular universitária em direitos humanos e saúde mental no Brasil e sua relação com o acesso ao direito e à justiça para loucas e loucos, considerando dois níveis de análise. Um relativo a cada grupo de assessoria jurídica popular universitária em direitos humanos e saúde mental e outro relativo a um caso atendido por cada grupo.
Em ambos os níveis, são observados os seguintes planos de análise: concepções que orientam a atuação dos grupos; elementos que emergem dessa atuação; e dimensões do acesso ao direito e à justiça a partir das ações desses grupos. Foi utilizado um conjunto articulado de técnicas para coleta de dados no primeiro nível: análise documental, aplicação de questionário, visita, observação com registro em diário de campo e entrevistas semiestruturadas.
Quanto ao segundo nível, relativo ao estudo do caso de cada grupo, foram utilizadas as seguintes técnicas: análise documental e entrevistas semiestruturadas. Através da análise das falas das pessoas entrevistadas e dos documentos dos grupos, verifica-se a construção de uma ponte do acesso ao direito e à justiça para loucas e loucos a partir da pedagogia da loucura, que converge para um processo de co-tradução como facilitador do diálogo entre esse grupo subalternizado e uma série de atores e instituições responsáveis pela garantia dos seus direitos.
As conclusões sobre o estudo de campo explicitam as potencialidades da assessoria jurídica popular universitária como estratégia de acesso ao direito e à justiça no âmbito da saúde mental, abrindo brechas no Sistema de Justiça e nas políticas públicas. Trazem também a possibilidade da construção de um conceito de mobilização do direito baseado na interdisciplinaridade, uma vez que o contato e o trabalho com outras áreas de saber impulsionaram outras formas de pensar e mobilizar o direito. São apresentadas propostas de atuação da assessoria jurídica popular universitária nos processos de Tomada de Decisão Apoiada, de acordo com a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e a Lei Brasileira de Inclusão.
É nítida na tese, a sua vinculação aos pressupostos teórico-políticos de O Direito Achado na Rua, conforme se deduz do livro que organizei (O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática. Rio de Janeiro: Editora Liumen, 2015), no qual Ludmila é autora. Essa vinculação está mais especificamente estabelecida, tanto no plano da análise de fundo (a questão antimanicomial), quanto na articulação das estratégias de defesa da titularidade jurídica da subjetividade dos sujeitos (assessoria jurídica popular), assim como temos formulado Ludmila, eu próprio e outros companheiros no plano da afirmação de um direito emancipatório (cf. CORREIA, Ludmila Cerqueira; ESCRIVÃO FILHO, A. ; SOUSA JUNIOR, J. G. . Exigências críticas para a assessoria jurídica popular: contribuições de O Direito Achado na Rua. Coimbra: CESCONTEXTO, v. 1, p. 163-174, 2017 e CORREIA, Ludmila Cerqueira; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. A luta antimanicomial na perspectiva de O Direito Achado na Rua. In: ARGUELLO, Sergio Martín Tapia; PAUCAY, Vicente Solano. Crítica Jurídica en América Latina. Cuenca (México): Universidad Católica de Cuenca, 2018).
Nas experiências analisadas, a interdisciplinaridade demonstra a possibilidade da construção de um conceito de mobilização do direito identificado na inter-relação entre as concepções de O Direito Achado na Rua e da Psiquiatria Democrática. É possível afirmar que foi o contato e o trabalho com outras áreas de saber que impulsionaram outras formas de pensar e mobilizar o direito. Trata-se, portanto, de uma construção inovadora tanto para as perspectivas críticas do direito, em especial, O Direito Achado na Rua, como para a luta antimanicomial.
Nas palavras da Autora, Tudo o que propus aqui é fruto do que captei da atuação de três experiências de assessoria jurídica popular universitária em direitos humanos e saúde mental. Trata-se do início de um novo caminho no âmbito da assessoria jurídica popular, que retrata os esforços de se abrir brechas e fendas no mesmo campo onde se registra grande parte do estigma e da normalização das loucas e loucos, aquele do direito e do Sistema de Justiça. Tais esforços se observam, ainda, nas políticas públicas, com destaque para aquelas da saúde mental e da assistência social, as quais, muitas vezes, também se mostram normalizadoras e repressoras.
Assim é que, nas Considerações Finais da Tese Ludmila pode afirmar categoricamente, numa consigna fundamental para a conjuntura de retrocesso que se vivencia no país: NENHUM PASSO ATRÁS, MANICÔMIO NUNCA MAIS. E, se na formulação de Roberto Lyra Filho, de quem recebemos a nominação O Direito Achado na Rua, porque para ele o Direito só pode ser enquanto enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade, é preciosa a transcrição que Ludmila traz para fechar a sua tese, do poema-manifesto deum dos sujeitos autênticos da luta antimanicomial:
Devolva minha liberdade
(Gilvan Araújo – AMEA)
Eu luto pelos meus direitos
Você também pode lutar
Que tem coisa neste mundo
Que eu sei que pode mudar
Fui na delegacia não deixaram eu falar
Fui no Ministério Público, eu levantei, mandou sentar
Fui pegar o meu dinheiro, não deixaram eu sacar
Fui lá na rodoviária, não deixaram eu viajar
Mandou chamar a pessoa que ia me acompanhar
Mas galera se una, vamos se movimentar
Levantem e dêem as mãos
Vamos todos gritar
Para ver se a Justiça ouve e possa me libertar
Que interditado não dá
Que interditado não dá
Eu perco a voz e o respeito
Meu direito de assinar
Que interditado não dá
José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Associado IV, da Universidade de Brasília e Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua. |
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