Democracia: da crise à ruptura

 

Coluna Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

 

 

 

DEMOCRACIA: DA CRISE À RUPTURA. Jogos de Armar: Reflexões para a Ação.  Roberto Bueno (Organizador). São Paulo: Editora Max Limonad, 2017, 1131 p.

     O livro vem a ser uma obra alentada. São 1131 páginas, média dos volumes organizados pelo Professor Roberto Bueno, da Universidade Federal de Uberlândia que concluiu sua edição quando se encontrava em programa de cooperação técnica na Universidade de Brasília. No ano seguinte, 2018, pela mesma Editora Max Limonad, o professor Roberto Bueno publicou outro volume também muito denso, 641 páginas, com o título Democracia Sequestrada. Oligarquia transnacional, pós-neoliberalismo e mídia.

     No livro de 2018, a finalidade é “a análise e a exposição pública de uma dura, inflexível, cruel e universal forma de poder e domínio aqui classificada como oligárquica-pós-neoliberal (e) seu exitoso desiderato (é) o de sequestrar a democracia de suas raízes sobreano-populares, e para isto (lançar) mão de instrumentos de domínio midiático-judicial-parlamentares articulados pela esfera financista oligárquico transacional”.

     Estudioso do pensamento autoritário, que inclui referências teórico-doutrinárias, engajadas em projetos políticos de traços despóticos, desde Carl Schmitt, no contexto filosófico a partir de sua contribuição ao nacional-socialismo alemão; a Francisco Campos, que serviu à ordem ditatorial brasileira em seus diferentes momentos no Estado Novo e na Ditadura civil-militar de 1964-1985, o professor Bueno se tornou um voz acadêmico-militante contra o golpe parlamentar-judicial-midiático que se estabeleceu no Brasil desde 2016.

     Esse engajamento se manifesta nos pronunciamentos agudos desse professor que jamais se omite, está candente em seus artigos semanais em diversos veículos (jornais e blogs) e orienta a edição do livro ora Lido para Você.

Créditos: PixaBay

     Ainda agora, às vésperas de enviar este texto para edição, o Autor, guardando o compromisso com a sua leitura crítica da realidade, adverte, em face das movimentações e dos jogos táticos da conjuntura, sobre a urgência de que os militares devam voltar à caserna, e não só pelo desvario de seu representante sazonal em surto contínuo, pois, conforme ele diz em artigo, no Blog Cartas Proféticas, “mesmo que orientados por forte pressão política é preciso que os militares assumam clara e resolutamente uma posição de desentranhar-se da vida política e, por conseguinte, dos milhares de cargos que ocupam em todas as esferas do Governo Federal. A chave para a retomada da estabilidade e da democracia passa, inexoravelmente, pelo regresso dos militares à caserna”, e que se coloquem “as condições de possibilidade para a restauração democrática (com) a convocação de eleições gerais” (acesso em 14.05.2020).

     Uma consideração tanto mais forte quanto, de certo modo como o personagem de Almodóvar (em Ata-me), que foge de internação, “fingindo ser normal”, o que mais requer atenção é essa outra face de Janus (talvez fosse mais adequado dizer, parecendo ser Dr. Jekyll quando é verdadeiramente, Mr. Hyde), na iminência de um 18 Brumário à brasileira, conforme a chave que desenvolvo neste Lido para Você, testemunhando a Constituição ser arguida contra a Constituição, tal como mostram Gladstone Leonel Jr, Diego Diehl, Emiliano Maldonado, Ricardo Pazello, Enzo Bello, Lucas Machado, Rene Keller (O perigo do golpe dentro da Constituição em meio à pandemia in https://www.thetricontinental.org/pt-pt/brasil/o-perigo-do-golpe-dentro-da-constituicao-em-meio-a-pandemia/, publicado em 13.05.2020):Os militares se apressam a dizer o mesmo que seu chefe: “cumpriremos a Constituição”. O significado de “cumprir a Constituição”, ou, mais a fundo, questionar “o que é a Constituição”, é matéria fundamental, mas tão complexa que a urgência da atual conjuntura não permite analisá-la agora com a devida profundidade. O que importa nesse momento é atentar para o fato de que, não raras vezes, verdadeiros golpes de Estado ocorrem “dentro da Constituição” para depois se voltarem contra ela e, por fim eliminá-la do cenário jurídico e político nacional. Contanto, inclusive, com a chancela de parte do poder Judiciário”.

     Assim que, essa face “gentil”, em retrato de discurso aparentemente elegante e consistente (lembremos Schopenhauer, e seus 38 estratagemas de Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razão) não oculta os sofismas e as falácias, de artigo de opinião publicado dia 14/05/2020 no Jornal Estado de São Paulo – Limites e Responsabilidades – assinado pelo general vice-presidente da República, logo identificadas em síntese pelo professor Enzo Bello, da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense: “Ou Mourão não entendeu o que é federalismo (todos os entes federativos devem ter o mesmo patamar) ou Mourão não entendeu que “Os Federalistas” formaram parte de um golpe (a Convenção da Philadelphia não tinha como objetivo formar uma constituinte, muito menos uma federação) ou Mourão não entendeu o que deve ser a separação de poderes (controle recíproco) ou Mourão entendeu que a tal “ameaça de desorganização do sistema produtivo [capitalismo]” só ocorre no Brasil e em mais nenhum outro país capitalista do mundo ou Mourão está armando cama para um golpe de estado mesmo…”.

     Volto ao livro. A obra, expõe o seu Organizador, “está composta por trinta artigos de autores latino-americanos (Brasil, Argentina, Chile e Peru), da Europa (Espanha, França, Itália e Portugal) e dos Estados Unidos da América, cujos trabalhos expressam a pluralidade de formações e culturas políticas às quais pertencem e contextos nos quais exercem as suas funções intelectuais. Esta riqueza contribuiu decisivamente para o êxito final deste projeto que propõe a crítica dos dilemas que atravessam a democracia contemporânea sugerindo para além de sua anunciada crise a existência de uma possível ruptura conceitual. Diversos campos teóricos foram mobilizados para analisar a profundidade das armadilhas e ataques sofridos pela democracia contemporânea que virtualmente a colocam em xeque através de estratégias políticas deslegitimadoras. As práticas antidemocráticas de viés autoritário bem descrevem diversos momentos da história brasileira que é tomada como preocupação por este livro ao lançar olhar analítico-compreensivo de seus fenômenos mais recentes”.

     Assim é que concorreram para o livro, além de seu Organizador Roberto Bueno que o apresenta, faz um estudo introdutório: Democracia em crise e as suas alternativas. Reflexões sobre a democracia avançada a partir do conceito de conflito como eixo das instituições democráticas e desenvolve os capítulos Democracia y derechos humanos: expansión y calificación de la democracia; e A invisibilidade do poder e as democracias: dirigentes globais e economia à sombra da política;  Pablo Holmes, autor do Prefácio e do capítulo Crise da democracia como crise de legitimação: um teorema sociológico para os desafios evolutivos contemporâneos do sistema político; e ainda (talvez o último artigo publicado no Brasil antes de seu falecimento, em julho do ano passado), Ágnes Heller, Are there obligations withoiut rights?; Philippe C. Schmitter, A Sketch of what a ‘Post-Liberal’ Democracy Might Look Like; Luís Oro Tapia, Aspectos de la conflictividad; Ricardo Cueva Fernández, Locke, los Padres Fundadores y la ideologia: balance sobre la historiografia “revisionista” de la emancipación norteamericana; Juan Ramón Álvares Cobelas, Democracia directa y referendum: a propósito de lãs consultas unilaterales de autodeterminación; Claudio Martyniuk, Poética de la libertad; Franciele Vieira Oliveira, El déficit democrático de la Unión Europea y sus críticas: entre la experiência del pasado y El horizobte de la integración; Jorge J. Moreno Hernández, La democracia ateniense: de sus Orígenes a nuestros dias; Verónica Benavides Gonzales, La crítica de la democracia liberal desde la teoria feminista: El aporte de Catharine Mackinnon; Maurício Chapsal Escudero, Punto de partida para entender El pensamiento político de Marsílio de Padua; Paúl Jhon Hinojosa Carrillo, Memoria: La democracia em ell Perú; Ana Paula de Ávila Gomide, A fragilidade do indivíduo na sociedade administrada: os estudos empíricos de Adorno sobre o potencial autoritário; Alain de Benoist, La crise actuelle de la démocratie; Cássio Corrêa Benjamin, Democracia e imanência; Joelma Lúcia Vieira Pires, As políticas de avaliação da educação escolar: consequências para a constituição da sociedade democrática; Carlos Sávio Gomes Teixeira, A democracia experimentalista de Unger; Maria Eugenia Bunchaft, Obergefell v. Hodges: uma reflexão à luz do debate entre constitucionalismo democrático e minimalismo judicial; António Bento, Democracia e goberno (Rousseau, Foucault, Agamben, Zarka e Schmitt em perspectiva); Argemiro Cardoso Moreira Martins e Larissa Caetano Mizutani, A noção de paradigma jurídico e o paradigma do Estado Democrático de Direito; Luís Filipe Trois Bueno e Silva, Políticas públicas e comunidades tradicionais indígenas a partir dos aportes de “capability approach” e da teoria de reconhecimento; Delamar José Volpato, A fundamentação discursiva do estado de Direito como imperativo categórico e como imperativo hipotético; André Barata, Modernidade, fundamentalismo e democracia: uma aproximação crítica; Andityas Soares de Moura Costa Matos, As jornadas de junho de 2013 no Brasil entre o marxismo e o pós-modernismo: rumo a uma democracia crítico-radical; Alexandre Franco de Sá, Do Leviatã ao Cérbero: legitimidade, legalidade e excepção na crise do Estado democrático; Bruno Peixe Dias, A excepção e a regra: da excepção como desvio à democracia como excepção; Marcelo Neves, Do transconstitucionalismo à transdemocracia.

     A rica coletânea, constituída por autores e autoras de diferentes percursos e de aspirações muitas vezes distintas, tem, contudo, um nexo, um fio condutor coerente cerzido com boa medida, tal como o Organizador expõe em sua Apresentação que serve de chave de leitura para o conjunto das singularidades discursivas. O que há, diz o apresentador-organizador de “comum a todos os trabalhos deste livro é a ciência de que todos os esforços em curso são sempre inconclusos embora necessários, pois a reflexão sobre a democracia é tarefa sisífia, sempre carente de rearmações, reelaborações, posto que a sua realização está diretamente conectada com as novas aspirações dos sujeitos históricos emergentes”.

     Convidado a participar da obra, contribui com um texto afinado com seu projeto, mas que se originou de provocação anterior que me havia sido feita em outro programa editorial. Denominei meu artigo de Estado Democrático da Direita*

     Nele, parto de uma observação do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos se presta bem para abrir este texto (1993: 73). Na sua posição de enfrentamento ao modelo capitalista de constituição da sociedade, ele afirma que não combate o capitalismo porque ele é democrático.  Para ele o capitalismo até logra cumprir as promessas democráticas que faz. Instituir, por exemplo, um estado de direito, com arcabouço legislativo, incluindo a sua principal expressão, qual seja, a de institucionalizar uma Constituição e nela, estabelecer o sistema de separação de poderes e a proteção aos direitos humanos (conforme a designação contida na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, “não será constituição a que não assegure a separação dos poderes e a proteção aos direitos do homem”).

     Para Boaventura, entretanto, o capitalismo, não pode ser plenamente democrático, porque a sua promessa carrega um vazio de possibilidade, conseqüente ao seu princípio ativo, a acumulação egoísta tendente a uma distribuição excludente e a sua representação ideológica, expressa no formalismo jurídico, que tudo promete formalmente, mas que pouco concretiza no plano material.

     Para lembrar Ferdinand de Lassale (o antigo correligionário de Marx, depois bandeado para a articulação organizada por Bismark, para constituir o estado burguês alemão) e seu conceito de Constituição, se essa não realiza a expressão material dos “fatores de poder” que são a sua essência material, ela será não mais que uma forma jurídica e, em última análise, uma “mera folha de papel” (2001: passim).

     Basta lembrar, no Brasil, o alcance desse sentido retórico da institucionalização pelo jurídico, pondo em relevo o fato de que todas as experiências autoritárias de nossa formação social, tomaram forma jurídica. Todo o regime de 1964, com a ditadura que se instalou no País, se representou com forma jurídica, inclusive constitucional, mantendo a Constituição de 1946, promulgando a sua própria de 1967 e afeiçoando-a ao seu recrudescimento autoritário com a emenda plena de 1969 (que muitos denominam de Constituição), todas circunscritas a um sistema normativo sobre determinante, denominado Ato Institucional (como expressão “constituinte” do poder “revolucionário”, com todas as aspas possíveis).

     Anote-se o quanto, nessa medida, o “sistema” incorporou a expressão  formal do Direito, com a linguagem atualizada das garantias fundamentais, indicando em seu texto a vigência do habeas corpus e da salvaguarda de exame judicial dos atos administrativos, enquanto no cotidiano de governança, se censurava, se torturava e se praticavam assassinatos políticos, sob a reserva de resguardo à “segurança nacional”, a partir de ações interditadas ao alcance de habeas corpus ou à apreciação de sua própria legalidade pelo Poder Judiciário (ESCRIVÃO FILHO e SOUSA JUNIOR: 2016: passim).

     É nesse passo que o Estado de Direito Democrático se converte em Estado Democrático de Direita. Esse passo se dá na medida em que a convergência entre os interesses de poder e de acumulação capitalista, já não assimila sequer o discurso democrático, mesmo retórico, como por exemplo, o que se prestou a legitimar a sua emergência hegemônica para se afirmar como expressão dominante (a burguesia patrimonialista  francesa afirmando os direitos do homem para arrebatar à aristocracia seus bens dominiais e seu poder político). Ou, no golpe de  Luiz Bonaparte (ironicamente chamado por Marx de o 18 Brumário de Luiz Bonaparte), escancarando situações em que a sua própria legalidade se torna um estorvo: “A legalidade nos sufoca”, proclamava Odilon Barrot, o chefe de governo contra a legalidade “dele”, para por em prática a política reacionária de restrição às liberdades de imprensa e de reunião e de dissolução dos “clubes” e outras formas de organização da oposição política à nova ordem instalada com o golpe (MARX, 1974: passim), configurando sempre A História de um Crime, como o classificou Victor Hugo.

     Ou ainda, o que assistimos agora em nosso próprio País, com a Constituição arguida contra a própria Constituição, para dela extrair-se, com o uso meramente formal de um enunciado, vale dizer, a previsão de aplicação de procedimento de afastamento do Presidente ou da Presidenta da República, uma retórica mobilizadora de engajamentos (sociais, políticos, jurídicos), delirantes de seu necessário fundamento material, a precisa tipificação de conduta que assim possa ser configurada como crime que justifique o afastamento (impeachment). Por isso, a configuração desse processo como um golpe, sem armas, sem quartelada, mas uma ruptura com a base de legitimidade do sistema constitucional-jurídico, um atentado à democracia, uma forma de traduzir, sem nenhuma sutileza, o Estado Democrático da Direita, que se vale da lei para esvaziá-la de suas melhores promessas.

     Aqui entra em causa um outro modo, esse mais sutil, de identificar o Estado Democrático da Direita. Refiro-me a sua disponibilidade para usurpar, apropriar-se e investir-se das representações e das narrativas simbólicas das conquistas históricas e jurídicas conferidas nas lutas travadas pelos sujeitos individuais e coletivos por reconhecimento da dignidade humana, da cidadania e dos direitos.

     Valho-me de um registro de experiência pessoal para ilustrar esse deslocamento sutil. Em 1987, durante o processo constituinte que desaguou na Constituição de 1988, a chamada “Constituição Cidadã” por contraposição à Constituição do pós-colonialismo de 1824, censitária, patrimonialista, patriarcalista, racista, por isso mesmo apelidada de “Constituição da Mandioca”. Naquela ocasião, representando a Comissão Brasileira de Justiça e Paz (CNBB), pude prestar depoimento na Sub-Comissão de Cidadania e Direitos, na modelagem participativa que o Regimento da Assembléia havia instalado para dialogar e receber indicações para o processo. Falei sobre os novos direitos, sobre as experiências instituintes de participação já catalogáveis nos processos sociais emancipatórios de poder local (experiências de gestão compartilhada e participativa de várias prefeituras brasileiras), podendo constatar o espanto e a surpresa da maioria dos parlamentares integrantes da Comissão, muitos se deparando com aqueles conceitos e registros, pela primeira vez, aturdidos com a contraposição, entre os enunciados do modelo de representação com os quais estavam acostumados e com o sentido diferido de um sistema retórico de nominação de direitos, formalmente inscritos nas constituições, todavia, nunca realizados porque diferidos à concretização futura, “na forma da lei” ou “como a lei venha  a estabelecer”, não mais que promessa porém, promessa vazia. Todavia, ao final do processo, já se encontravam esses constituintes investidos da nova linguagem democrática, de cidadania e de direitos, de tal modo que a Constituição afinal promulgada o foi sob a caracterização inédita de inaugurar no constitucionalismo latino-americano o modelo de democracia direta e participativa, com instrumentos para a iniciativa, a gestão e o controle social por meio dos novos sujeitos constitucionais (SOUSA JUNIOR, 1982: 28-34).

     É certo que o embate constituinte, instaurado numa conjuntura de transição política entre a ditadura instalada em 1964 e o movimento para resgatar a gestão civil orientada para um processo de restabelecimento da democracia, se expressou como uma mediação possível, precedida da luta pela anistia e preparatória da reivindicação da memória e da verdade, enquanto medidas éticas para realizar o que se denomina Justiça de Transição (que admite, sim, reconciliação, mas implica necessariamente processar os perpetradores dos crimes, revelar a verdade sobre esses crimes, conceder reparações às vitimas e reformar, redemocratizando, as instituições responsáveis pelos abusos) (SOUSA JUNIOR et al (org)2015: passim).

     Nessas condições, acabou por incorporar no projeto de sociedade que se reconstituía, o horizonte democrático materialmente desenhado pelos movimentos sociais, com um balizamento ideológico orientado pelas classes subalternas – trabalhadores do campo e das cidades – reivindicado protagonismo ativo para o exercício do poder político e também distributivo, um projeto, em suma, contra os interesses da direita brasileira elitista, oligárquica e hierárquica, privatisticamente possessiva (SOUSA JUNIOR coord.. 2015: passim).

     Enquadrada sob a direção de um programa de governo de base popular, democrática e inclusiva (Lula/Dilma, sustentada pelos dois principais partidos de esquerda), a direita brasileira foi aos poucos engendrando uma estratégia de desconstitucionalização, valendo-se do disfarce do discurso democrático-liberal e de reconfiguração do desenho do direito formal, legal-positivo, política e epistemologicamente caro ao seu posicionamento docemente assimilável pela racionalidade jurídico-burocrática do status quo inscrito na classe que ainda detêm os meios de produção e opera sua regulação.

     Essa disputa, travada em cada frente de antagonismo que os dois projetos de sociedade e de país provocam, revela, a cada embate, o modelo de Estado Democrático da Direita. Antes de tudo, livrar-se da legalidade que a sufoca, com táticas que vão desde a elaboração de um discurso hermenêutico de retirada de direitos (a Constituição incorporou direitos demais, como se os direitos fossem quantidades e não relações, contínuas e ilimitadas), até a institucionalização do Golpe, com aparência de institucionalidade (legislativo), como procedimentalidade formal (judiciário) e com suporte ideológico (mídia oligárquica).

     Tudo já configurável quase que num “manual de uso”, com metodologia e passo a passo totalmente previsíveis. Primeiro passo, investir-se da linguagem democrática e dos direitos, para confundir a interlocução. Para lembrar a advertência crítica de Merleau-Ponty, valer-se de expressões iguais (liberdade, justiça, direito), para ocultar a realidade a que elas remetem e os projetos que mobilizam os diferentes engajamentos. Depois, operar os sucessivos esvaziamentos: esvaziamento do conteúdo ideológico dos projetos em disputa (poder político e distribuição da riqueza socialmente produzida) e em seguida, esvaziamento do alcance democrático dos projetos em disputa: despolitização e burocratização da participação.

     O convite para redigir este artigo partia de uma afirmação. Preferi figurá-lo com uma interrogação. Um Estado Democrático da Direita é, como situei aqui, parafraseando Boaventura de Sousa Santos em relação ao capitalismo, a “utopia” (o fim da História) da direita, uma contradição em termos. Para a direita, a cidadania é consumo, a participação é tutelada e a democracia deve voltar ao leito moderno da representação e da circulação das elites.

Referências

*A matéria de que trata este texto foi originalmente publicada na Revista Esquerda Petista n. 5, maio de 2016 (Editora Página 13, São Paulo (Publicação da Articulação de Esquerda – Tendência do PT; editor Walter Pomar), págs. 56-58). Naquela versão originária o titulo foi grafado com uma interrogação, sinal para uma dúvida que se colocava então, quando as articulações que resultaram no processo de afastamento da Presidente da República não revelavam cabalmente a conspiração articulada como golpe institucional para destituir uma Presidenta eleita e substituir, sem o crivo de eleições gerais o seu programa de governo. Nesse período, ou seja, apos a edição do artigo, enquanto os fatos que caracterizaram o que já se pode com serenidade chamar-se de golpe institucional foram se desdobrando, foram inúmeras as ocasiões – atos públicos, manifestos, audiências públicas, abaixo-assinados, petições, mesas-redondas, debates, seminários, reuniões, em espaços políticos institucionais, populares, acadêmicos, judiciais, sindicais, nos quais a convicção sobre a existência de um golpe em curso foi se firmando. Entre eles, por instigação de estudantes de pós-graduação, a instalação na Faculdade de Direito da UnB, se um Seminário “Como Fazer Tese em Tempo de Golpe”. A preocupação dos estudantes disse respeito sim ao imperativo da política, mas igualmente, à preocupação com a determinação de seus objetos de estudos, quando entrevistas, atores sociais, realidades institucionais passaram a mover-se pelas incertezas da conjuntura de transição, abrindo uma atmosfera de insegurança, de subterfúgios, de hesitações discursivas e até de incerteza sobre a existência ou não de órgãos eventualmente em vias de extinção, refuncionalização ou deslocamento de instancia. Estamos neste momento preparando um e-book com o material de três sessões do seminário (ao instalá-lo apenas uma sessão havia sido programada), mas com expectativa semelhante a que dramaticamente vivenciou Gustav Radbruch, ante o impacto do nazismo sobre a sua obra Filosofia do Direito recém concluída forte no positivismo que a fundamentava, para a qual se viu obrigado a elaborar uma circular de reposicionamento, com os denominados “Cinco minutos de Filosofia do direito” (RADBRUCH, 1974: 415-418).

ESCRIVÃO FILHO, Antonio e SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016.

LASSALE, Ferdinand de. A Essência da Constituição. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2001.

LEONEL JÚNIOR, Gladstone e SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. La Lucha por la Constituyente y Reforma del Sistema Político en Brasil: Caminos hacia un “Constitucionalismo desde La Calle”. In La Migraña, Bolívia: Vicepresidencia del Estado Plurinacional de Bolívia, 2016.

MARX, Karl. O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974

RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Coimbra: Armênio Amado Editor, Sucessor, 5º edição revista e acrescida dos últimos pensamentos do autor, 1974.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crise do Paradigma. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Introdução Crítica ao Direito, Série O Direito Achado na Rua, vol. I. Brasília: UnB/CEAD, 1993.

SOUSA JUNIOR, José Geraldo de.  A Nova Constituição e os Direitos do Cidadão. Revista de Cultura Vozes, Ano 82 – Volume LXXXII – Julho/Dezembro 1988, n. 2.

SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (coord). O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2015.

SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (org)Introdução Critica à Justiça de Transição na America Latina, Série O Direito Achado na Rua, vol. VII. Brasília: MJ/Comissão de Anistia/UnB/CEAD, 2015.

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55

 

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