Coluna Democracia e Política
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A psicanálise de Jacques Lacan
A passagem dos 50 anos de publicação da obra Escritos, de Jacques Lacan, (1966) serve para lembrar a contribuição original de um psicanalista cujo pensamento contribuiu para debates sobre filosofia moral, teoria do conhecimento, lugar da arte contemporânea e todas as questões de sofrimento social provocado pelo neoliberalismo como estratégia de conformação de sujeitos. Boa parte de seu legado está no fato de que sua psicanálise estabeleceu uma ética e uma teoria da ação.
Foi o próprio autor de Escritos que perguntou “deveríamos levar a intervenção analítica até os diálogos mais fundamentais sobre a justiça e a coragem, na grande tradição dialética”? lembra Vladimir Safatle. Quer dizer, para seu intérprete, desde os anos 50 já era claro para Lacan a importância de ultrapassar o espaço do sofrimento psíquico, ultrapassar o espaço da clínica, “já que [muitas situações] dizem respeito ao campo das relações sociais”. Para Safatle, a psicologia, junto com a psicanálise seria “o setor avançado de uma teoria da ação que fornece o fundamento para toda rflexão de natureza ética, ou seja, toda reflexão ligada àquilo que se impõe a conduta humana como um dever-ser, como uma orientação a partir de valores”.
Assim, passasse lentamente de disciplinas cujos objetos são a memória, o desejo e a sexualidade, para uma reflexão sobre a ação e seus condicionamentos, seus sintomas e angustias, “impulso em direção à realização de valores que se impõem a vida”. Não se pode viver o século XX sem a crítica neoliberal marxista, da mesma forma que não se pode prescidir da análise lacaniana. Isto ocorre porque autores fundamentais para o entendimento da contemporaneidade, como Michel Foucault, Glles Deleuze, Jaques Derrida, Ernesto Laclau e Slavoj Zize construíram seu pensamento em diálogo com o psicanalista.
“Não há razão algum apara fazer o papel de fiadores dos devaneios burgueses”, afirmava Lacan. Quer dizer, a psicanálise, ao contrário do senso comum, não tem nada haver com a conquista de uma posição de conforto individual, a capacidade do individual em ajustar-se ao mundo do trabalho, ela também é o sintoma de uma crise que coloca em questão a identidade, sexualidade, socialização e justiça. É esse pensamento que inspirará Michel Foucault a deter-se nas relações da normalidade e ordem moral das instituições psiquiátricas “trata-se de perguntar qual é o preço a pagar para que a vontade possa aparecer como autônoma”, diz Safatle.
Ética da Psicanálise
A “Ética da Psicanálise” é, portanto, um princípio de orientação de cura, reconstrução da noção de normalidade, daí a questão “Não ceder de seu desejo”, vetor de reflexão de sua teoria da ação, mas também fonte dos sofrimentos psíquicos. Do desejo-como-falta (Lacan) ao desejo-como-produção (Deleuze& Guattari), Lacan contribui com a ideia de que o sofrimento é resultante do caráter repressivo da identidade, que devemos internalizar. Daí o estudo da loucura ter sido um importante espaço para a análise das “experiências no limite da despersonalização”. Diz o escritor Scott Fitzgerald “toda vida é um processo de demolição”.
Lacan propôs que para entender o homem, se fizesse confronto com o que o faz inumano, despersonalizado. SILVA JR & BEER apontam que nada mais dá exemplo do inumano que a politica. Não há nada mais enlouquecedor do que a produção e reprodução de relações de poder e nesse sentido, a teoria do laço social da psicanálise colabora para entender o significado da angustia de nosso tempo, onde as saídas parecem encerrar-se. A teoria dos discursos de Lacan (analisar, educar e governar) ao qual somou mais um (amar), explica as quatros formas do fracasso: fracasso da tentativa de justapor nosso discurso ao mundo real (analisar),etc, etc. Adiante, o próprio Lacan, assegura SILVA Jr. e BEER introduziu o discurso do capitalista como superior, como aquele discurso que fala do modo de nossa relação com o consumo, como ele exercer papel em nossa sociabilidade e os impasses subjetivos que produz “algo que organiza as relações sociais”.
Para a Psicanálise, a economia não pode ser pensada isolada. O discurso do gozo, que o fundamenta, toma formas improváveis. A cena política está presente na trajetória dos sujeitos, sua história familiar, social é também…libinal. O laço social a ser analisado é sempre produto de fantasias individuais e o gozo que vive para cooptar e excluir, alienar o campo simbólico dos indivíduos para limitar seu campo de resistência. Há uma dimensão inconsciente das práticas sociais, alinhando-se o pensamento de Lacan ao de Buyng Chul Han, de Psicopolítica: a dimensão inconsciente das práticas sociais tem a função de exercer controle social, escamotear os conflitos políticos econômicos que produzem mal estar. . Silenciar sujeitos, apagar discursos, atingir as mentes, é fundamental na estratégia neoliberal. A psicanálise explica as ocultações em torno da produção do mundo comum.
Quando se produzem fraturas nestas relações, quando o mundo é “pesado demais” para os indivíduos, a “loucura” toma conta. É o caso de Rodrigo Proensa, artista plástico que conheci e que pertenceu a uma jovem geração de artistas plásticos talentosos e promissores da arte contemporânea brasileira. Nascido em São Gabriel, sofreu influência do artista plástico José Roberto Aguilar e do cineasta João Batista de Andrade. Fez vídeos, participou de peças de teatro, performances, happenings e assistiu aulas de filosofia no ECA e na USP.
Conheci Proensa quando ele participou de um curso que ministrei sobre a obra de Jean Baudrillard no Museu de Arte do Rio Grande do Sul. Após, junto com Gabriela Simões, inscreveu-se e foi selecionado para a ocupação do Teatro Glênio Peres da Câmara Municipal de Porto Alegre. Sempre com um notebook debaixo do braço, falando sem parar, tinha o hábito de mostrar a todos sua coleção de pinturas digitais e filmetes que representavam uma arte contemporânea e de vanguarda. Proensa era o artista a procura de seu espaço em um mundo onde sobreviver da arte ainda é um mistério.
Ato Terminal
As coisas não saíram muito bem para Proensa. Na Câmara Municipal, a performance teve altos e baixos e não foi compreendida pelo público. Intitulada “Ato Terminal” passava por declamações de poemas, encenações, justapondo imagens e sons, – as vezes palavrões, para o horror da audiência! – e que constituíam seu questionamento sobre a existência. Cenas fragmentadas de um universo psíquico em corrosão, ao final, o que Proensa questionava era o que é a própria vida, desde que para isso, tivesse que tocar no mais fatal dos temas, a morte. A voz tornava-se acelerada, as ideias, desorganizadas. Não é exatamente isso que faz o neoliberalismo com o trabalho, com o mundo, com as instituções? O experimentalismo na sua arte poderia ser comum na obra de Aguilar que conheceu em São Paulo, mas mostrou-se algo incompreensível para o público que o assistiu no Legislativo, que pediu para interrompeu as duas apresentações e serviu como modo de expressão de uma consciência que aos poucos, distanciava-se do mundo. A linguagem experimental era experimental demais. Um espaço que queria abrir-se para autores e para o público enfrentava sua primeira contradição, a de que nem sempre um autor encontra seu público, principalmente, quando um autor está perdendo a sí mesmo. O confronto do autor com o mundo refletia-se na sua arte.
Para a psicanálise, tudo é produto de uma identidade que não consegue o espaço para se expressar. Para Lacan, o preço que Proensa pagou para expressar suas contradições foi perder-se. Mas Proensa contudo não via isto como violência, aceitava sugestões e queria experimentar. Chamou-me a atenção seu conhecimento de filosofia moderna e contemporânea, especialmente Nietzsche e Deleuze, mesmo quando era articulada aos borbotões e de maneira a-lógica. Também ele lia profundamente Renato Mezan, autor de “Freud, Pensador da Cultura” e Edgar Morin. Ele se reivindicava um autodidata, e suas pinturas digitais eram repletas de significados simbólicos, assim como os pequenos filmes que acompanhavam sua produção, com música de Boulez e Schoenberg. Um processo de dissolução com trilha sonora.
Ele mesmo sentia, como Aguilar, suas relações pessoais como relações místicas. Primeiro com Gabriela Simões “o grande amor cósmico de minha vida”. Sua pintura com coloridos intensos, com vermelhos e amarelos, a maneira de Aguilar, parecia encarnar um sentimento de amor e questionamento superior da existência. Seus trabalhos desaparecerem do blog que criou (www.vaziocosmico.blogspot.com) e as duas únicas imagem estão datadas de 2014 em https://www.facebook.com/rodrigo.proensa.3.
Nas imagens que haviam disponíveis de seu trabalho poderiam se identificar duas fases. A primeira, de pinturas digitais líricas, onde os tons azuis e monocromáticos predominam. Não há figuras, apenas borrões e traços, talvez a representação mais fiel de seu próprio interior. Poderia se falar numa “fase azul” ou “fase cinza”, cada qual correspondendo a cor que predomina em suas obras. A segunda, de pinturas digitais de cores fortes e grossas e marcantes, sua fase mais recente – e também mais existencial – pois revela uma pintura visceral. Não havia como deixar de perceber a emergência emocional do artista em convulsão em estado puro. A mesma que pode-se ver em seu blog, mas com algumas diferenças. Registros encontram-se somente no Dicionário de Artistas Gaúchos, disponivel on-line, onde é citado.
Quando ainda estava no ar, o blog juntava poesia e arte, outra experimentação. É uma pena que tenha por alguma razão deletado todas suas obras, mas alí via-se uma profunda anarquia, um profundo desejo de dizer as coisas, de expor sentimentos, sem coordenação. Texto sem correção, é aquilo que Deleuze e Guattari denominaram em “Anti-Edipo” de “fluxos”. Fluxos de consciência em estado puro, sentidos a flor da pele, é a própria emergência do inconsciente do artista que emerge diretamente em sua consciência. Algo relacionado com os impressionistas que admira, como Van Gogh, e também com o espírito da Arte Gutai. Mas ainda há mais.
Aquilo que caracteriza a modernidade da arte de Proensa é sua inquietude transbordante. Seus vermelhos intensos são de uma arte sem comparação – Nolde preferia o amarelo. Seu valor plástico é o de uma comunicação direta pela cor, pela intensidade, pelo traço. Claro que sua alma estava em convulsão, ainda mais pelas leituras que fazia e é assustador o caos de que se fazia portador. Pois não é apenas a arte que se dissolve em cor, em Proensa, ela parecia estar dissolvendo a própria subjetividade do artista.
http://www.artistasgauchos.com.br/portal/?id=490
Foi neste ponto que, junto com a Assistência Social da Câmara Municipal de Porto Alegre, procuramos orientar o artista, encaminha-lo para entidades de apoio. Pois o artista de que falamos transformou-se num morador de rua, sem teto, abandonado pela namorada e que passou dias morando sob o Buda da Redenção. O notebook foi roubado, com todos os arquivos de sua arte digital. Já faz mais de cinco anos que ocorreram estes fatos e a última vez que o vi estava com uma aparência péssima, com surtos e falando sem parar. Sua ânsia de comunicação se refletia muitas vezes na forma caótica de expor seu pensamento, sua arte, suas ideias. Sabia que não isto não era bom. Proensa estava naquele momento sob o tênue fio que separa a saúde da loucura, a integridade psíquica da desagregação. O mundo enlouqueceu o artista, encarnação física de um sofrimento psiquico.
A ideia de demoníaco, no sentido dos gregos antigos, o de ser tomado por forças sobre –humanas, impregnava os últimos dias em que tivemos contato. A ele foi recomendado que primeiro procurasse cuidar da vida, e para isto, foi duas vezes encaminhado para abrigos, que rejeitou. Fugiu e o perdi de vista. Na internet ações judiciais o dão como desaparecido. Como se sabe, nestas situações, é preciso querer ser ajudado. A última coisa que pediu foi algum auxílio para ir para São Paulo visitar Aguilar, seu mestre. Foi quando nos separamos e desde então não vi mais Proensa, exceto um único dia, ainda em Porto Alegre, à distância, pedindo qualquer coisa numa sinaleira da capital para depois desaparecer no horizonte. Um artista que teria um grande futuro pela frente caiu nas ruas na tentativa de domar o demônio interior o que fez com que as pessoas que admiraram sua obra se afastassem dele, resultado de um mundo onde a inspiração vale menos que o capital, em que a luta pela sobrevivência produz vitimas, destrói subjetividades, limita desejos. Onde andará Rodrigo Proensa?



