Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Ana Cláudia Mendes de Figueiredo. Capacidade Jurídica das Pessoas com Deficiência: a Compreensão da Magistratura do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios Após a Lei nº 13.146/2015. Dissertação apresentada, defendida e aprovada no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania-PPGDH da Universidade de Brasília, 2024, 350fls.
Conforme já posto em relevo, a dissertação, que já poderia ser uma tese, dada a relevância de seu objeto, a originalidade e o ineditismo da abordagem, a densidade teórico-metodológica, revisão bibliográfica e análise bem fundamentada, foi apresentada, defendida e aprovada, com recomendação de publicação e de desdobramento em novos ensaios ou artigos.
Qualificou essa aprovação a Banca Examinadora formada pelas professores e professores, eu entre estes, na qualidade de membro interno integrante do PPGDH, Sinara Pollom Zardo – Presidente (Orientadora), da Universidade de Brasília (UnB); Joyceane Bezerra de Menezes – Examinadora externa, da Universidade de Fortaleza (Unifor) e Wederson Rufino dos Santos – Examinador Suplente, da Faculdade de Ciências da Saúde de Unaí (Facisa).
Um pormenor dos agradecimentos, sua parte final, dedicados aos que “partilham comigo o sonho de transformação da sociedade e de construção de uma sociedade mais inclusiva, em que pessoas com deficiência sejam percebidas em suas diferenças e consideradas em suas singularidades, como parte de um caleidoscópio universal, em que cada um/uma se vê refletida(o) no Outro(a), compondo todos e todas uma bela combinação de formas, cores, imagens e movimentos, que podemos denominar de humanidade”.
Anotação carregada de significado indicando a combinação de aprumo acadêmico para a elaboração da dissertação, sem perder a condição de ativista da inclusão. A sessão teve a auto-descrição dos que usaram a palavra e tradução de Libras. Assim é Ana Claúdia. Co-organizadora e co-autora comigo e com um rol de participantes de uma obra coletiva arrolada na bibliografia – FIGUEIREDO, Ana Cláudia Mendes de. O reconhecimento dos direitos humanos das pessoas com deficiência: resultados provisórios de lutas do movimento social. In: FIGUEIREDO, Ana Cláudia Mendes de (org.) et al. O Direito Achado na Rua – Sujeitos coletivos: só a luta garante os direitos do povo! Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023. p. 313-329 – ela sustentou seu engajamento garantindo que a edição gráfica do livro – o único da Editora nesse aspecto – tivesse fonte amigável, sem serifa, para assegurar condições favoráveis de leitura em face de conforto e necessidades visuais. A Editora (Lumen Juris) acolheu a demanda, mesmo com aumento de suporte gráfico e respectivos custos aumentados, para se reconhecer conforme à conquista de direitos segundo lutas sociais com essa reivindicação.
Sobre esse livro, a propósito, publiquei aqui neste espaço da Coluna Lido para Você (https://estadodedireito.com.br/sujeitos-coletivos-so-a-luta-garante-os-direitos-do-povo/) e na recensão fiz o registro dessa participação de Ana Cláudia na obra: “autora e co-organizadora do livro O Direito Achado na Rua. Sujeitos Coletivos: Só a Luta Garante os Direitos do Povo!, volume 7, Coleção Direito Vivo. Ana Cláudia Mendes de Figueiredo, Andréa Brasil Teixeira Martins, Edilane Neves, José Geraldo de Sousa Junior, José Roberto Nogueira de Sousa Carvalho, Luana Nery Moraes, Shyrley Tatiana Peña Aymara, Vítor Boaventura Xavier (Organizadores). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023”.
Além disso, tal como comentei, acabei revisitando a obra, por ocasião da participação na banca de qualificação de dissertação de mestrado, no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, da UnB, no qual a dissertação de Ana passou pelo crivo da qualificação.
Antes de prosseguir vou ao resumo da Dissertação para expor do que trata o trabalho:
O objetivo geral da pesquisa foi o de investigar, à luz da Teoria Crítica dos Direitos Humanos, a compreensão dos magistrados do TJDFT sobre as mudanças legislativas que, em face do artigo 12 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, desencadearam uma desconstrução parcial do tradicional regime das incapacidades no Brasil, passando a assegurar às pessoas com deficiência, como regra, o direito ao exercício da sua capacidade jurídica, em igualdade de condições com as demais pessoas. A metodologia, quanto à natureza, é aplicada; quanto aos procedimentos, é documental; quanto à abordagem, é qualitativa; e, quanto aos objetivos, é descritiva e prescritiva. A leitura das sentenças de interdição do aludido Tribunal, orientada pela perspectiva teórica da Análise Crítica do Discurso, de Norman Fairclough, contribuiu para a identificação do modo dominante de construir sentidos na rede de práticas do TJDFT e também para o mapeamento de alternativas à superação dos obstáculos ao reconhecimento do novo paradigma da deficiência e da capacidade jurídica. Os resultados do estudo confirmaram a hipótese de que o tema alusivo à capacidade jurídica, em relação a pessoas com deficiência intelectual e mental/psicossocial, segue sendo interpretado à luz de institutos, concepções e conceitos superados pelo modelo social da deficiência e pelos direitos humanos e princípios consagrados na Convenção. Tal constatação evidenciou, por conseguinte, que a maioria da magistratura em foco não tem observado os artigos 6º; 84, caput e §§ 2º e 3º; e 85, caput e §§ 1º e 2º, da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI) e 3º, 4º, III, e 1.767, I, do Código Civil (considerada a redação que a LBI conferiu a esses dispositivos), e desconsiderado, consequentemente, também os artigos 3, 5 e 12 da Convenção. A conclusão é no sentido da imprescindibilidade de uma transformação – social, legislativa e institucional – radical no que tange à temática. Enquanto pessoas com deficiência não forem consideradas como parte da diversidade humana, como pessoas iguais em dignidade e direitos e como detentoras do direito de exercer sua autonomia e de desenvolver suas potencialidades humanas de forma plena, com os apoios eventualmente necessários, as desigualdades sociais seguirão sendo parte da realidade brasileira e as injustiças, parte do cotidiano dessa população.
O texto de Ana Cláudia no livro sobre os sujeitos coletivos de direito indica que sua reflexão sobre essa categoria acabou por armar a sua capacidade teórica para tratar o tem por ela desenvolvido na Dissertação. E sua abordagem revela que com cerca de três décadas desde a formulação do conceito, tal como indicado nessas leituras da obra em questão que a categoria serve como uma espécie de compêndio que promove balanços, inovações e direcionamentos acerca da fortuna crítica dessa categoria e de seu alcance nos âmbitos da teoria e da práxis.
É o que constato no trabalho de Ana Cláudia. A identidade política dos movimentos sociais e a possibilidade de que eles venham a se investir de uma titularidade jurídica coletiva, ou seja, de atuarem como um sujeito coletivo de direito, são questões caras para a política e para o ensino jurídico. Assim, as reflexões com o pano de fundo teórico do Humanismo Dialético e d’O Direito Achado na Rua são, por sua vez, uma referência para a leitura crítica da realidade.
Pois bem, no ensaio O Reconhecimento dos Direitos Humanos das Pessoas com Deficiência: Resultados Provisórios de Lutas do Movimento Social, assim como na Dissertação, Ana Cláudia Mendes de Figueiredo aborda a trajetória das lutas do movimento social e político das pessoas com deficiência pelo reconhecimento jurídico dos direitos humanos desses sujeitos de direito, bem como alguns resultados provisórios de tais lutas. À luz da teoria crítica dos direitos humanos, analisa os processos para tal reconhecimento e o cenário de não efetivação ainda dos direitos daquela população, reveladores da imprescindibilidade de criação de condições que viabilizem a esses sujeitos o acesso igualitário aos bens necessários a uma vida digna.
A arranque dessa ordem de considerações, na dissertação, ela é bastante firme no estabelecimento dos pressupostos que orientam o seu trabalho. O objetivo geral da sua pesquisa é o de investigar como os magistrados do TJDFT têm interpretado normas legais que, por força da CDPD (Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência), desconstruíram o tradicional regime das incapacidades, passando a assegurar a todas as pessoas com deficiência o direito ao exercício da sua capacidade jurídica, em igualdade de condições com as demais pessoas. O trabalho, que há pouco passou pelo procedimento de qualificação (precedente ao momento definitivo de ser apresentado a defesa), tem como título, nessa etapa: “Capacidade Jurídica das Pessoas com Deficiência: a Compreensão da Magistratura do Tribunal de Justiça do Distrito Federal após a Lei nº 13.146/2015”.
A hipótese de pesquisa é a de que, não obstante o artigo 12 da CDPD tenha reconhecido o direito das pessoas com deficiência ao exercício da sua capacidade jurídica, em igualdade de condições com as demais pessoas, e a LBI tenha promovido em nosso ordenamento, em homenagem à citada norma constitucional, alterações importantes acerca do tema, o aludido direito segue sendo interpretado à luz de teorias, institutos, concepções e conceitos superados pelo novo paradigma da capacidade jurídica e pelos princípios de direitos humanos consagrados nas citadas normas constitucional e legal, especialmente quando se trata de pessoas com deficiência intelectual e psicossocial.
Para a Autora, “constituindo o exercício da capacidade jurídica um direito humano – que se insere na esfera existencial de todas as pessoas – e havendo, de outro lado, a possibilidade de que o referido direito venha sendo ignorado, é de extrema relevância e necessidade a investigação pretendida, a qual propiciará a geração de informações empiricamente sustentadas. Contudo, na banca, ao discutir a questão da incapacidade necessária a esses pressupostos, verifiquei que a disponibilidade conceitual e política para afrontar esses pressupostos, ainda se faz muito carente de possibilidades emancipatórias que livrem os sujeitos de um sistema de contenção para exercitar liberdades e autonomias legítimas”.
A pesquisa foi estruturada em cinco capítulos, além da introdução, considerações finais e referências. Nas palavras da Autora:
No capítulo 1 discorro sobre a Teoria Crítica dos Direitos Humanos, aparato teórico que serviu de alicerce para a pesquisa, e os primeiros passos em direção à incorporação, no âmbito das Nações Unidas, das questões relacionadas à deficiência como questões de direitos humanos. A escolha dessa teoria foi orientada pela crença de que essa poderá contribuir para a efetivação do direito das pessoas com deficiência à igual capacidade, a partir de uma visão crítica sobre a práxis judicante e a proposição, a depender dos achados empíricos, de estratégias concretas para a emancipação dessas pessoas (Wolkmer, 2019).
No capítulo 2 traço uma relação entre a evolução histórica da compreensão das sociedades sobre a deficiência e os modelos de deficiência que caracterizam cada uma das etapas dessa trajetória, bem como reporto-me à evolução do tratamento conferido à pessoa com deficiência nos instrumentos internacionais anteriores à Convenção.
O capítulo 3 é dedicado a uma análise circunstanciada do principal documento de defesa dos direitos da pessoa com deficiência atualmente, a CDPD, tanto sob um enfoque histórico da luta mundial dos movimentos sociais de pessoas com deficiência, que culminou na elaboração e assinatura desse documento, quanto sob um ponto de vista normativo, abarcante dos principais aspectos a seu respeito e das principais implicações da adoção da Convenção pelo sistema das Nações Unidas, para os Estados partes, e também as implicações da incorporação da Convenção como emenda constitucional, para o Brasil. Seguindo na análise da CDPD, abordo o conceito político de deficiência adotado por esse documento internacional e a avaliação da deficiência.
Após situar o leitor no cenário teórico e político em que a presente dissertação se insere, explicito, no capítulo 4, as questões relacionadas ao direito humano das pessoas com deficiência ao reconhecimento de sua capacidade jurídica, em igualdade de condições com as demais pessoas, e as transformações paradigmáticas havidas em relação à temática a partir da Convenção. Apresento, entre as referidas transformações, aquelas desencadeadas no ordenamento jurídico brasileiro, pela LBI, que ratificou o direito ao reconhecimento à igual capacidade, alterou os artigos 3º, 4º e 1.767 do Código Civil (CC), entre outros, e introduziu no ordenamento jurídico a Tomada de Decisão Apoiada.
Na abordagem do tema são adotados como marcos normativos, além da Convenção, em especial os seus artigos 3, 5 e 12, e da LBI, também o Comentário Geral nº 1 do Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU), que lança luz sobre o teor do referido artigo 12.
Estabelecido o referencial teórico, são analisados, no capítulo 5, os resultados da pesquisa jurisprudencial, à luz da Teoria Crítica dos Direitos Humanos e da CDPD e a partir de uma perspectiva descritiva e da perspectiva teórica da Análise Crítica do Discurso (ACD). É articulado, outrossim, um diálogo entre as principais ideias apresentadas no arcabouço teórico do estudo e os resultados da investigação, bem como são apresentadas alternativas concretas para a solução do problema de pesquisa.
Nas considerações finais são retomadas as principais ideias mobilizadas no arcabouço teórico do estudo e são também sumarizados os achados respectivos, com vistas à demonstração da confirmação da hipótese de pesquisa e do alcance dos objetivos geral e específicos definidos inicialmente.
Volto mais uma vez aos agradecimentos para recuperar o que ela me faz, como oportunidade para identificar uma referência relevante adotada em seu quadro teórico: “Agradeço ao Professor José Geraldo de Souza Júnior, pelo incentivo exteriorizado por ocasião da banca de qualificação do projeto de pesquisa, mediante não apenas palavras de encorajamento para um avançar na investigação, mas também mediante o empréstimo do exemplar físico da tese “Incapacidades: proteção ou repressão? Fundamentos das Incapacidades no Direito Positivo: Em busca de uma reconceituação” (1988), do jusfilósofo Roberto A. R. de Aguiar”.
A relevância está exatamente na constatação de que, a tese única de Aguiar, permitiu abrir esse campo de possibilidades: Incapacidades: Proteção ou Repressão? Fundamentos das Incapacidades no Direito Positivo: em Busca de uma Reconceituação.
Com efeito, a tese de Roberto Aguiar, tal como ele propõe, teve (tem) por objetivo discutir a validade dos modelos explicativos das denominadas incapacidades previstas no ordenamento jurídico, em específico, o brasileiro. Ela (a tese) se vale de subsídios trazidos pelo marxismo, pelo pensamento de Michel Foucault – um autor sempre em diálogo co Aguiar -, pelos juristas que procuram uma renovação epistemológica e pelas contribuições das ciências sociais. Assim, foi desenvolvida uma análise crítica do modelo que subjaz à doutrina sobre as incapacidades, destacando as justificativas ideológicas da vontade livre, do mundo harmônico e do individualismo, como sustentadoras desse entendimento do jurídico. O resultado dessa análise levou a reconceituação de incapacidades, que foram chamadas de incapacitações, já que imersas em contexto mais amplo, atingindo também as pessoas jurídicas, não tendo caráter protetivo dos incapazes, uma vez que apresentam evidente marca repressiva, configurando-se por isso, como uma das formas do exercício dos poderes.
Seguindo ainda o que o próprio autor da tese designa, foram levantadas outras formas de incapacitação que constam em outras regiões do ordenamento e que aparecem nas práticas sociais, sejam confirmando o direito, seja negando, mas sempre a serviço de interesses que não são os dos incapacitados. Para um aprofundamento da questão foram (são) levantas questões sobre cada um dos atingidos pelas incapacitações. Mas a questão de fundo, que está ligada aos problemas tratados na tese, refere-se aos países periféricos, que têm uma tradição histórica de autoritarismo e vivem relações oriundas de um capitalismo tardio, o que vem a exacerbar as desigualdades, aumentar o arbítrio e distanciar as classes sociais, em evidente colisão com os objetivos propostos em abstrato pelo ordenamento.
Marcada pelo pensamento europeu – ele continua – nossa doutrina dominante não tem condições de perceber a natureza fragmentária e perigosamente destrutiva de nosso ordenamento, que tem baixa credibilidade até mesmo nos setores que são por ele beneficiados.
Nas conclusões, Ana Cláudia Mendes de Figueiredo
A implementação das aludidas alternativas, em uma perspectiva interseccional – capaz de capturar a coincidência dos variados marcadores sociais das diferenças inerentes à existência humana, como gênero, classe social, raça, idade e deficiência –, concretizará as disposições, nacionais e internacionais, que regem o tema e, em última análise, propiciará o exercício pleno, pelas pessoas com deficiência, da sua cidadania e de vários dos seus direitos humanos e liberdades fundamentais, efetivando a mudança radical que a temática exige.
A mudança das práticas sociais, por sua vez, contribuirá para que a ideologia, dado o seu papel dúplice, deixe de produzir e reproduzir relações de poder e dominação, para gerar transformação social, traduzindo representações que concorrem para relações conducentes à emancipação, inclusão e participação social das pessoas com deficiência e que são aptas a desencadear a virada na hegemonia do modo de construir sentidos no campo em tela.
Na última etapa da ACD, de reflexões sobre a análise realizada, concluí que essa, ao lado da análise descritiva, tornou possível a compreensão do fenômeno social; a ampliação do conhecimento sobre o tema investigado; e o aprofundamento da reflexão sobre a importância da coadjuvação, nas situações de injustiças e desigualdades, entre a atuação de acadêmicos e a atuação de ativistas em prol da inclusão das pessoas com deficiência.
Os resultados apresentados por meio da análise descritiva dos dados e da ACD, propiciaram, ademais, a confirmação da hipótese de que, embora o artigo 12 da CDPD tenha reconhecido o direito das pessoas com deficiência ao exercício da sua capacidade jurídica, em igualdade de condições com as demais pessoas, e a LBI tenha reiterado, em parte, tal direito, as questões levadas a juízo sobre essa temática continuam sendo decididas, em se tratando de pessoas com deficiência intelectual e, em alguns casos, psicossocial, à luz de institutos, concepções e conceitos superados e à margem daqueles diplomas constitucional e legal.
Confirmada a aludida hipótese, a partir da análise das sentenças do TJDFT e, notadamente dos seus fundamentos, tem-se como alcançado o objetivo geral desta pesquisa, de investigar, à luz da Teoria Crítica dos Direitos Humanos, como os magistrados desse Tribunal têm interpretado normas legais que, por força do artigo 12 da CDPD, desconstruíram em parte o tradicional regime das incapacidades, passando a assegurar às pessoas com deficiência, como regra, o direito ao exercício da sua capacidade jurídica, em igualdade de condições com as demais pessoas.
Importante o registro de que, para a consecução do citado objetivo geral, foram traçados cinco objetivos específicos, igualmente atingidos, quais sejam de i) explicitar o conceito e o fundamento de direitos humanos, à luz da TCDH, e abordar a trajetória da incorporação da questão da deficiência no sistema de proteção aos direitos humanos das Nações Unidas; ii) discorrer sobre o modelo social da deficiência e sobre os princípios e o conceito de deficiência estatuídos na Convenção, como premissas da investigação; iii) explicitar as alterações impostas pela LBI à disciplina da capacidade jurídica, em homenagem ao novo paradigma da capacidade legal introduzido pela CDPD; iv) proceder ao levantamento e à análise qualitativa – sob a perspectiva da ACD – da última sentença, proferida entre 2019 e 2022, de cada uma das Varas que julgam processos de interdição, de todas as 17 circunscrições judiciárias do TJDFT, a fim de identificar se os artigos 6º; 84, caput e §§ 1º , 2º e 3º; e 85, caput e §§ 1º e 2º, da LBI e 3º, 4º e 1.767 do Código Civil têm sido observados ou não pelos juízes desse Tribunal; e v) articular os achados da pesquisa jurisprudencial com a Teoria Crítica dos Direitos Humanos.
A transformação social radical que a temática exige não será passível de ser concretizada se não forem implementadas, individual e coletivamente, transformações no modo de conceber os direitos humanos e os seus fundamentos, o que ampliará a potência de cada um e cada uma atuar no mundo, assim como transformações no modo de conceber a deficiência, o que expandirá nossa humanidade.
Enquanto pessoas com deficiência não forem consideradas como pessoas iguais em dignidade, cidadania e protagonismo, como parte da diversidade humana e como detentoras do direito de exercer sua autonomia e de desenvolver suas potencialidades humanas de forma plena, com os apoios eventualmente necessários, as desigualdades sociais seguirão sendo parte da realidade brasileira e as injustiças, parte do cotidiano dessa população.
A ressignificação da concepção da deficiência pressupõe, além da compreensão dos direitos humanos sob uma perspectiva crítica, a consciência da realidade desigual em que vivemos, do lugar que ocupamos no mundo e das responsabilidades que temos em relação à inclusão das pessoas nessa condição, notadamente em relação à derrubada das barreiras atitudinais, físicas e comunicacionais, que impedem sua inclusão plena na sociedade. A citada ressignificação requer, ainda, comprometimento ético e empatia por parte de todos e todas e de cada um/uma.
Metanoia no sentido amplo que proponho, impelida principalmente pelo “princípio da esperança”, pode até ser imagética, mas não deixa de ser uma semente que, no difícil, mas não impossível encontro de utopias, pode encontrar um terreno fértil para florescer.
Essa disposição aponta para uma questão de concepção e de posicionamento. A de poder convocar uma hermenêutica de abertura da própria mentalidade dos aplicadores das normas, os juízes, que Ana estudou. Estarão eles aptos a abrir-se as porosidades intersistêmicas, ao menos para vencer tensões contraditórias entre juridicidades constituídas e instituintes; entre direitos humanos e direitos legais positivados? Para pensar a capacidade Jurídica das pessoas com deficiência, por exemplo?
A cultura jurídica, inscrita no positivismo legal limita muito essa possibilidade. Não por acaso, quando assumiu a presidência do Supremo Tribunal Federal, em seu discurso de posse, o Ministro Lewandovski declarou que sua principal meta como gestor do sistema de justiça seria a de formar os juízes brasileiros para essa abertura de compreensão de sua função mediada pelos direitos humanos, uma dupla carência, da matéria em si, ausente na formação da maioria, nos cursos de bacharelado em Direito e de formação já investidos da jurisdição; e o quase nulo conhecimento e portanto, de aplicação das decisões das cortes internacionais de direitos humanos. Imediatamente, em acordo com a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou a publicação do repositório dessas decisões em volumes temáticos constituindo uma rica coleção de julgados.
Em que pese alguma descrença, o antigo presidente da CIDH, por duas vezes, Antonio Augusto Cançado Trindade, que foi professor na UnB, afirmava que o principal obstáculo para a internalização desses enunciados nos sistemas nacionais de direito residia exatamente no positivismo jurídico, que inviabilizava os achados de reconhecimento, tal como afirma Roberto Aguiar.
Por isso que sugeri a Ana Claúdia prosseguir com o tema, para além das proposições que formula nas suas diferentes ordens, que buscasse, exatamente articular a operacionalidade jurídica e judicial com as manifestações da Corte Interamericana de Direitos Humanos em face da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), no que guardam nítida interconexão.
Na chave capacidade jurídica, alguns pontos se põem em evidência: 1. Autonomia: Direito de tomar decisões sobre sua própria vida; 2. Capacidade legal: Reconhecimento igualitário perante a lei; 3. Direitos civis: Acesso a contratos, propriedade, casamento, etc.;4. Proteção contra discriminação: Garantia de igualdade. A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) reconhece a capacidade jurídica igualitária (artigo 12); afirma o direito à vida independente de inclusão na comunidade (artigo 19) e salvaguarda o direito ao casamento e à família das pessoas com incapacidade (artigo 23).
Há um amplo campo de precedentes paradigmáticos no elenco da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos:
- Caso “Ximenes Lopes vs. Brasil” (2006): Reconheceu o direito à liberdade e à autonomia das pessoas com deficiência.
- Caso “González Carreño vs. Peru” (2012): Estabeleceu a proibição de discriminação contra pessoas com deficiência.
- Caso “Miguel Ignacio Fredes González vs. Chile” (2019): Reconheceu o direito à educação inclusiva.
São elementos cogentes que afetam o campo dos desafios e diretrizes para a realização desses fundamentos: 1. Implementação da CDPD: Estados-membros devem adaptar legislações nacionais; 2. Acesso à justiça: Garantir assistência jurídica adequada; 3. Educação inclusiva: Promover igualdade de oportunidades; 4. Participação política: Incluir pessoas com deficiência em processos decisórios.
Nos seus fundamentos e nas conclusões o trabalho de Ana Cláudia Mendes de Figueiredo significado ao duplo aspecto que ela apresenta, o primeiro como discernimento teórico para pensar criticamente a questão posta como problema a explicar; o segundo, político, num movimento de intervenção, voltado para o elenco de proposições que completa o seu trabalho.
As proposições da Autora respondem ao que, em conclusão, diz Roberto Aguiar, resumindo sua proposta, o problemas das incapacidades, na sua tese, foi (é) tratado partindo desses pressupostos, além (grifo) de levar em conta a existência de uma pluralidade de ordenamentos, o que significa a presença constante – grifo de novo – de uma tensão contraditória permanente entre os direitos cristalizados e os emergentes das lutas dos destinatários desfavorecidos.
Foto Valter Campanato | José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil, Professor Titular, da Universidade de Brasília, Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.55 |