Rafael da Silva Marques, Juiz do Trabalho
Albert Camus, escritor argelino e parceiro intelectual de Sartre (embora com ele tenha rompido), escreveu sobre o homem revoltado, sobre o estrangeiro que cada um leva em si. Contou, igualmente, o que é viver em meio a pandemia. E neste livro, chamado A Peste, a certa altura ele diz: “mas chega sempre uma hora na história em que aquele que ousa dizer que dois e dois são quatro é punido com a morte”.
Pois bem partindo daí dá para vem bem, após a decisão liminar junto a ADI 6363, que dizer o óbvio passou a ser motivo para matar. É que a Constituição brasileira de 1988, no artigo 7º, VI e XIII, preceitua necessidade de acerto coletivo em se tratando de redução de salário e jornada de trabalho. Aliás as normas infraconstitucionais também dizem isso. Poderia uma medida provisória versar algo diverso? A resposta é simples, pois que a Constituição diz como devem ocorrer as reduções de jornada e salário e é ela o fundamento de validade de toda e qualquer norma legal.
O problema é que não foi simples assim que o Supremo Tribunal Federal decidiu. Na verdade o obvio da Constituição foi o que a matou. Ela diz o simples, o claro, o evidente, o obvio e o ministro relator Ricardo Lewandowski apenas repetiu, ajustando a medida provisória à Constituição. Ainda assim o que ela ousou dizer a matou, bem como previu Camus.
Pode parecer banal, sem importância mas matar a Constituição é colocar a população em risco. É colocar os mais débeis em perigo. É desolidarizar ou dizer que não há valor social do trabalho ou da livre iniciativa. Que não há pluralismo ou dignidade humana. Matar a Constituição é isso. É matar igualmente o direito de propriedade. Ou seja, não há mais direito de propriedade e, sem ele, o de proteção à propriedade (abastados pelem-se de medo!). Tudo isso porque a Constituição está morta. O que fica é o direito natural à sobrevivência. A maioria, aviso, é despossuída… e detém uma coisa que as armas não possuem: o poder de alterar a natureza e gerar riqueza!
Liquidar a Constituição é tão fácil. E o STF na ADI 6363 mostrou isso e ignorou o quanto foi duro montá-la. Uma Constituição sócio ambiental e que prima pela democracia e inclusão do outro. Poderão dizer mas a situação é especial. E até pode ser que efetivamente o seja, mas ainda assim o ministro relator encontrou uma saída especial, inaceitável, entretanto, ao que parece, em momentos não diferentes.
Como mostrou Camus no livro A Peste dizer o obvio, o comum, o consagrado pela linguagem fruto da democracia do discurso, pode vir a ser mortal. E, no Brasil, a vítima foi a Constituição. O que virá daqui para frente, sem que haja segurança quanto à análise séria da Constituição federal não se sabe. O certo é que corremos risco, muito risco.
A esperança, contudo, pode estar no que consta nas duas últimas linhas do quarto parágrafo deste texto.
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*Rafael da Silva Marques é Juiz do Trabalho e Membro da AJD – Associação Juízes para a democracia. |