Em março deste ano completamos 200 anos de constitucionalismo brasileiro. O que significa dizer que há dois séculos nos organizamos por um documento jurídico-político, que limita o poder político e organiza a sociedade a partir de um “núcleo duro”: garantia de direitos fundamentais, organização do Estado e tripartição de poderes.
Diante disso, quero relembrar o entorno da Constituição de 1824, que data esse início do nosso constitucionalismo e que, assim como grandes eventos da história, não acontecem repentinamente ou como uma página descolada da realidade vivida. Destaca-se, portanto, o breve contorno histórico a fim de evidenciar o entorno social inquieto e as ideias políticas centrais que nutriram sua outorga.
Primeiro ponto importante a se assinalar é que o período colonial foi permeado de intensos movimentos libertadores, antiabsolutistas e até republicanos. Dessa forma, cita-se a Inconfidência Mineira (1789), a repressão do Rio de Janeiro (1794), na Revolução dos Alfaiates da Bahia (1798), a Revolução Pernambucana (1817). Ainda, depois da outorga da Constituição brasileira de 1924, eclodiu a Confederação do Equador (1824), a Cabanagem (1833-1839), a Revolução Farroupulha (1835-1845), a Sabinada (1837), a Balaiada (1838-1841), a Revolução Praiera (1848-1849), dentre outros importantes movimentos.
A propósito, ressalta-se que há quase um mito desenvolvido na história recente do Brasil de que o brasileiro é um cidadão muito pacato, que não vai atrás de seus direitos e que muito pouco reivindica. A história do Brasil não corrobora com tal narrativa. Talvez se possa apontar, inclusive, os séculos XVIII e XIX o período da história brasileira de maiores revoltas e investidas revolucionárias a que o país assistiu, em que verificou-se um forte espírito libertador e reinvidicatório, a partir de um elemento nacional, embora não homogêneo.
Outro destaque importante, a ter reflexos intensos no Brasil, é Revolução do Porto, em Portugal, em 1820. O referido movimento queria a promulgação de uma Constituição e a volta da Coroa à Portugal. Nesse período, recorda-se-se, Portugal encontrava-se sob regência dos britânicos. Foi a partir das intensas pressões desse movimento que D.João VI regressou à Portugual e deixou seu filho. D. Pedro I, na espreita dos acontecimentos que aqui aconteciam. Em setembro de 1821 o retorno de D. Pedro I, príncipe regente do Brasil, foi determinado via decreto, por pressão da elite portuguesa que, dentre outras razões, queriam evitar que o Rio de Janeiro voltasse a condição de sede do Império. No entanto, nesse período o movimento constitucionalista já estava forte e várias províncias já haviam se unido em torno do desejo de convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. De tal modo, como avançado estava o movimento, D. Pedro aderiu.
Então em 9 de janeiro de 1822, conhecido como o Dia do Fico, D. Pedro I comunica que não retornará a Portugal e ficará no Rio de Janeiro. E em 7 de setembro, com a intensificação do movimento constitucional, D. Pedro I proclama a independência do Brasil, já tendo, anteriormente, aderido ao movimento que propugnava uma Assembleia Nacional Constitituinte, convocando-a em junho, tendo sido instalada quase um ano depois. Registra-se que seu coroamento deu-se em 1o de dezembro do mesmo ano.
Dentre os gritos de independência ou morte, consagrados no discurso da independência, também houve a expressa adesão ao movimento constitucional, ao afirmar que “o Brasil e Eu devemos os bens, que gozamos, e esperamos gozar de uma Constituiçào liberal judiciosa”. [1]
Nesse sentido, em 3 de maio de 1823, instalou-se a primeira Assembleia Nacional Constituinte da história do Brasil, sob presidência do Bisco Capelião-Mor (D. José Caetano da Silva Coutinho). Na sessão de abertura, D. Pedro I deu uma prévia do que seria o constitucionalismo brasileiro, antecipando a ideia de um “liberalismo conservador” ou, podendo delimitá-lo, se possível, como um constitucionalismo absolutista, embora um contrasenso cabal. Assim, proferiu em discurso de abertura: Como imperador Constitucional, e mui principalmente como Defensor Perpétuo deste Império, Disse ao Povo no dia 1° de Dezembro do anno próximo passado, em que Fui Coroado, e Sagrado, Que com a Minha Espada Defenderia a Patria, a Nação, e a Constituição, se fosse digna do Brasil, e de mim. [2]
No mais, embora em outras partes de seu discurso fale em Constituição executável, com três poderes bem divididos, harmonizados, a colocar barreiras ao despotismo, quer real, quer aristocrático, quer democrático, mas que afungente a anarquia, se colocava em posição superior à Assembleia, ao ressoar ao final: “espero que a Constituição que façais mereça a minha Imperial aceitação”. [3]
À época, falava-se em dois conflitos correntes no Brasil desde a independência, um externo e um interno. O externo figurava na disputa de interesses entre brasileiros e portugueses, que inclusive em algumas províncias ainda se via constar a presença de tropas Portuguesas, como na Bahia. O conflito interno se via pelas distintas opiniões que semeavam na sociedade a fim de organizar o novo Estado brasileiro. Em meio a tantos interesses, opiniões e ideologias diferentes que pairavam nesse momento no Brasil é que surigiram os primeiros dissídios da Constituinte que levaria a sua dissolução. Em especial, a controvérsia maior centrava-se no poder do Imperador. [4]
Assim, a primeira controvérsia era sobre a relação do Imperador com a própria Constituição, se seus poderes se submetiam, em termos gerais, se estava ou não acima dela, podendo manejar os outros poderes e dar a última palavra. A segunda se referia a própria constituinte, se tinha o Imperador a prerrogativa do veto, podendo anular e mudar qualquer artigo da Constituição ou se não tinha tal prerrogativa, sendo essa a principal causa da dissolução da Constituinte.
No dia 11 de novembro de 1923 foi declarada sessão permanente na Assembleia Constituinte. Na madrugada, o prédio foi cercado pelo Exército e os deputados receberam o aviso de que a constituinte estava dissolvida. Na saída, 14 deputados foram presos, entre eles os irmãos Andrada e o Padre Belchior, que fora testemunha do grito do Ipiranga.
A dissolução da constituinte gerou desavenças entre a coroa e a opinião pública deixando margem a futuras revoltas como a Confederação do Equador, eclodida mais tarde, no ano de 1824, em Pernambuco. Ao dissolver a Constituinte, o Imperador prometeu uma constituição liberal e assim a fez – por meio de seu Conselho de Estado, composto por dez membros – quase que uma cópia do projeto da constituição elaborada na Constituinte dissolvida.
José Bonifácio foi um dos críticos a tal ato do Imperador ao dizer que dissolvendo à Assembléia, e deportando seus deputados, mostrou energia aparente; mas não é pela violência que se remediam males de opinião – foi um mau exemplo, que compromete o futuro. Esta dissolução fora de tempo foi obra do orgulho e da vaidade, de intrigas e ódios ridículos (…). [5]
Reformista e defensor de um modelo republicano ficou desolado com o ato de D. Pedro, o qual classificou como sendo mais que crime, um erro palmar, vez que escreve “(…) vi que a liberdade constitucional está a findar, e que o despotismo em breve tempo alçaria a cabeça, que até então trazia encapotada.”. [6]
No entanto, após a dissolução da Assembleia fora convocada, pelo próprio Imperador, uma outra e, em 25 de março de 1824 – após um mês de trabalho constituinte – a primeira Constituição brasileira foi outorgada por D. Pedro I. A partir da análise de Paulo Bonavides e Paes de Andrade, tudo terminou como D. Pedro I queria: uma Constituição outorgada; liberal em matéria de direito individuais, mas centralizadora e autoritária na soma dos poderes que concedia ao monarca constitucional. [7]
A Constituição foi uma grande tentativa de conciliação para a manutenção do sistema colonial praticamente intacto. A tentativa era de agradar aqueles que estavam insatisfeitos com o modelo colonial e seu declínio econômico. Para isso, o documento constitucional para ratificar a independência diante de Portugal e, ademais, a consagração de inúmeros direitos individuais, bem como a possibilidade, formal, de composição, por parte da sociedade, das casas legislativas (senado e câmara dos deputados),evidentemente, com inúmeras restrições, voltado apenas aos grandes proprietários de terra e detentores de altas rendas.
Ademais, por outro lado, a Constituição consagra o absolutismo pretendido por D. Pedro I, a partir de uma forte centralização de poder, em especial, pela previsão de um quarto poder, o chamado Poder Moderador, idealizado pelo pensador franco-suíço, Benjamin Constant, o qual é a chave de toda organização política (…) para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos (art. 98). Tal poder permitia ao Imperador nomear senadores, convocar Assembleia Geral extraordinária, prorrogar ou adiar a Assembleia, dissolver a Câmara dos Deputados, nomear e demitir livremente ministros, suspender magistrados, entre outros. Raymundo Faoro aponta, aqui, “o liberalismo com tática absolutista”. [8]
A Constituição foi escrita apartada do povo, que não participou de suas deliberações, até porque ficaram a cargo de um pequeno número de homens, escolhidos pelo próprio Imperador. O Brasil independente foi dado aos brasileiros que assistiram – não calados– à sua constituição. Tobias Barreto, em escritos datados de 1870, afirma que “o povo brasileiro não se constituiu, foi constituído” e ao mencionar o poder moderador como chave de toda organização do Estado, julgou como metáfora tosca e fútil, que se converteu em princípio regulador dos destinos do Brasil. [9]
No mais, o constitucionalismo brasileiro, nascido aqui, é representante do constitucionalismo liberal. No entanto, para que fosse liberal, a partir das ideias que eclodiam na Revolução do Porto, por influência das revoluções liberais que ocorriam na Europa, era necessário formar um núcleo de direitos e garantias individuais, a fim de que informasse a representação nacional que trazia. Registra-se, porém, que a ideia de liberalismo em Portugal, para a Coroa, nada mais era que a implementação das reformas tão pretendidas. O liberalismo em Portugal não trazia em si o ímpeto revolucionário como na França e, com algumas configurações ainda mais específicas, fora essa a doutrina “liberal reformista” que ousou chegar no Brasil, vez que Faoro define esse constitucionalismo brasileiro como “uma reforma absolutista, com caráter de liberalização”. [10]
[1] FIGUEIREDO, Carlos. 100 discursos históricos do Brasil. São Paulo: Editora Leitura, 2002.
[2] BRASIL. Diário da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Império do Brasil, 1823. Brasília: Senado Federal, 2003.
[3] BRASIL. Diário da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Império do Brasil, 1823. Brasília: Senado Federal, 2003.
[4] Discutia-se qual e de que forma seria o papel do imperador na nova organização política do país. Por um lado, os democratas, entre eles José Clemente, presidente do Senado e da Câmara, defendiam a legitimação do poder do Imperador pela constituição, a qual seria feita pelo povo e, sendo assim, não poderia mais invocar o poder divido. Por outro lado, os liberais, tendo José Bonifácio como grande atuante, defendia a autoridade do imperador, tradição que se sustentava por si própria, sendo superior a constituinte.
[5] SILVA, José Bonifácio Andrada e. Projetos para o Brasil. Organização Miriam Dolhnikoff. São Paulo: Companhia das Letras; Publifolha, 2000, p. 110.
[6] SILVA, José Bonifácio Andrada e. Projetos para o Brasil. Organização Miriam Dolhnikoff. São Paulo: Companhia das Letras; Publifolha, 2000, p. 114.
[7] BONAVIDES, Paulo; e ANDRADE, Paes. História Constitucional do Brasil. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 80.
[8] FAORO, Raymundo. Existe um Pensamento Político Brasileiro? In COMPARATO, Fábio Konder. (Org.) e prefácio. A República Inacabada. São Paulo, Globo, 2007, p. 107.
[9] BARRETO, Tobias. Obras Completas de Tobias Barreto: crítica política e social. Luiz Antônio Barreto. (Org.). Rio de Janeiro: J. E. Solomon; Sergipe: Editora Diário Oficial, 2012, p.74.
[10] FAORO, Raymundo. Existe um Pensamento Político Brasileiro? In COMPARATO, Fábio Konder. (Org.) e prefácio. A República Inacabada. São Paulo, Globo, 2007, p. 106.