A videogravação de audiência trabalhista sem redução a termo

No exercício da advocacia trabalhista, deparamo-nos com juízes de primeira instância descumprindo sua obrigação de transcrição dos depoimentos colhidos em audiências realizadas com gravação audiovisual. O que nos compeliu a arguir em sede de recurso ordinário a nulidade da sentença prolatada nessas condições, com a determinação, pelo tribunal ad quem, de retorno do processo ao juízo de origem, para a degravação dos depoimentos.  

No âmbito da Justiça do Trabalho, a videogravação das audiências somente é benfazeja se acompanhada do registro dos depoimentos em termo de audiência, como procedimentos amalgamados, concorrentes e não excludentes, condição para que o importante ato processual da audiência de instrução trabalhista esteja revestido de plena juridicidade.

O artigo 828, parágrafo único, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) (“Os depoimentos das testemunhas serão resumidos, por ocasião da audiência, pelo secretário da Junta ou funcionário para esse fim designado”) constitui garantia legal às partes de redução a termo das audiências.     

Também o artigo 851 da CLT é expresso ao prever que os tramites de instrução e julgamento da reclamação sejam resumidos em ata, sendo que o §1º do mesmo dispositivo legal estipula que será dispensável, a juízo do magistrado, o resumo dos depoimentos, somente nos processos de exclusiva alçada da primeira instância (o chamado rito sumário). 

Vale dizer: o processo do Trabalho possui normas legais próprias!

Nesse contexto, não se pode alegar que o artigo 460, §2º, do CPC autorizaria apenas a gravação, sem a transcrição dos depoimentos, uma vez que o artigo 769 da CLT prevê expressamente que a aplicação da norma processual comum somente é cabível em caso de omissão da norma trabalhista e de compatibilidade com o processo do trabalho.

Indubitavelmente, a gravação da audiência tem vantagens intrínsecas, como a de refletir toda a complexidade do depoimento, captando as expressões, as dúvidas, as certezas e outros aspectos importantes, e não apenas a impressão que o juiz instrutor teve do depoimento e, de forma subjetiva, transmitiu para o papel, sob a fiscalização, evidentemente, dos advogados presentes na audiência. E viabiliza ao Tribunal Regional do Trabalho (TRT), soberano na apreciação da matéria fática e probatória, como instância recursal, a apreensão visual e auditiva imediata dos depoimentos, conectar-se diretamente com os fatos ocorridos na audiência. A gravação audiovisual contribui ainda para a redução das desavenças entre advogados e magistrados em audiências, advindas, por exemplo, de negativas judiciais de registro em ata de requerimentos das partes ou de protestos antipreclusivos. Não é incomum magistrados abusarem do poder durante as audiências, em afronta ao Estado democrático de Direito. Basta rever as imagens, para saber o que efetivamente aconteceu.

Nesse sentido, às partes assiste o direito de gravar a audiência, em imagem e em áudio, “independentemente de autorização judicial”, prerrogativa positivada no artigo 367, parágrafo 6º, do Código de Processo Civil, à luz do princípio constitucional da publicidade dos atos processuais.

Contudo, não se pode prescindir da transcrição ou degravação dos depoimentos.

A gravação audiovisual desacompanhada da transcrição ou degravação dos depoimentos colhidos em audiência é altamente nefasta, uma imposição de desnecessários contratempos aos partícipes da relação jurídica processual trabalhista. Em especial, atribui aos advogados, magistrados e procuradores do Trabalho a obrigação de assistir à integralidade das gravações das audiências, as quais não raro duram horas, em todo e qualquer processo em que atuam. A imperiosidade da oitiva da gravação dos depoimentos pessoais e testemunhais para posterior reprodução em peças processuais atravanca sobremaneira tanto o exercício da advocacia como o da judicatura e procuradoria, em prejuízo do próprio caráter instrumental do processo, e o de sua eficiência.

No Direito Processual Trabalhista, o registro escrito dos atos processuais, especialmente dos ocorridos em audiência de instrução, facilita a atuação de todos aqueles que participam do processo. Em nada conflita com a gravação audiovisual, antes pelo contrário, torna-a como uma ferramenta adicional para a melhoria da eficiência do serviço público da prestação da tutela jurisdicional — sem a insegura, inconveniente e contraproducente subtração dos registros escritos dos depoimentos prestados em audiência.

Lembre-se que constava do artigo 8º, inciso III, do — suspenso — Ato CSJT.GP.SG Nº 45/2021 (que dispunha sobre os procedimentos a serem observados na videogravação de audiências realizadas no âmbito da Justiça do Trabalho”), a possibilidade de se “refazer o ato que apresentar problemas sonoros ou de imagens e que dificultem ou impeçam o acesso à prova colhida, inclusive designando nova audiência para refazimento das inquirições, antes de enviar os autos ao tribunal, caso necessário”. Trata-se do reconhecimento explícito da vulnerabilidade do sistema de gravação.

De fato, a proliferação de audiências de instrução por meio de videoconferência nesse período de isolamento social, medida mundialmente consagrada como a melhor no enfrentamento da pandemia do coronavírus, tem revelado problemas técnicos de toda ordem, a começar, pelas dificuldades de acesso à internet. O que recomenda, isso sim, o afastamento da própria possibilidade de “designação de uma nova audiência para refazimento das inquirições”, uma grave ameaça que permanecerá sempre latente no caso da inexistência de registro escrito dos depoimentos em termo de audiência, como uma espada de Dâmocles suspensa sobre a audiência trabalhista. Portanto, uma questão sobretudo de segurança jurídica.

A suma relevância que a audiência de instrução representa no processo do trabalho, que sobrevaloriza o princípio da oralidade, do qual deriva os princípios da concentração dos atos processuais em audiência, irrecorribilidade imediata das decisões interlocutórias, imediatidade física do juiz, que formam um todo orgânico e interdependente, justifica, ou melhor impõe a adoção simultânea da gravação audiovisual da audiência e do registro dos depoimentos por escrito.

É comum o objeto do processo do trabalho envolver questões de ordem fática, em pedidos múltiplos com causas de pedir heterogêneas (horas extras, equiparação salarial, verbas rescisórias etc.), que demandam dilação probatória, tanto prova documental, como oral, notadamente depoimentos pessoais das partes e oitivas de testemunhas. A audiência instrutória trabalhista é regida pelo chamado princípio da primazia da realidade sobre a forma. Ao processo do trabalho importa o que efetivamente ocorreu no mundo da vida, nem sempre coincidente com o representado por documentos, mais ou menos solenes.

O elevado número de processos trabalhistas, aliado à falta de estrutura adequada do Poder Judiciário Trabalhista, suscita certa incredulidade se cada juíza e juiz trabalhista, invariavelmente, assistirá a horas da gravação das audiências de instrução antes de sentenciar, bem como se os desembargadores dos Tribunais Regionais do Trabalho, com suas pautas de julgamento atulhadas, terão maior disponibilidade temporal, condições e viabilidade para acessar tais gravações em todos os processos. Vale dizer com todas as letras: a ausência de registro escrito dos depoimentos carrega, em seu âmago, a possibilidade de deterioração da prestação da tutela jurisdicional, a prolação de decisões judiciais sem a necessária análise da integralidade da prova oral, por falta de condições para tanto.        

A observância dos princípios da proporcionalidade, razoabilidade, legalidade, publicidade e eficiência, determinada pelo artigo 8º do Código de Processo Civil (CPC), desautoriza a propugnada dispensa da transcrição ou degravação dos depoimentos colhidos em audiência.

A substituição do termo ou da ata de audiência por uma gravação que ficará nas nuvens, no etéreo (volátil ou fluída), com pouco acesso, ou seja, a audiência será menos apreendida pela audição dos juízes. Dicionariamente, audiência significa prestar atenção, ouvir atentamente a pessoa que fala; audição. A não redução a termo da audiência viola o direito mais basilar do jurisdicionado: o de ser ouvido.

De acordo com o princípio do contraditório substancial, o juiz deve não apenas ouvir o que as partes têm a dizer, mas considerar o que as partes falarem. Antes de ser fruto da iluminação pessoal do juiz, a decisão é produto do debate democrático realizado no processo. A transcrição dos depoimentos colhidos em audiência envolve a própria configuração do Estado democrático de Direito.

Roberto Parahyba de Arruda Pinto é membro da Comissão Nacional de Direitos Sociais da OAB Federal e ex-presidente da ABRAT.

Autorizado pelo autor a veiculação no jornal Estado de Direito, originalmente publicado no site Conjur.

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