Renata Malta Vilas-Bôas, articulista do Jornal Estado de Direito
Renata Malta Vilas-Bôas
Quando estamos estudando o tema de direito sucessório, iremos nos socorrer do Código Civil e do Código de Processo Civil, e especificamente sobre os legitimados a promover a abertura do inventário iremos nos socorrer do Código de Processo Civil que nos apresentar um rol d pessoas legitimadas a requerer o inventário. São eles:
Art. 615. O requerimento de inventário e de partilha incumbe a quem estiver na posse e na administração do espólio, no prazo estabelecido no art. 611 .
Parágrafo único. O requerimento será instruído com a certidão de óbito do autor da herança.
Art. 616. Têm, contudo, legitimidade concorrente:
I – o cônjuge ou companheiro supérstite;
II – o herdeiro;
III – o legatário;
IV – o testamenteiro;
V – o cessionário do herdeiro ou do legatário;
VI – o credor do herdeiro, do legatário ou do autor da herança;
VII – o Ministério Público, havendo herdeiros incapazes;
VIII – a Fazenda Pública, quando tiver interesse;
IX – o administrador judicial da falência do herdeiro, do legatário, do autor da herança ou do cônjuge ou companheiro supérstite
O rol é considerado exemplificativo, pois qualquer pessoa que possa demonstrar interesse na abertura do inventário poderá manejar o referido procedimento.
Mas, nem sempre é comum que outras pessoas além da própria família, ou seja, os herdeiros legítimos ajuízem a referida ação.
Assim, foi com curiosidade que se acompanhou o processo manejado pelo ex-cônjuge de uma das herdeiras que pleiteou a abertura do inventário para vir a receber valores referentes à sua quota parte diante dos aluguéis oriundos do imóvel que deveria ter sido inventariado.
Sobre a existência de tais valores, o referido processo não tratou, mas ele fez a análise sobre a legitimidade ativa desse ex-marido.
No caso analisado, a herdeira então casada deveria estar recebendo valores oriundos do aluguel de um imóvel que estaria, ou deveria estar sendo inventariado, contudo, como a herdeira não recebeu esse valor, apenas um dos herdeiros, o ex-cônjuge, agora então já separado, afirmou passar a ser credor de 50% (cinquenta por cento), da quota que a herdeira deveria ter recebido e não aconteceu.
Se existem os tais valores, isso ainda não se sabe, contudo, é certo que qualquer pessoa, sendo credora de um dos herdeiros pode vir a promover o inventário quando os demais legitimados assim não fizer.
Vejamos o julgado em questão do E. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, na lavra do Relator Desembargador Dr. Arnoldo Camanho:
APELAÇÃO CÍVEL 0708555-43.2021.8.07.0006
EMENTA
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INVENTÁRIO INSTAURADA PELO EX-MARIDO DE UMA DAS HERDEIRAS. PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE ATIVA. REJEIÇÃO. INSTAURAÇÃO SUPERVENIENTE DE INVENTÁRIO EXTRAJUDICIAL. FACULDADE DOS HERDEIROS. EXTINÇÃO DO INVENTÁRIO JUDICIAL PELA PERDA DO OBJETO. CASSAÇÃO DA SENTENÇA. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE QUE O INVENTÁRIO EXTRAJUDICAL FOI FINALIZADO. SUSPENSÃO DO FEITO JUDICIAL.
- A legitimidade processual, de acordo com teoria da asserção, não é caracterizada com base no direito material discutido em juízo, mas com base nas afirmações feitas na inicial, de forma que a legitimação ativa cabe ao titular do interesse sustentado na pretensão e, a passiva, àquele contra quem tal pretensão é exercida.
- O ex-marido de uma das herdeiras, que se afirma credor desta – por ter direito à meação sobre aluguéis que, na constância do casamento, não foram transferidos à ex-esposa, mas percebidos exclusivamente por um dos herdeiros, ex-cônjuge da autora da herança, que permaneceu na administração do patrimônio comum indiviso -, tem legitimidade para instaurar a ação de inventário, com base no art. 616, inciso VI, do CPC, ficando a discussão acerca da existência ou não do alegado direito de crédito adstrita ao mérito.
- A superveniente realização de inventário extrajudicial e a elaboração da respectiva escritura pública, com a especificação da quota parte que cabe a cada um dos herdeiros, implica a perda do objeto da ação de inventário judicial. Todavia, não se há de falar em perda do objeto se não há prova de que o inventário extrajudicial foi ultimado e se os elementos constantes dos autos denotam a falta de interesse dos herdeiros na sua realização.
- Inexistindo comprovação suficiente de que o inventário extrajudicial foi ultimado, e se verificando relação de prejudicialidade entre a demanda judicial e o procedimento extrajudicial, a medida mais adequada é a suspensão do curso do inventário judicial, com base no art. 313, inciso I, alínea a, c/c §
- Apelo provido. Sentença cassada.
ACÓRDÃO
Acordam os Senhores Desembargadores do (a) 4a Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito
Federal e dos Territórios, ARNOLDO CAMANHO – Relator, JAMES EDUARDO OLIVEIRA – 1º Vogal e LUCIMEIRE MARIA DA SILVA – 2º Vogal, sob a Presidência do Senhor Desembargador FERNANDO HABIBE, em proferir a seguinte decisão: DAR PROVIMENTO AO RECURSO,
UNÂNIME, de acordo com a ata do julgamento e notas taquigráficas.
Brasília (DF), 08 de Agosto de 2022
Desembargador ARNOLDO CAMANHO
Relator
RELATÓRIO
O Senhor Desembargador ARNOLDO CAMANHO DE ASSIS – Relator
Cuida-se de apelação interposta por Marcelo Rodrigues Junior contra sentença proferida pelo MM. Juízo da 1a Vara de Família e de Órfãos e Sucessões de Sobradinho, que extinguiu o processo de inventário instaurado pelo recorrente, com base no art. 485, inciso VI, do CPC, em virtude da perda do interesse de agir decorrente da superveniente instauração de inventário extrajudicial pelos herdeiros.
O apelante alega que, embora tenha sido anexada aos autos certidão expedida pelo Tabelião do Cartório do 2º Ofício de Notas, Registro Civil, Títulos e Documentos, Protesto de Títulos e Pessoas Jurídicas de Sobradinho/DF, dando conta da instauração pelos herdeiros, ora réus, de inventário extrajudicial dos bens de Juseni Mota Cardoso, inexiste nos autos evidência de qualquer atitude no intuito de ultimar o procedimento extrajudicial, vez que o documento referido não esclarece quais medidas foram efetivamente tomadas e os recorridos sequer comprovam o recolhimento dos impostos decorrentes da transmissão do acervo patrimonial. Sustenta que o interesse processual subsiste, ante a ausência de comprovação de que inventário extrajudicial efetivamente ocorreu. Aduz que, para a preservação de seus direitos, impõe-se a suspensão do feito até a comprovação pelos apelados da lavratura da escritura pública de inventário dos bens deixados por Juseni Mota Cardoso. Registra que o cônjuge supérstite permaneceu inerte por dez (10) anos, por ausência de interesse na realização da partilha, especialmente para “evitar” que a segunda apelada, ex-esposa do apelante, entregasse ao recorrente os valores que lhe foram sonegados na constância do casamento. Acrescenta que o argumento da sentença de que a realização do inventário extrajudicial já iniciado se mostra mais vantajoso para os interessados não corresponde à realidade. Ao final, o apelante pugna pela reforma da sentença apelada para que seja determinado o sobrestamento do procedimento judicial do inventário dos bens deixados por Juseni Mota Cardoso, por prazo razoável, não superior a um (1) ano, até a comprovação da ultimação da partilha, mediante a juntada aos autos da escritura pública de inventário extrajudicial que as apeladas informaram ter requerido.
Contrarrazões pugnando, preliminarmente, pela extinção do feito sem resolução do mérito ante a ausência de legitimidade do apelante para a instauração do inventário, sob o fundamento de que não comprovou a condição de credor de sua ex-esposa e herdeira, Lilian Mota Cardoso Rodrigues. No mérito, pugna não provimento do apelo.
É o relatório.
VOTOS
O Senhor Desembargador ARNOLDO CAMANHO – Relator
Inicialmente, impõe-se a análise da preliminar de ilegitimidade ativa do apelante, veiculada nas contrarrazões ao apelo.
A legitimidade processual, de acordo com a teoria da asserção, não é caracterizada com base no direito material discutido em juízo, mas com base nas afirmações feitas na inicial, de forma que a legitimação ativa cabe ao titular do interesse sustentado na pretensão e, a passiva, àquele contra quem tal pretensão é exercida.
No caso dos autos, o apelante informa na petição inicial que foi casado com (…), herdeira de(…), até 27/05/2021, data em que foi homologado o divórcio do ex-casal, ficando ainda pendente a discussão sobre a partilha de bens. Sustenta que, entre a data da morte de Juseni Mota Cardoso, que ocorreu em 01/11/2010, e o seu divórcio com (…) (…), não foi feito o inventário e partilha dos bens deixados Juseni. Alega que, durante esse período, ante a falta de individualização dos bens da herança que cabiam à sua ex-esposa, o acervo hereditário permaneceu na administração informal do ex-cônjuge da autora da herança e pai de (…), que recebia os aluguéis sobre os imóveis pertencentes a todos os herdeiros e, ainda, reinvestia os frutos percebidos para aquisição de novos imóveis. Sustenta que, durante esse período, ante a falta de individualização dos bens imóveis transmitidos por herança à sua ex-esposa, o apelante teve sonegado o seu direito à meação sobre os aluguéis desses bens e possíveis benfeitorias realizadas, que se fundamenta no art. 1660, incisos IV e V, do CC. Registra, por fim, que sua legitimidade para a instauração do inventário se baseia no fato de ser credor de herdeira, nos termos do art. 616, inciso VI, do CPC, e de ser necessária a individualização dos bens que foram transferidos à sua ex-consorte para que possa saber qual é a parte que lhe toca no patrimônio do ex-casal.
Assim, como se vê, o apelante afirma ser credor de uma das herdeiras, em decorrência de valores referentes à meação que lhe pertente e que não lhe teriam sido repassados. Além disso, indica o preceito legal que o legitima, nessa condição, a ajuizar ação de inventário.
Isso é o suficiente para extrair, segundo a teoria da asserção, a legitimidade do apelante para o ajuizamento da ação de inventário, ficando adstrita ao mérito a discussão em torno da existência do direito de crédito alegado e sua extensão, que deverá ser resolvida nos autos do processo de divórcio e partilha.
Assim, rejeito a preliminar, passando à análise do mérito do recurso.
No caso dos autos, o apelante ajuizou ação de inventário judicial, quando ainda não havia inventário extrajudicial dos bens deixados pela falecida (…). Assim, naquele momento, tinha inequívoco interesse processual na instauração dessa demanda, pois consistia no único meio disponível para que pudesse apurar o total de patrimônio transferido à sua ex-esposa e pudesse calcular a sua meação sobre os aluguéis que alega ter sido recebidos exclusivamente pelo pai de sua ex-consorte, bem como sobre eventuais benfeitorias que tenham sido realizadas.
No curso da demanda, os herdeiros, ora réus, informaram a instauração do procedimento de inventário extrajudicial dos bens, tendo a sentença extinto o processo sem resolução do mérito em virtude da perda do interesse processual.
Com efeito, a realização de inventário extrajudicial e a elaboração da respectiva escritura pública, com a especificação da quota parte que cabe a cada um dos herdeiros, torna desnecessário o prosseguimento da ação de inventário judicial, o que implica a perda do interesse de agir do autor. Esse entendimento é perfilhado em precedentes de diversos Tribunais de Justiça, como podem ilustrar as seguintes ementas:
TJRS
“APELAÇÃO CÍVEL. SUCESSÕES. INVENTÁRIO. INVENTÁRIO E PARTILHA JÁ REALIZADOS NA ESFERA EXTRAJUDICIAL. PERDA DO OBJETO DA AÇÃO. EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM JULGAMENTO DE MÉRITO. APELANTE SEDIZENTE COMPANHEIRA DO AUTOR DA HERANÇA. ALEGAÇÃO DE PRETERIÇÃO NA PARTILHA EXTRAJUDICIAL. NECESSIDADE DE
AJUIZAMENTO DE AÇÃO PRÓPRIA
- Uma vez que já procedido ao inventário e partilha dos bens deixados pelo autor da herança na esfera extrajudicial, a ação de inventário perde seu objeto, impondo-se a extinção do processo sem julgamento de mérito.
- Alegando a apelante ser companheira do autor da herança e entendendo ter sido preterida na partilha extrajudicial levada a efeito por ascendente do extinto, sua pretensão
de nulificar aquela partilha e concorrer na sucessão deverá ser deduzida na via própria para tanto, nada mais havendo a ser solvido em sede de inventário. Precedentes. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME” (Apelação Cível, Nº 70062476288, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em: 18-12-2014).
TJSP
“INVENTÁRIO JUDICIAL – Recurso contra sentença que o extinguiu, sem julgamento de mérito – Descabimento – Existência de inventário extrajudicial já encerrado – Perda do objeto desta ação – Pedido de anulação do ato extrajudicial – Impossibilidade de solução de questões de alta indagação nos estreitos limites de cognição do juízo do inventário – Sentença confirmada – Recurso desprovido” (TJSP; Apelação Cível 1004350-46.2016.8.26.0004; Relator (a): Rui Cascaldi; Órgão Julgador: 1a Câmara de Direito Privado; Foro Regional IV – Lapa – 1a Vara da Família e Sucessões; Data do Julgamento: 13/11/2018; Data de Registro: 13/11/2018).
TJMG
“APELAÇÃO CÍVEL – ABERTURA DE INVENTÁRIO – PERDA SUPERVENIENTE DO OBJETO – INVENTÁRIO REALIZADO EXTRAJUDICIALMENTE – PRINCIPIO DA CAUSALIDADE – ÔNUS DE SUCUMBÊNCIA – ISENÇÃO – RECURSO PROVIDO.
- Pelo princípio da causalidade, impõe-se a condenação ao pagamento das verbas sucumbenciais aquele que deu causa à propositura da demanda extinta.
- Verificando-se preceder o requerimento de abertura de inventário judicial ao registro de inventário extrajudicial em cartório, causa superveniente ensejadora da extinção do processo, impõe-se a reforma da sentença para se afastar a condenação do requerente ao
pagamento dos ônus de sucumbência” (TJMG- Apelação Cível 1.0000.19.163360-1/001, Relator (a): Des.(a) Habib Felippe Jabour , 2a CÂMARA CÍVEL, julgamento em
28/01/2020, publicação da sumula em 31/ 01/ 2020)
No caso dos autos, todavia, os apelados somente demonstraram a instauração do procedimento de inventário extrajudicial, inexistindo comprovação de que foram pagos os tributos devidos e de que esse procedimento foi ultimado. Além disso, é possível vislumbrar o pouco interesse dos recorridos em realizar o inventário e a partilha dos bens da falecida, vez que permaneceram inertes por mais de dez (10) anos e somente instauraram o procedimento de inventário extrajudicial após o ajuizamento da presente ação de inventário e, ainda, resistiram à pretensão do ora apelante, sustentando que lhe falta legitimidade para o ajuizamento dessa ação.
Assim, não é possível afirmar que ocorreu a perda do objeto, porque, enquanto não finalizado o procedimento extrajudicial e confeccionada a escritura pública de inventário, a tutela pretendida pelo apelante ainda se mostrará viável e o prosseguimento do presente processo é o único meio disponível ao recorrente para que obtenha o inventário e a subsequente partilha do patrimônio da falecida e possa calcular a meação que lhe cabe sobre a parte dos frutos extraídos do patrimônio comum dos herdeiros que deveria ter sido transferida à sua ex-esposa.
Em outra vertente, mostra-se possível reconhecer a relação de prejudicialidade entre a presente
demanda e o procedimento de inventário extrajudicial, impondo-se a suspensão do presente processo, nos termos do art. 313, inciso I, alínea a, c/c § 4º, do CPC, pelo prazo de seis (6) meses, até que se ultime o inventário extrajudicial.
Dessa forma, dou provimento ao apelo para cassar a sentença apelada, determinando a suspensão do processo pelo prazo de seis (6) meses, nos termos do art. 313, inciso I, alínea a, c/c § 4º, do CPC, até que se ultime o inventário extrajudicial.
É como voto.
O Senhor Desembargador JAMES EDUARDO OLIVEIRA – 1º Vogal
Com o relator
A Senhora Desembargadora LUCIMEIRE MARIA DA SILVA – 2º Vogal
Com o relator
DECISÃO
DAR PROVIMENTO AO RECURSO, UNÂNIME
*Renata Malta Vilas-Bôas é Articulista do Estado de Direito, advogada devidamente inscrita na OAB/DF no. 11.695. Sócia-fundadora do escritório de advocacia Vilas-Bôas & Spencer Bruno Advocacia e Assessoria Jurídica, Professora universitária. Professora na ESA OAB/DF; Mestre em Direito pela UPFE, Conselheira Consultiva da ALACH – Academia Latino-Americana de Ciências Humanas; Acadêmica Imortal da ALACH – Academia Latino-Americana de Ciências Humanas; Integrante da Rete Internazionale di Eccelenza Legale. Secretária-Geral da Rede Internacional de Excelência Jurídica – Seção Rio de Janeiro – RJ; Colaboradora da Rádio Justiça; Ex-presidente da Comissão de Direito das Famílias da Associação Brasileira de Advogados – ABA; Presidente da Comissão Acadêmica do IBDFAM/DF – Instituto Brasileiro de Direito das Familias – seção Distrito Federal; Autora de diversas obras jurídicas. |
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