
Câmara Municipal Rio
Apesar de o princípio da dignidade da pessoa humana reger nosso ordenamento jurídico, a denominada democracia brasileira tem praticado toda forma de exclusão do bem-estar, com milhões de brasileiros e brasileiras vivendo na linha da pobreza e da miséria. São desempregados, explorados profissionalmente com o crescente processo de uberismo das atividades dos trabalhadores, perseguidos, mortos e presos em razão da cor da pele e do local onde residem. Com isso tudo acontecendo, há a quebra de princípios constitucionais pela própria Corte responsável pela guarda da Constituição.
O sistema penitenciário brasileiro, com destaque para o regime RDD, continua acolhendo seres humanos em suas masmorras, com a aplicação de penas cruéis, degradantes e de “morte a curto e longo prazo”, com isolamentos ilegais reconhecidos pelo próprio STF. Apesar do reconhecimento formal do “estado de coisas inconstitucional”, há anos insiste-se em superlotar as cadeias do Brasil com seres humanos. O empoderamento das forças policiais tem sido utilizado para afrontar os mais comezinhos direitos fundamentais da população mais empobrecida, que vê suas casas humildes invadidas ao arrepio da lei. Denúncias dos moradores dão conta de que, muitas vezes, seus poucos objetos são subtraídos e jovens mulheres abusadas, como se fossem butim de uma guerra que resolveram produzir sob o falso título de “guerra às drogas”, que, na verdade, é uma guerra racial e social para garantir os privilégios de poucos e promover a guetização do povo pobre.
Mesmo sendo uma sociedade de maioria constitutiva negra, nossa população, instigada pelos interesses econômicos, ainda expõe, sem vergonha, seu racismo estrutural e destina aos cárceres a maioria negra e empobrecida pela falta de oportunidades no gozo de seus direitos fundamentais. A lei e o sistema brasileiro favorecem esse processo de exclusão, permitindo, impunemente, que juízes — cujo perfil, traçado pelo CNJ, é de homens brancos, de classe social alta, conservadores e cristãos —, instigados e coagidos pelo aparato policial e pelo Ministério Público, aprisionem, sem sentença, 42% dos suspeitos provisórios, ainda que venham a ser posteriormente inocentados ou recebam penas diversas das privativas de liberdade. Corroborando essa perseguição aos pobres e negros, o mecanismo criado para regular as prisões ilegais, as audiências de custódia no Rio de Janeiro, aponta que 78% dos capturados pelos “capitães do mato” permanecem presos, com decisões judiciais chanceladas por homens brancos, conservadores, de classe alta e ditos “cristãos”. O juiz responsável pela Vara de Execuções Penais do Rio de Janeiro, Rafael Estrela, vaticinou: “A gente não tem nem prisão perpétua, nem pena de morte. Então, a gente sabe que um dia o preso retorna ao convívio social. E de que maneira nós queremos que ele retorne ao nosso convívio? Se é de uma maneira mais violenta do que ele entrou, a gente está no caminho certo”.
O excesso de criminalização de condutas sociais exige uma mudança para restaurar a democracia brasileira, buscando uma mínima intervenção do direito penal na vida privada dos cidadãos. A escolha preferencial dos juízes e juízas pela pena privativa de liberdade, comprovadamente estéril e cara, tem sido outro corolário dessa onda de violência que atinge prioritariamente os mais pobres. A legislação pós-escravidão mira a continuação dos costumes da aristocracia de alijar os negros por meio da criminalização de seus costumes, seus esportes e sua religião.
Moisés saiu do Rio Nilo para dedicar-se à tarefa de perseguir a cultura negra periférica, representada nos tempos atuais por poetas e cantores jovens — funkeiros, sambistas, cantores de hip-hop, funk e trap. O processo de criminalização dos MCs mais bem-sucedidos tem sido o foco dessa política de perseguição aos intérpretes da realidade popular cantada nos versos. O delegado-chefe da Polícia Civil do Rio decretou guerra aos MCs, afirmando que suas letras, ao denunciarem a realidade das comunidades onde moram, são “instrumento de propaganda do Comando Vermelho”.
Interessante notar que é a mesma técnica utilizada pelos que defenderam a ditadura militar, que atribuíam à resistência democrática o desejo de implantação do comunismo no Brasil. Ao decretar uma guerra aos pobres poetas da realidade, afirmou-se que “os versos dos MCs são muito mais lesivos que um tiro de fuzil”. Do samba ao funk, a favela sempre incomodou. Ontem, foram presos sambistas e cantores que promoveram a resistência — Chico, Caetano, Gil; hoje, os funkeiros são criminalizados. Será mesmo que o funk é mais perigoso que um tiro de fuzil? Que assim seja, se for um canto de libertação.
Ao declarar que os poetas e MCs devem ser tratados como terroristas ou combatentes em guerra quando em favelas ou bairros periféricos, o delegado coloca como alvo os setores mais pobres e marginalizados da população, sujeitando à morte violenta não apenas os moradores, mas também os próprios policiais. Sem contar que aqueles que habitam ou transitam pelas áreas ditas conflagradas submetem-se ao pânico diário das invasões dos “caveirões” e das forças violentas do aparato policial, que promovem mortes de crianças inocentes no caminho das escolas.
A atuação de perseguição aos MCs não se amolda aos enquadramentos legais, e isso ficou demonstrado publicamente quando a mídia mostrou como se deu a prisão de MC Poze: ele teve sua casa invadida e foi arrastado de dentro dela, algemado, diante da família, sem opor resistência, pelo simples fato de ter exigido seus bens, apreendidos e retidos ilegalmente pelos policiais. Não foi diferente da ação articulada pelo delegado Moisés contra o rapper Oruam, quando os policiais levaram objetos que nenhuma relação tinham com os fatos apurados, como dentadura de ouro, cordões, pingentes e quatro próteses dentárias de ouro. Todos foram apreendidos, mas não teriam relação com a investigação.
As apreensões referem-se a investigação sobre suposto disparo de arma de fogo ocorrido em um show em dezembro de 2024, no interior paulista. Busca e apreensão na casa do rapper e da mãe teriam caracterizado uma “pescaria probatória”. Uma das batalhas jurídicas dos advogados de Oruam é recuperar bens apreendidos em sua casa que, segundo a defesa, não têm relação com a investigação. São objetos de ouro, especificamente: um anel, quatro pingentes, quatro próteses dentárias, 11 cordões e um relógio.
Houve uma “pescaria probatória” na casa de Oruam, no Joá, zona oeste do Rio de Janeiro. O objetivo seria “pescar qualquer prova sem um foco claro”, o que caracteriza, em tese, abuso de autoridade. Foi enviada notícia-crime ao Ministério Público do Rio de Janeiro para que seja aberta ação contra o delegado Moyses Santana e sua equipe. O MP ainda não se manifestou sobre o pedido, segundo o qual “os bens apreendidos em nada contribuem com a investigação” — que se refere a suposto disparo de arma de fogo em um show em dezembro de 2024, em Igaratá, interior paulista.
A representação ao MP afirma que o laudo de apreensão não tem fotos e não descreve as características dos objetos levados da casa de Oruam, gerando preocupação sobre como serão devolvidos. “Isso é uma guerra contra os comunicadores da periferia, fizeram a mesma coisa com o Poze.”
A investigação de fato supostamente ocorrido em São Paulo, com ações da polícia carioca, gera muita desconfiança. O delegado que conduziu as apreensões na casa de Oruam é o mesmo que prendeu MC Poze — solto em seguida por decisão judicial que considerou a prisão ilegal — e que também recuperou joias de ouro apreendidas, mostradas em vídeo que viralizou.
O que se questiona é o fato de o inquérito, por disparo de arma de fogo que teria sido feito por Oruam, ter saído da Delegacia de Crimes da Internet, em Santa Isabel, interior de São Paulo, para a Delegacia de Entorpecentes, na capital fluminense. No rol de arbitrariedades, a mãe de Oruam teve seus celulares apreendidos sem autorização. Márcia Gama dos Santos Nepomuceno mora no subúrbio, em Sulacap, zona oeste. “Pegaram tudo na casa dela, inclusive objetos da irmã de Oruam, que é especial.”
A representação pede “multa e/ou detenção e/ou perda do cargo”, além de “inabilitação para o exercício de qualquer função pública ou de natureza policial por até cinco anos”. O que se reivindica, além do respeito ao devido processo legal, é que seja assegurado aos periféricos o direito à liberdade de expressão, repudiando toda e qualquer medida de perseguição e retaliação às letras musicadas pelos poetas periféricos. É o mínimo que se deseja em um Estado Democrático de Direito.