A Justiça Restaurativa no Brasil: para onde vamos, o que queremos?

Publicado na 44ª edição do Jornal Estado de Direito.

Daniel Achutti

Advogado.

Doutor em Ciências Criminais pela PUCRS.

Professor do PPG em Direito do Unilasalle.

            Com a implementação dos juizados especiais criminais (Lei n. 9.099/1995), esperava-se introduzir no Brasil um sistema informal e menos punitivo de controle penal, que permitisse tanto o desafogamento das varas criminais quanto a atribuição de uma maior autonomia às partes para a resolução dos seus conflitos (de menor potencial ofensivo). Os efeitos desejados, contudo, não foram alcançados: as varas criminais continuaram congestionadas e não houve um aumento de satisfação das partes quanto à forma como os seus conflitos passaram a ser administrados.

            Na esteira de Salo de Carvalho, pode-se afirmar que a cultura jurídica brasileira apresenta marcantes traços inquisitivos, e tal característica acaba por impedir os atores jurídicos de perceber que, no fundo, as suas práticas cotidianas apenas colaboram para a manutenção de um agir cuja finalidade principal, como não poderia deixar de ser, é o encarceramento de pessoas. Nesse sentido, talvez a dificuldade maior para se alcançar os objetivos propostos pelas reformas penais de cunho não repressivo – a exemplo dos juizados especiais – não esteja na lei, mas na cultura jurídica que move e sustenta a estrutura da justiça criminal brasileira. O crescimento exponencial das taxas de encarceramento no Brasil não pode ser considerado um fenômeno social desassociado dessa cultura – legalista, punitivista e, para lembrar novamente as lições de Salo, nitidamente carcerocêntrica.

            Desde tal perspectiva, é forçoso reconhecer que qualquer reforma penal que pretenda instituir uma alteração substancial na forma como se administram os conflitos criminais no país deverá partir, sobretudo, de uma proposta que abarque uma nova cultura, com novos marcos teóricos e modos de operacionalização das suas propostas. Como lecionava Louk Hulsman, o abandono da linguagem criminalizante do direito penal e de toda a carga negativa que a acompanha pode ser, quiçá, o primeiro passo em direção a algo radicalmente distinto do direito penal.

            A justiça restaurativa, nesse contexto, ocupa lugar de destaque. Em grande medida, os primeiros trabalhos sobre justiça restaurativa (segunda metade da década de 1970) refletiram uma insatisfação crescente com o sistema de justiça criminal tradicional, apresentado desde um panorama sombrio e ineficaz, que justificaria a adoção de um novo modelo de administração de conflitos. Paralelamente, o abolicionismo penal, oriundo da criminologia crítica dos anos 1970 e 1980, apontava para a necessidade de abolir o sistema de justiça criminal e substituí-lo por um modelo deliberativo de administração de conflitos, que priorizasse os danos causados pelo conflito à mera atribuição da culpa penal.

            Caracterizada por não apresentar vencedores nem perdedores, como refere Vincenzo Ruggiero, na qual a satisfação das necessidades básicas das partes aparece em primeiro lugar – sem descuidar, naturalmente, dos direitos fundamentais – busca-se proporcionar aos envolvidos um ambiente adequado para a construção coletiva de uma decisão que contemple os interesses de todos. O modelo verticalizado da justiça criminal, em que o Estado aparece como figura principal e estabelece, ao final, a responsabilidade dos culpados, cede lugar a um modelo horizontal, sem hierarquias e classificações antecipadas de fatos e sanções, de modo a reduzir a importância dos atores jurídicos e a atribuir às partes o papel de proprietários do conflito, tal como advogava Nils Christie desde o final dos anos 1970.

            Ainda não é possível saber qual será o impacto do modelo restaurativo na justiça criminal tradicional – se haverá aumento ou redução do seu uso, do encarceramento, etc., mas caso se opte por um sistema pautado por uma perspectiva crítica e consciente das dificuldades que a cultura jurídica brasileira poderá gerar para a sua implementação, é possível, pelo menos no plano teórico, criar uma expectativa positiva. Para que não se repitam os equívocos verificados nas reformas penais anteriores, é necessário reconhecer as limitações do direito penal e a necessidade de buscar uma forma efetivamente nova de lidar com os conflitos criminais.

            O estabelecimento de um modelo que prescinda das ferramentas básicas do direito penal, como se sabe, não é fácil, mas não há mais caminho de volta: a justiça restaurativa, cedo ou tarde, será realidade no Brasil. A questão primordial envolve a definição de qual modelo restaurativo adotar: um modelo que proporcione o aumento do controle social e se torne mais um tentáculo do aparato penal, ou um modelo emancipador, que se desassocie das práticas penais e reduza os danos causados pela punição, e ainda acabe por colaborar, como refere Raffaella Pallamolla, para o exercício da cidadania? A resposta parece óbvia. Resta aguardar.

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