Letícia Marques Padilha *
Para tratar do tema da integração do negro (a) no sistema OAB se faz necessário compreender a busca da cidadania pela população negra na sociedade brasileira, ainda mais quando analisamos o contexto histórico em que essa população está inserida. Busca-se compreender como a sociedade brasileira recepcionou a comunidade negra após o término processo escravocrata que reflete ainda nos dias atuais.
É imprescindível a compreensão do contexto histórico no qual se coloca essa população negra e suas peculiaridades. A partir dessa perspectiva como a sociedade enxerga/percebe a comunidade negra reflete na forma como será tratada em determinados espaços.
A cidadania é um contínuo processo de construção. É uma história que se faz com mudanças sociais, carregadas de lutas, dívidas com a modernidade, contradições e persistências na resolução dos candentes problemas sociais. É uma identidade social política que está vinculada a processos de exclusão-inclusão.
A cidadania brasileira se caracteriza pela sobrevivência de seu regime de privilégios legalizados e desigualdades legitimadas. A propriedade de ativos financeiros e de imóveis, o domínio da norma culta da língua materna, de línguas universais, de códigos da cultura erudita, o conhecimento científico e de credenciais escolares etc. constituem elementos permanentes de classificação social e de diferenciação a relativizar a equalização dos indivíduos em cidadãos (GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Modernidades negras: a formação racial brasileira (1930-1970). 1 ed. São Paulo: Editora 34, 2021).
Podemos sustentar que os negros escravizados não eram considerados cidadãos, muito pelo contrário eram vistos como res (coisa). A partir desta análise é possível afirmar que existia, e ainda existe, indivíduos considerados como cidadãos e outros como subcidadãos. E essa é uma construção social histórica que conduz a importantes reflexões.
Pode-se dizer que tivemos uma abolição “formal” da escravidão, pois à população negra não foi destinada qualquer política pública. Os negros foram inseridos na sociedade sem educação, sem trabalho, sem moradia etc. Assim, se inicia o processo de integração da comunidade negra na sociedade brasileira.
O negro é projetado num sistema de referência que deforma a sua pessoa e a sua capacidade de realização humana. Nem sempre pode comprovar o que é capaz de fazer e até onde pode ir. O passado está no presente, uma herança inevitável da ordem senhorial e escravocrata (FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. vol. 2. São Paulo: Globo, 2008).
O reconhecimento da cidadania negra no Brasil foi uma conquista do povo no período da pós-abolição. Porém, passados mais de 130 anos ainda não foi completamente efetivado, restam muitas mazelas de representatividade dessa população.
Apenas com a Carta Magna de 1988, com um trabalho hercúleo dos congressistas negros e da sociedade civil organizada, reconheceu-se que havia discriminação racial no Brasil, situação negligenciada desde a Proclamação da República. Os constituintes conseguiram inserir na Constituição Federal a obrigatoriedade de se estudar a história da África e a história dos negros no Brasil, elemento de fundamental importância para se conceber a história brasileira.
Importante conquista também foi o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica. O igualitarismo negro foi resultado de um amadurecimento das demandas, que adotaram meios para obter reconhecimento de sua particularidade cultural e por ações afirmativas de oportunidades entre brancos e negros (GARIBOTI, Diuster de Franceschi; BLANCO, Yago Freitas. Cidadania negra no Brasil do pós-abolição: a representatividade política dos negros. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, ed. 12, vol. 09, p. 39-50, 2021. Disponível em: <https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/cidadania-negra>. Acesso em 14 mai. 2025).
E a partir da inserção das ações afirmativas em nosso país, visando reparar desigualdade que OAB aprovou em dezembro de 2020, sendo implementada nas eleições de 2021 (através da Resolução 5/20 que alterou o Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia e da OAB), o sistema de cotas raciais, com o objetivo de garantir a representatividade de pessoas negras (pretas e pardas) em suas eleições. Essa política estabeleceu uma cota mínima de 30% de vagas para negros(as) nas eleições dos Conselhos Seccionais e Subseções do Brasil. Essa medida busca garantir a representatividade racial nas estruturas da OAB, combatendo as desigualdades raciais na advocacia e garantindo a inclusão de profissionais negros(as) nas estruturas da OAB e do Judiciário.
Pode-se afirmar que somente após a inserção das ações afirmativas no sistema OAB que efetivamente houve uma participação efetiva dos negros(a) dentro da instituição. Visto que agora somos parte daquilo que parecia tão distante, estamos dentro do sistema participando de decisões importantes. Contudo, ainda somos poucos, e esse espaço também é nosso como de qualquer advogado(a) não negro(a).
Tivemos algumas conquistas até aqui, graças ao caminho trilhado pela nossa ancestralidade, todavia o percurso ainda é longo e árduo, mas não podemos desanimar. Não superamos o racismo no Brasil, visto que o tempo e a cultura atual não foram suficientes para apagar a marca que o processo de escravidão imprimiu no Brasil por mais de 300 (trezentos) anos. Peço que os orixás sigam nos guiando para continuarmos fortes e resilientes no combate à perversidade humana chamada racismo.
Fonte PADILHA, Letícia Marques. Revista Vadne – Revista da Advocacia Negra. Edição 17, maio 2025. Disponível em: https://ananadv.com.br/. Acesso em: 3 set. 2025.
- Letícia Marques Padilha – Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS (2023). Mestra em teoria geral da jurisdição e processo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2018). Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2005). Atuou durante 10 (dez) anos como assessora de desembargador – Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Advogada na área cível, família e sucessões. Professora de Direito Processual Civil, Direito de Família e Sucessões. Conselheira Estadual da Ordem dos Advogados do Brasil da Seccional do Rio Grande do Sul. Presidente da Comissão da Igualdade Racial OAB/RS – CIR/OABRS. Primeira Secretária da Sociedade Brasileira de Direito Antidiscriminatório – SBDA. Integrante do Movimento Negro Unificado. Membro do Comitê Estadual contra a tortura/RS. Integrante do Núcleo de Pesquisa Antirracismo da Faculdade de Direito da UFRGS.