A inconstitucionalidade da carteira verde e amarela

Cesar Zucatti Pritsch

Foto: Camila Domingues/ Palácio Piratini/Fotos Públicas

Declarações recentes da equipe de governo reacenderam a polêmica sobre a possibilidade de haver uma “carteira verde e amarela”, sem direitos trabalhistas e sem a possibilidade de recurso à Justiça do Trabalho, supostamente como uma alternativa para aumentar a quantidade de “empregos” (“empregos” entra aspas, já que na realidade seria pouco mais que um “bico” oficializado). Questionado o Ministro Paulo Guedes se o governo pretende acabar com direitos previstos na Constituição, como férias e 13º salário, o ministro respondeu evasivamente, afirmando que “ninguém mexe em direitos, mas daremos novas alternativas para os trabalhadores“.[1] Em outro momento, diz que o sistema não significará o fim dos direitos trabalhistas atuais, já que o modelo atual, com os direitos trabalhistas vigentes, continuaria sendo uma “opção para quem quiser”.[2] Sabe-se a partir das falas de diversos interlocutores do governo, inclusive do vice-presidente, que direitos constitucionais trabalhistas – como férias e 13º salário – são considerados um estorvo. No mesmo sentido, o presidente tem dito que a legislação trabalhista “vai ter que se aproximar da informalidade”.[3] Mas iria o governo tão longe a ponto de tentar algum tipo de subterfúgio para indiretamente revogar direitos fundamentais previstos em cláusulas pétreas da Constituição?

Posto de outra forma, temos a questão jurídica foco desta breve exposição: tornar direitos fundamentais aparentemente “opcionais” é o suficiente para evitar a inconstitucionalidade por ofensa a cláusulas pétreas (protegidas de alteração por emenda constitucional, art. 60, §4º, IV, da Constituição Federal)?

A resposta é obviamente negativa.

Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: … IV – os direitos e garantias individuais” (art. 60, §4º, IV) dentre os quais estão incluídos os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais previstos no art. 7º da Constituição, parte de seu Título II, “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”.

Assim, veja-se que o obstáculo não é apenas para a produção de lei ordinária em contrário a tais direitos, sendo ineficaz para tal finalidade até mesmo uma emenda constitucional. O constituinte originário objetivou justamente que maiorias temporárias não conseguissem aniquilar conquistas civilizatórias obtidas após séculos de evolução social e consagradas na Constituição da redemocratização, em 88.

Foto: U.Dettmar/SCO/STF

Outra conclusão óbvia a partir do §4º do art. 60 da Constituição é que não apenas uma revogação explícita de cláusula pétrea está proibida, mas sim qualquer dispositivo que a diminua, esvazie, tangencie, como é o caso das propostas que têm sido titubeantemente ventiladas na imprensa. O texto constitucional é eloquente: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: …”. Ou seja, não está obstada apenas a revogação expressa. Qualquer dispositivo tendente a abolir, ainda que indiretamente ou por meio de subterfúgios, estará contaminado com o mesmo vício de inconstitucionalidade, sujeitando-se à invalidação em controle difuso, por qualquer órgão do Judiciário, ou em controle concentrado, pelo Supremo Tribunal Federal.

É exatamente o caso aqui debatido.

A tal “opção” por um contrato de trabalho sem um ou mais dos direitos constitucionais trabalhistas é uma ficção, já que o trabalhador não terá poder de barganha para negociar – a ausência de direitos será condição imposta para obtenção da vaga. Trazendo a questão para nossa realidade atual, imaginem um trabalhador de Brumadinho tentando “negociar” a posição da barragem, para sua própria segurança. A “alternativa” que teria, naturalmente, seria a de dirigir-se para a porta da rua. 

Em nosso sistema jurídico, tais imposições à parte mais frágil de um contrato são tidas como ilegítimas, fictícias, nulas, a exemplo do que também ocorre nos contratos de adesão nas relações de consumo. Ao consumidor são nulas certas imposições, já que este não possui real poder de negociação em face dos fornecedores de produtos e serviços.[4]

Na seara trabalhista, há um exemplo muito claro de que tais “opções” na realidade são imposições. Até fins de 1966, o empregado que atingisse 10 anos de serviço na mesma empresa não poderia mais ser despedido “senão por motivo de falta grave ou circunstância de força maior, devidamente comprovadas” (art. 492 da CLT). No entanto, sem revogar tal artigo, foi criado um sistema paralelo (Lei 5.107/66, regulamentada pelo Decreto 59.820 de 20/12/66). O trabalhador poderia “optar” pelo regime em que não teria direito a tal estabilidade, mas receberia um depósito mensal de 8% de seu salário em um Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Houve, inclusive, intensa campanha midiática pelo governo militar, na época (por exemplo “Este homem não quer indenização, Quer progredir no trabalho”) para convencer a sociedade das “vantagens” do novo sistema.[5] Todos sabem o que aconteceu, a partir de 1967 ninguém mais era contratado se não exercesse a “opção” pelo regime do FGTS, renunciando à estabilidade no emprego do art. 492 da CLT.

A mudança atual seria muito mais cruel que aquela do FGTS, já que desta vez o trabalhador renunciará a direitos trabalhistas em troca de … nada.

Com o passar do tempo, dada a alta rotatividade demissões e contratações, em 5 ou 6 anos quase todos já terão exercido a “opção” pelo novo sistema, renunciando a direitos trabalhistas (inclusive direitos constitucionalmente garantidos, conforme tem sido cogitado pelo governo em declarações à mídia). O contrato tradicional de trabalho, com os direitos previstos na constituição, terá virado pó – “tendendo” à sua abolição, afrontando assim o §4º do art. 60 da Constituição.

Além da revogação camuflada parcial ou total do art. 7º da Constituição, temos ainda outros problemas de constitucionalidade, já que os direitos fundamentais são em geral indisponíveis ou irrenunciáveis. Voltando ao triste exemplo de nossa realidade atual, imaginem um trabalhador de Brumadinho sendo “convencido” a assinar um termo em que renuncia ao “seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador“, bem como à “indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa” (Constituição, art. 7º, XXVIII). Além de imoral, tal artimanha seria obviamente nula. Pode-se negociar em um acordo o valor da reparação à lesão a um direito fundamental, mas não renunciar ao próprio direito, permanentemente, tornando-o letra morta. 

Foto: Pixabay

Finalmente, teremos problemas também com o art. 5º, caput, da Constituição, por ofensa à garantia de isonomia, já que, se vingar a sistemática cogitada pelo governo,  durante algum tempo haverá trabalhadores exercendo as mesmas funções com direitos bastante diversos, uns pelo regime tradicional, outros tendo renunciado a vários direitos trabalhistas.

Em conclusão, podemos dizer que, se a carteira verde e amarela corresponder apenas a um novo regime previdenciário-tributário, para que os trabalhadores progressivamente adiram a um sistema previdenciário (e.g. de capitalização, como cogitam) e com menor oneração sobre a folha de pagamento,[6] do ponto de vista trabalhista não haveria questionamentos de constitucionalidade.[7]

No entanto, se o governo pretende fragilizar direitos constitucionais trabalhistas através da carteira verde amarela,[8] ainda que o tente por de emenda constitucional, o reconhecimento da inconstitucionalidade pelo Poder Judiciário é o destino mais provável – caso eventualmente tal inconstitucionalidade não seja reconhecida já durante a tramitação, pelo próprio Congresso.  

Acredita-se que o governo não arriscará sua credibilidade arrojando-se em tamanha aventura jurídica, já que a derrota em um projeto mal elaborado poderia lhe desgastar politicamente. No entanto, caso a tal carteira verde e amarela de fato contemple o esvaziamento de cláusulas pétreas da Constituição, apenas restará ao Judiciário reconhecer sua inconstitucionalidade.

Referências: 

[1] Ver http://bit.ly/2Su9pnN.

[2] Ver, por exemplo, https://glo.bo/2E7A6pf.

[3] Disponível em https://glo.bo/2GDlNdI.

[4] Não é por outra razão que o consumidor, assim como o trabalhador, também possui proteção especial na lei e na Constituição (art. 5º, XXXII, art. 24, VIII, art. 170, V, etc).

[5] Conforme artigo constante do próprio site do Senado Federal, http://bit.ly/2N3jNg8.

[6] Em https://glo.bo/2E7A6pf.

[7] Não é objeto deste brevíssimo ensaio adentrar a questão previdenciária, extremamente polêmica por si só.

[8] Ao contrário do que disse em seu próprio plano de governo: “Criaremos uma nova carteira de trabalho verde e amarela, voluntária, para novos trabalhadores. Assim, todo jovem que ingresse no marcado de trabalho poderá escolher entre um vínculo empregatício baseado na carteira de trabalho tradicional (azul) — mantendo o ordenamento jurídico atual —, ou uma carteira de trabalho verde e amarela (onde o contrato individual prevalece sobre a CLT, mantendo todos os direitos constitucionais).” Em “O Caminho da Prosperidade. Proposta de Plano de Governo: constitucional, eficiente, fraterno.” P. 64 de 81, disponível em http://bit.ly/2GpmuIr (último acesso em 09/02/2019).

Juiz Cesar
Cesar Zucatti Pritsch é Juris Doctor pela Universidade Internacional da Flórida (FIU), EUA, laureado magna cum laude. Juiz do Trabalho do TRT da 4ª Região. Ex-Procurador Federal. Professor da Escola Judicial do TRT da 4ª Região e de outros Tribunais Regionais, assim como de cursos de pós-graduação lato sensu. Autor do livro “Manual de prática dos precedentes no processo civil e do trabalho”, Editora LTr, 2018, e de artigos publicados em revistas jurídicas nacionais e no exterior.
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