Certamente, a melhor herança da recente “polêmica das franquias” e do “bloqueio do WhatsApp” – por 72h, determinado pelo juiz Marcel Montalvão, da comarca de Lagarto (SE) -, é o fomento do (bom) debate e do conhecimento sobre a Internet e sua regulamentação. Movidos pela ânsia de entender o “problema” e “batalhar por seus Direitos”, pessoas que nunca antes haviam se interessado pelos aspectos técnicos da Internet e sua nuances jurídicas, se lançaram em busca de conhecimento, e espaços para debaterem suas ideias. Neste cenário, inúmeros argumentos foram lançados, nas mais diversas plataformas de notícias, blogs e redes sociais. Em que pese, o fomento do debate sobre o assunto seja extremante positivo, alguns argumentos que foram lançados, e têm se propagado como verdadeiros, não podem se perenizar. Destarte, o intuito do presente artigo é lançar as respectivas respostas para dois desses argumentos.
Argumento 1: “O Marco Civil da Internet possui “brechas” que promovem e autorizam a “censura””.
De repente, esse é o argumento mais corriqueiro entre àqueles que se opõe à regulamentação da Internet, entendendo que é o próprio Marco Civil da Internet, e suas “brechas”, o embasamento para a expansão do “ativismo judicial” e o “decisionismo” que vêm promovendo o, infelizmente, já corriqueiro bloqueio de sites e aplicativos na Internet.
Particularmente, conquanto, não veja “brechas” no MCI. Legislações oitocentistas, que nutrem o paradigma da completude – natural dos Códigos – possuem, sim, “brechas”. O MCI não pretende ser um microssistema normativo autônomo e completo, mas busca interagir com o sistema jurídico, como um todo, a partir de um paradigma aberto e axiológico, trazendo fundamentos, princípios e objetivos para a regulamentação da Internet, no Brasil. Neste sentido, é que acredito impossível que uma legislação que tem na liberdade de expressão seu fundamento, e na privacidade – um de seus principais pilares -, poderia ser embasamento para a prática de censuras. Muito pelo contrário, o MCI se lança para evitar a censura, promover a liberdade de expressão, a privacidade e a neutralidade da rede, como meios para atingir o fim de proteger o usuário e sua dignidade. Qualquer ato/fato/regulamentação/decisão que expor a dignidade do usuário, seja através da censura, bloqueios, tratamento ilícito de dados, venda de dados sensíveis, etc., estará, a priori, violando o MCI.
Neste mesmo sentido, importante ponderar que, s.m.j., a discussão acerca da necessidade, ou não, de um regramento para a Internet, está absolutamente superado, desde os anos 80/90. Ganha destaque, aqui, o trabalho do Prof. Lawrence Lessig, Code 2.0. Principalmente se considerarmos verdadeira a assertiva do Prof. Lessig (“Code is Law”), passa a ser evidente a necessidade de um regramento específico para impor valores, princípios e limites a essa ilimitada capacidade do Código (Code) de criar, recriar e modificar a realidade, inclusive com efeitos, potencialmente, devastadores na “vida real”, mesmo que praticados no plano “virtual”.
Em outras palavras: é inquestionável a necessidade de uma legislação capaz de “traduzir” as regras da “vida real” para a realidade (virtual) do cyperspace, a fim de impor ao “Código” (Code) os mesmos limites impostos à “vida real”.
Para decidir, conquanto, algo que hoje impacta a vida da maioria dos brasileiros, nos âmbitos pessoal e profissional, é necessário que os intérpretes do MCI tenham ciência de sua base axiológica e seus critérios hermenêuticos. Destaque-se, assim, que o próprio MCI prevê, em seu artigo 6º, que “na interpretação desta Lei serão levados em conta, além dos fundamentos, princípios e objetivos previstos, a natureza da internet, seus usos e costumes particulares e sua importância para a promoção do desenvolvimento humano, econômico, social e cultural”.
Ganha relevo, neste norte, que a Internet, no Brasil, possui como fundamento o respeito à liberdade de expressão, consubstanciado, por sua vez, no fundamento da livre iniciativa, livre concorrência e na necessária defesa do consumidor (Art. 2, V), além da finalidade social da rede (Art. 2, VI). O fundamento legal da Internet pátria, destarte, ganha concretude e aplicabilidade na sua relação intersubjetiva com seus princípios norteadores, ganhando destaque, neste sentido, o princípio da proteção da privacidade (Art. 3, II), da proteção de dados pessoais (Art. 3, III), da Neutralidade da Rede (Art. 3, IV) e o princípio da preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede (Art. 3, V). E, para coroar a base axiológica norteadora da Internet brasileira, o MCI, prevê, de forma expressa, como objetivo central de sua aplicação: a promoção do “direito de acesso à internet a todos” (Art. 4, I).
Qualquer decisão que envolva a interpretação da regulamentação da Internet, no Brasil, deve, obrigatoriamente, estar embasada e considerar esta carga valorativa, sendo absolutamente temerário relegar a culpa pelas limitações cognitivas dos intérpretes em uma legislação que tem se demonstrado absolutamente moderna e adequada para a realidade brasileira – e, aliás, tem servido de modelo para outras legislações ao redor do mundo.
Argumento 2: “Empresas estrangeiras não podem se furtar em respeitar a Lei brasileira. Se o Poder Judiciário determinou a disponibilização de conteúdo de comunicações privadas, os provedores de aplicação devem obedecer a ordem”.
Em que pese esse corriqueiro argumento seja parcialmente verdadeiro, eis que empresas estrangeiras deveriam, sim, esforçar-se para cumprir com as legislações dos países em que suas aplicações de Internet estão disponíveis para acesso, no caso específico do “bloqueio do WhatsApp”, é forçoso reconhecer que a decisão do juiz Marcel Montalvão, da comarca de Lagarto (SE), impõe ordem que extrapola as determinações legais, visto que comunicações privadas não são de guarda obrigatória pelos provedores de aplicação, pois não se confundem com registros de acesso à aplicação.
Neste sentido, importante destacar que o dever de proteção dos Registros, Dados Pessoais e Comunicações Privadas não podem ser confundidos com o dever de guarda dos registros de acesso a aplicações de internet – sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 6 (seis) meses, previsto no artigo 15, do MCI.
Importante frisar, que os artigos 10 e 11, do MCI, preveem, em suma, que a guarda e a disponibilização dos registros de acesso a aplicações de internet, bem como os dados pessoais e o conteúdo das comunicações privadas, “devem atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas”, mesmo quando apenas uma operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento ocorra no Brasil. Ou seja, trata-se de previsões que dialogam, de forma direta, com o direito de inviolabilidade do sigilo do fluxo e armazenamento das comunicações dos usuários pela internet. Em outras palavras: trata-se de previsões que buscam estimular a proteção à privacidade e aos dados pessoais dos usuários, conforme disposto no artigo 3º, incisos II e III, do MCI.
Neste sentido, ganha destaque o artigo 12, do MCI – utilizado pelo juiz Marcel Montalvão, da comarca de Lagarto (SE) para impor a penalidade- que prevê, de forma expressa, que as sanções cíveis, criminais ou administrativas, incluindo-se a sanção de suspensão aplicada, deveriam ser imputadas, exclusivamente, às infrações previstas nos artigos 10 e 11, do MCI, que, como vimos, busca proteger a privacidade do usuário, e não tutelar o dever de guarda de registro de conexão. Com efeito, a obrigação de guarda que recai aos operadores de aplicação à internet, salvo melhor juízo, não abrange as comunicações privadas, mas, exclusivamente, os registros de acesso à aplicação, nos termos do artigo 15, do MCI. Este artigo prevê que o provedor de aplicações de internet “deverá manter os respectivos registros de acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 6 (seis) meses, nos termos do regulamento”. E, logo abaixo, em seu artigo 16, o MCI dispõe, ainda, que na provisão de aplicações de internet é vedada a “guarda de dados pessoais que sejam excessivos em relação à finalidade para a qual foi dado consentimento pelo seu titular”.
Ou seja, sob qualquer prisma de análise, não se pode concluir que o MCI criou a obrigação aos provedores de aplicação de Internet de efetuar a guarda de dados pessoais e/ou das comunicações privadas. Muito pelo contrário, o artigo 15, do MCI, é cristalino ao limitar as hipóteses de guarda obrigatória aos registros de acesso à aplicação de Internet. Por outro lado, o MCI também não veda a guarda de dados pessoais e comunicações privadas, desde que não excedam a relação de finalidade, prevista no artigo 16, do MCI. Neste cenário, entretanto, caso o provedor de aplicação opte por efetuar aguarda destes dados pessoais e comunicações privadas, o MCI impôs, a teor dos artigos 10 e 11, do MCI, elevados padrões de segurança que devem ser atendidos, na coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, dados e comunicações.
Portanto, é desacertada a decisão que impõe penalidade para ausência de disponibilização de comunicações privadas que, como visto, não são de guarda obrigatória, a teor do MCI, pois não se confundem com registros de acesso à aplicação.
Maurício Brum Esteves é Articulista do Estado de Direito -Advogado. Mestrando em Direito na UNISINOS. Especialista em Direito da Propriedade Intelectual pela FADERGS. Membro da Comissão de Propriedade Intelectual da OAB/RS. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/9536373205346420. E-mail: mauricio.esteves@silveiro.com.br