Víctor Minervino Quintiere[1]
A história do Direito Penal é, antes de tudo, a história da forma como as sociedades lidaram com o medo. Medo do crime, medo do outro, medo da dissolução da ordem. Toda vez que o pêndulo social oscilou em direção à insegurança, o Direito Penal se expandiu. Não porque fosse necessariamente a resposta mais eficaz, mas porque era a mais visível. Como se erguer muros fosse mais importante do que construir pontes.
E foi essa cronologia de medos e respostas que, em minha tese de doutorado, busquei organizar em cinco momentos. Cada um deles representa não apenas uma fase técnica do desenvolvimento jurídico, mas uma pulsação coletiva, uma forma de respirar diante da angústia.
O primeiro momento da expansão penal surge com o Iluminismo e a codificação do Direito Penal. Paradoxalmente, nasce de um movimento que pretendia limitar o poder punitivo do Estado. Cesare Beccaria, ao escrever sobre os delitos e as penas, pretendia racionalizar a violência da punição, reduzir os excessos da vingança estatal. Mas a racionalização trouxe consigo um efeito colateral: a ampliação da legitimidade do punir.
Quando o Direito Penal se veste de ciência e de razão, torna-se mais aceitável, mais palatável, mais próximo do cidadão. A codificação, longe de ser apenas uma forma de restringir, foi também uma forma de expandir.
O Estado, agora munido de um discurso racional, pôde penetrar em novas áreas da vida social. A punição deixou de ser espetáculo público para se tornar engrenagem institucional, mas ganhou em alcance aquilo que perdeu em teatralidade.
O segundo momento acontece com a virada do século XIX para o XX e a ascensão das escolas criminológicas positivistas. Lombroso e Ferri desenharam o criminoso como um outro, um sujeito portador de uma essência distinta. A ciência médica e biológica da época forneceu as ferramentas para essa construção. Se o primeiro momento ampliou o alcance do Direito Penal pela racionalidade jurídica, este segundo ampliou pela racionalidade científica.
A prisão se tornou laboratório. O criminoso deixou de ser apenas alguém que praticou um ato e passou a ser alguém que encarnava um perigo.
O Direito Penal ganhou a missão de neutralizar riscos, e não apenas punir condutas. É o momento em que a expansão se dá em profundidade, adentrando o corpo e a alma do indivíduo.
O terceiro momento emerge após a Segunda Guerra Mundial, quando o trauma da barbárie revelou a necessidade de proteger não apenas bens individuais, mas valores coletivos. Os crimes contra a humanidade, o genocídio, os tribunais de Nuremberg: todos esses episódios mostraram que o Direito Penal poderia se projetar para além das fronteiras nacionais e abraçar causas universais. A expansão aqui é geográfica e axiológica.
O Estado-nação deixa de ser o único protagonista; a comunidade internacional começa a ditar parâmetros. O Direito Penal ganha ares de guardião civilizatório. Mas, como toda expansão, também carrega consigo o risco de transformar o discurso universal em instrumento de poder político.
O quarto momento é identificado na transição do século XX para o XXI, quando a sociedade do risco, descrita por Ulrich Beck, se instala de forma definitiva. O Direito Penal passa a se orientar pela lógica da antecipação.
Não se trata mais de punir o fato consumado, mas de agir antes, de prevenir o que pode vir a acontecer. Os delitos de perigo abstrato, os tipos penais abertos, a criminalização de condutas preparatórias: tudo isso revela um Direito Penal voltado para o futuro, ansioso, quase paranoico.
A expansão aqui é temporal. O presente é sacrificado em nome da segurança do amanhã. O Direito Penal deixa de ser retrospectivo para se tornar prospectivo, e nisso reside uma das maiores rupturas de sua história.
O quinto momento, que marca nossa contemporaneidade, é o da digitalização da vida e da hiperconectividade. A sociedade digital cria novas formas de interação, novas vulnerabilidades, novas formas de violência. O crime já não se limita ao espaço físico; ele circula em redes, multiplica-se em bits, atravessa fronteiras sem pedir visto.
O cibercrime, a desinformação em massa, o uso de algoritmos para manipulação social: tudo isso exige respostas que o velho Direito Penal, forjado na lógica territorial e presencial, mal consegue fornecer.
A expansão aqui é espacial e virtual. O Direito Penal é chamado a habitar dimensões que não foram pensadas pelos codificadores iluministas nem pelos criminólogos positivistas.
Esses cinco momentos, embora distintos, se entrelaçam. Eles não se substituem, mas se acumulam. O Direito Penal contemporâneo carrega em si o legado iluminista da racionalidade, a marca positivista da neutralização do perigo, a pretensão universalista do pós-guerra, a ansiedade preventiva da sociedade do risco e, agora, o desafio de lidar com a virtualidade digital. Cada camada sobreposta torna o edifício mais complexo, mais pesado, mais instável.
É nesse cenário que se impõem as complexidades da sociedade digital. O Estado, acostumado a punir com base em provas tangíveis, depara-se com crimes cometidos em redes anônimas, por meio de identidades falsas, atravessando múltiplas jurisdições. A prova digital, volátil e frágil, pode ser manipulada em segundos.
A cadeia de custódia torna-se uma corrida contra o tempo, pois um clique pode apagar vestígios inteiros. O Direito Penal, que sempre lidou com a concretude da materialidade, agora precisa enfrentar a imaterialidade dos dados.
Para a sociedade, os desafios não são menores. A expansão penal no ambiente digital pode significar o aumento da vigilância, a restrição da liberdade de expressão, a criminalização de condutas ambíguas. Uma postagem em rede social pode se transformar em processo criminal.
A fronteira entre a opinião e o crime de ódio, entre a crítica e a incitação, entre a ironia e a ameaça, é cada vez mais tênue. Viver em sociedade digital é viver em permanente exposição, e o Direito Penal, ao expandir-se, transforma cada gesto em potencial indício.
Esse cenário exige reflexão sobre o papel do Estado Democrático de Direito. A tentação do controle total, da punição instantânea, é grande. A opinião pública, alimentada por algoritmos, clama por respostas rápidas, por condenações imediatas.
Mas o Direito Penal não pode ser refém das redes sociais. Ele deve ser o freio, e não o acelerador. A expansão não pode significar atropelo de garantias, sob pena de transformar a democracia em uma caricatura de si mesma.
É nesse contexto que o episódio de 8 de janeiro no Brasil ganha centralidade. A invasão e a depredação das sedes dos Poderes em Brasília foram um trauma coletivo.
A violência simbólica contra as instituições, a tentativa de abalar a ordem democrática, tudo isso marcou a memória nacional. As imagens correram o mundo: vidraças quebradas, cadeiras lançadas ao chão, documentos espalhados como se fossem papéis sem história.
O clamor por punição foi imediato, e com razão. Não se trata de minimizar a gravidade dos fatos. O que ocorreu foi grave, foi afronta, foi violência contra a própria ideia de democracia.
Mas é precisamente nos momentos de maior comoção que a serenidade jurídica precisa se impor. Por piores que sejam as condutas narradas em eventual denúncia, por mais chocantes que sejam as imagens transmitidas ao vivo, é fundamental que aos acusados seja assegurado o devido processo legal. A ampla defesa e o contraditório não são concessões benevolentes; são exigências constitucionais, pilares de uma sociedade que se pretende democrática. Negá-los seria repetir o erro que se pretende condenar: substituir a ordem pelo arbítrio.
O Direito Penal, ao se expandir para enfrentar episódios como o de 8 de janeiro, corre o risco de se tornar um instrumento de vingança política. É preciso resistir a esse risco.
A responsabilidade penal deve ser individualizada, a prova deve ser produzida com rigor, a decisão deve ser fundamentada. Nenhuma causa, por mais nobre, autoriza o sacrifício das garantias. Não se trata de proteger culpados, mas de proteger a integridade do sistema. O Estado que hoje atropela direitos em nome da defesa da democracia pode, amanhã, usar os mesmos mecanismos para sufocá-la.
A sociedade digital potencializa esse dilema. O julgamento não ocorre apenas no tribunal, mas também — e talvez sobretudo — nas redes sociais. Memes, hashtags, transmissões ao vivo: tudo concorre para formar uma opinião pública imediata e impiedosa.
A presunção de inocência se dissolve na velocidade do feed. Nesse ambiente, o juiz que decide conforme a prova pode parecer lento, covarde, conivente. O processo, que deveria ser espaço de racionalidade, é invadido pela lógica da viralização.
É preciso insistir: a justiça não é espetáculo, é processo. Não se trata de agradar plateias digitais, mas de cumprir ritos, respeitar garantias, aplicar a lei. O episódio de 8 de janeiro exige firmeza, mas também exige fidelidade aos princípios. O que se defende, no fundo, não é apenas a punição de quem violou a democracia, mas a própria democracia enquanto método.
E talvez aqui resida a grande lição da expansão do Direito Penal nas sociedades digitais: não basta ampliar o alcance do punir; é preciso ampliar também a consciência dos limites.
O Direito Penal é como uma chama. Pode iluminar, pode aquecer, pode proteger.
Mas se cresce sem controle, incendeia. A sociedade digital é combustível. Se o fogo da punição não for contido pelo freio das garantias, arrisca-se a consumir aquilo que deveria proteger.
Escrevo não apenas como pesquisador, mas como advogado criminalista que, ao longo de mais de dez anos, viu de perto o impacto do processo penal na vida das pessoas.
Vi inocentes esmagados pela máquina punitiva, vi culpados absolvidos por falhas estatais, vi famílias destruídas por prisões preventivas prolongadas. O Direito Penal não é uma abstração acadêmica: é sangue, suor, lágrimas. É vida que se perde, é vida que se reconstrói. Por isso, toda vez que se fala em expandi-lo, é preciso perguntar: a que custo?
Talvez seja essa a missão de nosso tempo: encontrar o equilíbrio entre a necessidade de responder às novas formas de criminalidade digital e a obrigação de preservar os valores democráticos.
Não se trata de negar a expansão, mas de controlá-la. De aceitar que o Direito Penal precisa se atualizar, mas sem abrir mão daquilo que o torna legítimo. O devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório não são formalidades antiquadas; são bússolas em meio à tempestade digital.
Ao final, o que está em jogo não é apenas a eficácia do sistema penal, mas a própria identidade da sociedade que queremos ser. Se aceitarmos que a pressa da punição justifica a erosão das garantias, estaremos sacrificando a democracia no altar da eficiência.
Se, ao contrário, insistirmos que cada acusado merece defesa, cada prova merece exame, cada decisão merece fundamentação, então poderemos dizer que, mesmo diante do caos, permanecemos fiéis ao Estado de Direito.
E é isso que a história da expansão do Direito Penal nos ensina: que cada novo momento de ampliação traz consigo tanto promessas quanto riscos. A sociedade digital é apenas o mais recente capítulo dessa história. O futuro dirá se seremos capazes de equilibrar a chama.
[1] Víctor Minervino Quintiere Advogado Criminalista. Doutor e Mestre em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa -IDP. Procurador Geral Adjunto da Associação Nacional da Advocacia Criminal – ANACRIM. Membro consultor da Comissão de estudo de Direito Penal do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Professor da Faculdade de Ciências Jurídicas – FAJS do Centro Universitário de Brasília – UniCEUB de Direito Penal e Processo Penal.Professor do programa de pós-graduação em Direito Penal do Centro Universitário de Brasília-DF (UniCEUB)Foi Research Fellow na Universitá degli studi Roma TRE – Itália.Atualmente é sócio no escritório Bruno Espiñeira Lemos Quintiere Advogados.Professor convidado do programa de pós-graduação da Escola Baiana de Direito em Direito Penal.Membro do Instituto dos Advogados do Distrito Federal – IADF desde 2018. Membro do Instituto dos Advogados do Brasil – IAB desde 2024. Foi professor universitário no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa -IDP e na Faculdade Planalto – IESPLAN. Foi Membro das Comissões de Assuntos Constitucionais (CAC) e de Ciências Criminais da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional do Distrito Federal – OAB/DF entre os anos de 2016 a 2018. Foi Consultor jurídico do programa Plenário em Pauta, da rádio justiça, entre os anos de 2017 a 2019. Foi vice-presidente da comissão de reformas criminais da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional do Distrito Federal – OAB/DF no triênio 2019/2021.