A Droga Da Obediência

ritalina

Créditos: Leandromartinez – Obra do próprio, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=2629146

A permanência da Sociedade Disciplinar no ambiente escolar

As formações históricas assinalam de onde saímos, o que nos cerca, aquilo
que estamos em vias de romper para encontrar novas relações que nos expressem”.

DELEUZE, Giles. Conversações. 1992:131.

Atualmente, o Brasil ocupa a segunda colocação entre os maiores consumidores de metilfenidatos. O metilfenidato, cujo apelido é ‘droga da obediência’, é uma droga largamente utilizada em crianças diagnosticadas como portadoras do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).

Atrás apenas dos Estados Unidos, consumimos, anualmente, cerca de 2 milhões de caixas deste medicamento. Mesmo com números tão expressivos a recomendação de tal substância não é consensual entre os especialistas no assunto, sobretudo, por causar efeitos colaterais que envolvem desde cefaleias e insônias a alucinações e surtos psicóticos que podem levar ao suicídio.

Infelizmente, sua larga aceitação e utilização não se associa apenas a questões médicas, uma vez que, em muitos casos, os sintomas do TDAH se devem, sobretudo, a comportamentos considerados inadequados, especialmente, associados a agitação excessiva e ao baixo rendimento escolar e diagnosticadas, na maioria das vezes, por um questionário padrão que não contempla as individualidades.

Tal fato nos remete a uma discussão mais ampla, associada ao funcionamento das escolas, suas estruturas de controle e, principalmente, de que forma os jovens do século XXI se comportam em um ambiente pensado e estruturado entre os séculos XIX e XX.

A escola e suas estruturas de controle

A escola, da mesma forma que outras instituições, representa uma tecnologia, um dispositivo, uma ferramenta voltada para um fim específico. A escola, a prisão, o hospício e a fábrica são instituições criadas em um mesmo cenário social, as sociedades disciplinares. Neste momento vigorou a visão de que era preciso disciplinar os indivíduos, humanizando o animal de nossa espécie e o convertendo em um cidadão ordeiro e respeitador das leis.

A escola assumiu a função de integrar os novos indivíduos a sociedade. Não se tratava de uma instituição voltada apenas para transmitir conhecimentos úteis a economia, mas adestrar os indivíduos ao sistema de leis e normas vigentes. Ensinava-se a pensar e agir do modo considerado correto. Não sem propósito que se adotou o hábito de enviar as crianças em tenras idades para as escolas. A intenção não é transmitir conhecimento, mas habituá-las a permanecerem tranquilas e a cumprirem prontamente o que lhes é ordenado. Portanto, trata-se de um longo processo de condicionamento, que vai sendo imposto aos indivíduos desde o seu nascimento.

Para o cidadão contemporâneo não ter sido instruído desde a primeira infância representa um grave problema, pois o mesmo não tem incorporado a disciplina, o que o faz ser comparado com um selvagem, com um bárbaro, uma vez que consumada a falha na criança, seria irremediável, pois se formaria um adulto indisciplinado e não respeitador de leis e normas sociais.

O mesmo pensamento vigora com as crianças extremamente agitadas e de baixo rendimento. Ao não se submeterem a disciplina escolar ou ao apresentarem um rendimento considerado abaixo do ideal, passam a constituir um problema, uma vez que colocam em avaliação o valor de todo o sistema escolar que passa a ser questionado quanto a sua função primordial, a de introjetar a disciplina.

Escola Estadual Pedro Álvares Cabral. Alunos em sala de aula.

Créditos: Alessandra Coelho/PMRJ

Razões para a crescente utilização da droga

Não é muito difícil imaginarmos que, de maneira crescente, a escola tem se tornado obsoleta, expressando uma gradual incompatibilidade com os corpos e as subjetividades existentes. Há uma divergência de época, um desajuste coletivo entre os colégios e seus alunos, que se confirma e se reforça cotidianamente na experiência de milhões de crianças e jovens em todo o Brasil.

O uso indiscriminado do metilfenidato envolve, principalmente, uma inadequação a estes ambientes confinados, a padrões sociais impostos e aos conflitos derivados da inadequação do ser e do estar no mundo. A criança sofre por causa da sociedade, é uma vítima de um padrão comportamental que lhe é imposto e que, gradualmente, tem se mostrado inadequado ao século XXI. Incentivamos as crianças a serem ativas e ligadas ao mundo. Contudo, no ambiente escolar esperamos que elas façam apenas uma coisa de cada vez, não questionem processos que não fazem sentido e a medidas, muitas vezes, carregadas de autoritarismos. Procuramos crianças criativas, porém, ordeiras e disciplinadas.

Estamos vivenciando uma transição entre modos de ser e estar no mundo, os quais são muito incompatíveis com as escolas tradicionais e com as diversas tecnologias adscritas à linhagem escolar. As novas subjetividades que florescem manifestam sua flagrante desconformidade com tais ferramentas, ao passo que se encaixam alegremente com outros artefatos. É comum que existam crianças diagnosticadas como TDAH, que apresentam baixo rendimento escolar, mas que se destacam em atividades realizadas em outros ambientes.

A perda de eficácia no funcionamento das engrenagens disciplinares é um dos fatores para a medicamentação excessiva dos jovens e crianças. Em consonância com esse declínio, perdem seu valor as figuras investidas do poder disciplinar, como por exemplo, os pais e os professores, cujas definições, atributos e poderes se transformaram amplamente nos últimos tempos. Tal desarranjo leva a conflitos cotidianos e, em muitos casos, a utilização da droga da obediência como solução.

Volta às aulas

Créditos: Gustavo Gargioni/Especial

Por uma escola que não se apoie na obediência

O aumento do número de prescrições reflete sem dúvida um aumento do conhecimento sobre a doença, mas também levanta o alerta sobre o uso indevido da substância. A falta de consenso na recomendação de tal medicamento se deve, sobretudo, aos seus efeitos colaterais. Apesar da medicação ser importante em alguns casos, diagnósticos rápidos e o tratamento medicamentoso tem se tornado a solução mais fácil para a inadequação da escola em lidar com novas dinâmicas de comportamentos. É mais fácil rotular, excluir e dopar os jovens, do que buscar e propor um novo arranjo para os ambientes escolares.

Frente aos novos atores, as antigas estruturas disciplinares buscam resistir as mudanças. São anunciadas, constantemente, reformas e novas formas de gerenciar os espaços de confinamento. No entanto, as mudanças são inevitáveis. A crescente utilização dos metilfenidatos e a propalada inadequação de alguns jovens ao ambiente escolar representam sintomas da crise institucional que a escola vive, da inadequação deste dispositivo aos novos tempos e prenunciam novos arranjos sociais.

Atualmente, não é mais preciso estar em uma sala de aula ou sob a supervisão de um professor para se adquirir conhecimento. A ideia de que apenas os especialistas detêm o conhecimento, o saber a ser ensinado, não responde mais aos anseios e necessidades de formação dos indivíduos. Os saberes estão amplamente difundidos no espaço das cidades, nas redes virtuais e na convivência cotidiana. Basta, portanto, sabermos conectar essa vastidão de saberes. Tal fato não reduz a importância da escola, mas para que ela continue existindo é preciso que os muros, que transformam estes espaços em estruturas de confinamento e de disciplina, sejam derrubados. Sem muros, uma escola se abre para a vida e a vida é múltipla e repleta de individualidades. As escolas precisam a aprender a lidar com as individualidades e não buscar mais a formatação dos sujeitos.

 

Referências Bibliográficas

AUGUSTO, Acácio. Escola, uso de drogas e Violência. In: Revista Verve. São Paulo, no 19, 2011, pp. 117-133.
DELEUZE, Giles. Post-scriptum Sobre as Sociedades de Controle. In: Conversações, 1972 – 1990. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. 229p.
FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: Curso no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008-a. 572p.
______________ A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008-b. 236p.
______________ Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1987. 262p.
SIBILIA, Paula. Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro: Contraponto. 2012. 222p.

 

Leonardo MarinoLeonardo Freire Marino é Articulista do Estado de Direito – Mestre e Doutor em Geografia. Professor Adjunto da UERJ  e Pesquisador do Grupo intitulado Geografia Brasileira: História e Política, localizado no Instituto de Geografia desta mesma Universidade. Tem experiência em diversos níveis de ensino e linhas de pesquisa, merecendo destaque os estudos que envolvem temas ligados as dinâmicas de ordenamento territorial urbano, os conflitos sociais emanados da violência e a promoção de Direitos Humanos.
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