Coluna Direito à Cidade
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Direito aos pedestres
A expressão “cidade caminhável”, presente no título deste artigo, é homônima à obra do urbanista norte-americano Jeff Speck e resume uma das novas tendências do pensamento urbanístico ocidental. Segundo ela, as cidades caminháveis são mais amigáveis com o pedestre e, por isso, capazes de induzir a redução do uso de veículos poluidores e produzir maiores benefícios sistêmicos à qualidade de vida no território urbanizado, nas dimensões econômica, social, política e, principalmente, de saúde pública.
Seu conteúdo não está restrito a boas calçadas e mecanismos de controle de velocidade de veículos automotores nas vias de tráfego. A ideia de cidades caminháveis abrange aspectos tangíveis e intangíveis, que vão da inteligência e eficiência dos sistemas de transporte coletivo e da adequada distribuição de moradias ao sentido de pertencimento no espaço urbano.
Cidades caminháveis, por isso, devem dispor de ampla oferta e variedade de modais de transporte, articulados de maneira a oferecer múltiplas possibilidades de composição pelos usuários. Percorrer os trajetos diários combinando o uso de ônibus, bicicleta e as calçadas, a pé, por exemplo, deve ser estimulado não só como discurso edulcorado, mas viabilizado mediante o uso da tecnologia de informação, como apps para smartphones e monitores de horários em tempo real.
Como fazer funcionar
A ideia é sedutora, tanto quanto uma série de outras que surgem com frequência na universidade e nos think-tanks em matéria de cidades. O desafio, porém, é claro: como colocá-las de pé, principalmente no Brasil.
Há dois pontos em xeque e não é lícito negligenciar nenhum deles.
O primeiro é de ordem cultural. Pouco ou nada adianta arquitetos, urbanistas e planejadores urbanos desenvolverem projetos inovadores e com propósitos revolucionários se eles não motivam a adesão das pessoas. É fantasiosa a simplicidade das ideias em matéria de cidade: não é porque elas são acessíveis aos interessados na pauta urbana que seus propósitos são de fácil assimilação pelas pessoas.
Essa fantasia, de um modo geral, não deixa de ser uma reedição daquilo que predomina no pensamento urbanístico desde muito. A titularidade da emancipação da humanidade foi objeto de disputa por praticamente todas as áreas do pensamento influenciadas pelo racionalismo iluminista. Brasília, a capital modernista de Niemeyer e Lúcio Costa, por exemplo, não deixou de ser a tentativa de instituir um novo projeto de nação a partir do projeto arquitetônico e urbanístico, como se cidades fossem a única forma de transformar pessoas.
O segundo é de natureza jurídica. Programas e projetos urbanos são, geralmente, matéria de política pública, cujo protagonista é o Poder Executivo. Sua elaboração demandaria, em primeiro lugar, decisão política e, em segundo lugar, capital técnico capacitado. E hoje a decisão política é difusa, por vezes esquizofrênica e pouco propensa a discutir modelos de qualificação urbana, ou, ao menos, maneiras de fazer modelos diferentes interagirem corretamente.
Em muitos casos, é necessário atualizar legislação sobre o uso e a ocupação do solo urbano e, também, criar leis que regulem novas situações jurídicas advindas do uso da tecnologia. Aqui, o problema é ainda maior, porque falta aos legisladores, representantes eleitos pelo povo, uma compreensão adequada de que a cidade não pode ser uma colcha de retalhos de modelos urbanos. E também diálogo com os novos modelos.
Conclusão
Todos concordam que cidades caminháveis são melhores, mas qual o estatuto jurídico das calçadas? Que políticas públicas estimulam seu uso por pessoas com mobilidade reduzida? Qual a percepção dos proprietários dos imóveis lindeiros sobre sua importância?
Desatar esses nós é o desafio que está posto. E ele impõe o engajamento de todas as áreas do conhecimento humano aderentes à temática urbana, pois todas elas são necessárias para assegurar resultado prático desse entrelaçamento: a garantia do direito à cidade.