O que nossos olhos veem quando olhamos as águas? Estado (Socioambiental e Democrático) de Direito em xeque

Veyzon Campos Muniz [1]

 

A vida de Janie Mae é dramaticamente atingida pela força da natureza, o que se expressa com uma atormentadora descrição: “As pessoas viram as águas vindo. Era uma parede de água, um muro de água. Não era apenas a água do rio, era a água do lago furioso, vindo para destruir tudo. As pessoas corriam e as águas vinham. A parede de água varreu as casas, os animais e as pessoas, como se fossem brinquedos. A água tinha cor de barro e um som horrível, como de um trovão”. A narrativa da protagonista de Seus Olhos Viam Deus (Their Eyes Were Watching God, 1937), concebida por Zora Neale Hurston, estadunidense expoente de uma literatura marcada por sua constituição ontológica (mulher, negra e periférica), trouxe às letras o que os cerca de 2.398.255 de gaúchos afetados pelas enchentes de maio de 2024 viveram em suas realidades.

As tragédias climáticas, na literatura e na vida, como a ocorrida no Rio Grande do Sul, colocam em xeque a concepção de desenvolvimento sustentável e os seus impactos, distribuídos de modo extremamente desigual, materializam a noção de racismo ambiental. A desigualdade de como os danos e os riscos ambientais são distribuídos, afetando de forma desproporcional populações em situação de vulnerabilidade, em verdade, submerge o próprio Estado de Direito.

A Declaração das Nações Unidas sobre o meio ambiente humano, de 1972, afirmou, de modo precursor, uma concepção de desenvolvimento enfocada no protagonismo humano e na indispensabilidade da sustentabilidade, ao definir um processo de asseguração de direitos de modo a garantir a existência da civilização no presente e no futuro. O documento expressamente afirma que “o homem é ao mesmo tempo obra e construtor do meio ambiente que o cerca, o qual lhe dá sustento material e lhe oferece oportunidade para desenvolver-se intelectual, moral, social e espiritualmente”.

Fato é que, embora, o zeitgeist naquele momento apontasse para um ambientalismo global, a problemática das mudanças climáticas não estava no centro dos debates. Poluição, manejo adequado de recursos naturais e combate à degradação eram pautas prioritárias.

Se o foco da época eram as violações ambientais visíveis e imediatas, a consciência sobre o não-visto logo ganhou destaque. A partir dos anos 1980, o conceito de desenvolvimento sustentável como “processo de mudança no qual a exploração dos recursos, o direcionamento dos investimentos, a orientação do desenvolvimento tecnológico e a mudança institucional estão em harmonia e reforçam o atual e futuro potencial para satisfazer as aspirações e necessidades humanas” foi consolidado, nos termos do Relatório Brundtland, de 1987. E, posteriormente, com a criação da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre mudança do clima, de 1992, o tema tornou-se central às negociações globais sobre o meio ambiente, incluindo documentos posteriores como o Protocolo de Kyoto e o Acordo de Paris.

Com efeito, se no tabuleiro do direito ao desenvolvimento, o seu conjunto de peças, técnicas jurídicas e políticas, poderia ser movimentado à sua efetividade, porém o que se viu foi o oposto. A racionalidade que colocou o desenvolvimento sustentável no campo dos direitos humanos, correspondendo a um princípio a ser realizado com o objeto comum de desenvolvimento humano e proteção ambiental, de um lado, possibilitou a identificação de projeções de seu impacto destinadas a determinadas coletividades e ao Estado como um todo. De outro, todavia, passou a sofrer questionamentos e com o negacionismo promovido por grupos privilegiados economicamente e essencialmente desprovidos de empatia sustentável.

Nos anos que se seguiram até chegarmos ao presente Estado da Arte (de terror), estabeleceu-se uma polarização entre quem defende que o meio ambiente se submeta aos seus interesses privados e quem segue defendendo um meio ambiente humano, comprometido com à eliminação de ataques à natureza e à redução de desigualdades estruturais.

Em 2015, a Agenda 2030 tentou instrumentalizar o planejamento estratégico e a execução resolutiva de políticas públicas nos Estados-membros nas Nações Unidas, fixando: a) uma estratégia-matriz principal: “se queremos um mundo melhor, precisamos começar por nossas unidades de vida”, o que se se convencionou chamar de estratégia local-global, pelo qual se deve atuar na formação de agentes locais de desenvolvimento sustentável; b) cinco grandes áreas (os nominados cinco “Ps” da sustentabilidade): pessoas (metas de protagonismo de ações humanas), prosperidade (metas de crescimento e equidade econômicos), planeta (metas de erradicação de danos ambientais e de consciência ecológica), paz (metas de construções institucionais sociáveis e não-violentas) e parcerias (metas de cooperação e de responsabilização); c) que questões comportamentais são fundamentais para a constituição de estilos de vida sustentável (com destaque à saúde mental) e de educação (contínua e permanente) para operações sustentáveis (sem impactos ambientais, voltadas a impactos econômicos positivos e enfocadas em impactos sociais); d) a explicitação de foco e objetivos, meios de implementação, modos de construção, direcionamentos de atuação e instrumentos de monitoramento.

Entretanto, já no ano seguinte, o Dicionário Oxford elegeu como palavra de 2016 para a língua inglesa o termo pós-verdade (post-truth). O substantivo cunhado pelo dramaturgo sérvio Steve Tesich “denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos às crenças pessoais”. O “negar as mudanças climáticas” tornou-se a pós-verdade da nossa década e ganhou grande importância no debate político, sobretudo com a ascensão da extrema-direita no mundo. A ignorância política (que submete comumente o campo jurídico) frente às causas cientificamente comprovadas e às consequências dramaticamente vivenciadas corrobora a diabólica criação (e aceitação pública) de uma Era pós-direitos humanos.

A rejeição aos direitos humanos e a crescente tolerância a violações ambientais vai de encontro à vocação do Estado de Direito como garantidor de bem-estar de maneira ampla e intertemporal, e também de modo específico para grupos vulnerabilizados. Essa profusão de ideias irracionais e insustentáveis “diferenciam, ou tem o efeito de diferenciar, indivíduos ou grupos com base na raça ou cor, e que os coloca em desvantagem ou os submete a riscos ambientais desiguais”, tal como pontuou Benjamin F. Chavis Jr., em 1982, quando diretor executivo da Comissão para Justiça Racial da Igreja Unida de Cristo (Commission for Racial Justice, United Church of Christ). É assim que o racismo ambiental, sinal explícito do fim do Estado de Direito, me manifesta e demonstra como grupos já vulneráveis estruturalmente são os primeiros e os mais severamente atingidos por problemas ambientais, como eventos climáticos extremos. Ele expõe as fragilidades de um Estado que, ao invés de proteger e promover direitos humanos a todos os cidadãos, perpetua desigualdades ao concentrar os riscos ambientais nas periferias e margens, longe dos redutos de poder.

Pesquisa do Datafolha, divulgada em junho de 2024, fez um levantamento focal e confirmou que os impactos das enchentes no Rio Grande do Sul atingiram de forma desproporcional a população mais pobre, negra e com menor escolaridade. Explicitou-se: 47% das famílias com renda de até dois salários-mínimos, 52% das pessoas pretas residentes nos municípios afetados, e 46% de pessoas com nível de escolaridade de Ensino Fundamental relataram prejuízos significativos com a tragédia — dados expressivamente superiores aos apurados junto a outros segmentos da população.

A sustentabilidade se dilui quando o racismo ambiental emerge. Ela, meio de concretização de direitos humanos, trata-se de um modo de pensar e repensar valores e comportamentos cotidianos com foco na geração de uma cultura voltada à qualidade de vida e do ambiente em que se vive, à valorização da cultura, da diversidade e da inclusão, à sensatez econômica e à tomada de decisões cooperativas. O desenvolvimento sustentável, por sua vez, é a forma pela qual se trabalha para que direitos humanos sejam efetivos, um processo de diagnóstico de necessidades presentes com a observância e intervenções que não comprometam a capacidade das gerações futuras também atenderem às suas necessidades. Tal trabalho exige a superação das desigualdades e a entrega efetiva de justiça ambiental e racial.

Como já manifestado em oportunidades pretéritas: “não há conquistas, sem lutas; não há história, sem memória; não há existência, sem resistência; e não há dignidade, sem respeito”. É a luta pela preservação da natureza e pelo meio ambiente equilibrado que assegurará o direito ao futuro. É a memória das tragédias climáticas que permitirá a mudança de curso da história. É resistência de pessoas negras e periféricas que denunciará a perversão de projetos jurídico-políticos para um desenvolvimento excludente. É o real respeito ao Estado Socioambiental e Democrático de Direito que entregará a dignidade que se perde nas águas das enchentes.

Por conseguinte, retomando as palavras de Hurston: “Eles pareciam estar olhando para a escuridão, mas seus olhos viam Deus”. Ao olharmos para as águas em que nossos direitos mais fundamentais afundam, precisamos encontrar força e sentido para um verdadeiro Estado de Direito, afirmando assim uma Era pró-direitos humanos.

 

[1] Doutorando em Direito Público no Instituto Jurídico da Universidade de Coimbra. Mestre e Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Especialista em Direito Público pela Universidade de Caxias do Sul, em Direito Tributário pela Universidade Paulista, e em Direitos Humanos e Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz. Membro Honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros. Oficial de Justiça Estadual.

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