
Por Laura Berquó
Ainda no início da leitura da obra de Judith Butler, intitulada Quadros de Guerra: Quando a Vida é Passível de Luto?, já se colocam as seguintes questões:
- Existe um direito à vida? Como, se toda vida é perecível e vulnerável? Quem determina a existência de uma vida, como no caso das discussões sobre aborto? Células-tronco são células vivas. Teriam mais utilidade ou validade que um embrião?
- Todas as vidas são vulneráveis. Mas somente algumas são vulnerabilizadas por critérios sociais, econômicos etc. Por isso, nem todas as vidas são “choradas”, são “enlutadas”. Ao se negar a natureza de “vida”, elas deixam de existir para o todo.
- O adormecimento da esquerda quanto à utilização das pautas minoritárias — e Butler cita a pauta feminista — para justificar a biopolítica sobre corpos determinados.
A autora menciona o exemplo da utilização da pauta identitária feminista para justificar a perseguição a muçulmanos. De fato, ao observarmos o discurso contra povos — a exemplo dos palestinos e de outros cuja maioria professa a religião islâmica —, notamos que discursos identitários ligados à pauta feminista e LGBT são instrumentalizados nesse sentido, como se daí pudesse haver uma legitimação das mortes. Quais mortes? Justamente aquelas vidas vulnerabilizadas que não podem ser objeto de luto.
As vidas que devem ser choradas, quando perdidas, são determinadas a partir de critérios políticos e ideológicos, e não pelo ponto de vista correto: toda vida merece proteção, porque toda vida é vulnerável, passível de morrer. Porém, certas situações colocam algumas em condição de maior vulnerabilidade.
Se a extrema-direita não chora a morte de milhares de palestinos em Gaza — utilizando a pauta identitária feminista e LGBT, por exemplo, para legitimar o discurso contra a existência desse povo —, a extrema-esquerda, que na prática se mostra antissemita ao tentar se legitimar na luta contra o colonialismo, também não se comoveu com a morte e o estupro de israelenses em 07/10/2023, quando crianças foram sacrificadas de forma cruel e mulheres estupradas em público. É o político, são as conveniências políticas, que dirão quando vidas palestinas e israelenses devem ser choradas, enlutadas.
E no Brasil? Não vou retomar a abordagem sobre a instrumentalização das pautas identitárias pelo STF enquanto desmonta os direitos sociais — sem precedentes, diga-se de passagem. Temos outro exemplo, ainda com referência ao STF: como uma pessoa leiga vai provar a eficácia de um remédio contra o câncer, por exemplo, para que tenha respeitados seus direitos fundamentais à vida e à saúde? Se há judicialização, é porque já houve a lesão de um direito pelo Estado, que falhou no fornecimento pelo SUS. E a pessoa doente e leiga terá que provar a eficácia científica de uma medicação, inclusive já aprovada pela ANVISA, caso não esteja na lista do SUS. Enquanto isso, pessoas definham.
As pautas identitárias são constantemente utilizadas pela extrema-direita e pelo neoliberalismo para justificar e legitimar a invisibilidade de vidas que deveriam ser enlutadas, consideradas perdidas.
Vou prosseguir na leitura de Butler e tentar compreender por que, mesmo com a adoção correta de pautas identitárias — como a que denuncia a necropolítica contra a população negra —, o Estado não entrega políticas públicas eficientes. Com exceção das políticas afirmativas para cotas, como estão as políticas para o segundo teste do pezinho? E o tratamento de pessoas afrodescendentes com traço ou anemia falciforme? E as políticas para lidar com problemas de saúde com maior incidência nessa população, como as questões específicas da saúde da mulher negra?
Muitas vidas, por decisões políticas, são invisibilizadas e, por “não existirem”, não são passíveis de luto. Quando incômodas, utilizam-se pautas identitárias ou discursos para legitimar suas mortes.
Laura Berquó
Advogada e Professora Universitária (UFPB).
Mestre em Ciências Jurídicas.
Ex-Conselheira Estadual de Direitos Humanos.
Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros.
Membro da ABMCJ-Paraíba.