A realidade brasileira carrega inúmeras discrepâncias com o texto constitucional. Podemos apontar algumas delas como pobreza extrema, condições de vida precárias, déficit educacional, pessoas em situação de rua, violência das mais variadas, orçamentos “paralelos”, dentre outros. Compreender algumas ineficácias atinentes a esses âmbitos requer conhecimento e compreensão, em especial, da Ciência Política.
Isso porque são os expoentes do pensamento social e político brasileiro que identificam a atuação das forças políticas e sociais que repercutem na condução e na própria criação do Estado brasileiro. Oportunamente, registra-se que a história do pensamento político e social brasileiro tem estado em constante construção e desconstrução pela Ciência Política brasileira. No entanto, falar do pensamento político e social brasileiro remete, de modo inevitável, a Raymundo Faoro, em Existe um pensamento político brasileiro? [1]
A partir desse importante ensaio, entende-se o pensamento político como um saber informulado, como “atividade que se tem em mente, não como práxis” [2], sendo a história do pensamento político “a arena das idéias, um confronto de paradigmas abstratos (…)”[3]. Nesse sentido, o pensamento político não se confunde com filosofia política, ideologia ou atividade política, mas é bem verdade que “está dentro da experiência política, incorporado à ação, fixando-se em muitas abreviaturas, em corpos teóricos, em instituições e leis” [4]. Portanto o pensamento político se espelha nas instituições do Estado, no modo de conduzi-lo e na própria produção legislativa e aplicação do Direito – na efetivação constitucional em termos democráticos.
Nesse sentido, a compreensão do pensamento político se faz necessária para compreender a ineficácia (ou seletividade) constitucional, tendo em conta que a validade da lei e “sua eficácia dependem de como atue a práxis e não do catálogo de normas obrigatórias”. [5] Portanto é na atuação política (como expressão do pensamento político) que se encontra o viés central da questão da inefetividade. A ciência do Direito não é capaz de explicar, sozinha, o plano da ineficácia constitucional, até porque, “eventual contradição entre a regra e a conduta rompe-se privilegiando a conduta: nela está o pensamento político real, embora a contradição intelectual nada tenha a ver com a má-fé”[6].
Portanto, quando prevalece a conduta contraditória diante da regra legal, é preciso compreender a conduta, que é manifestação de um pensamento político real. É só a partir de sua compreensão, que se apresenta aqui como um bloqueio de efetivação constitucional porque dissonante, é que se pode tentar lançar luzes a problemáticas tão importantes e caras ao Direito Constitucional, como a efetivação plena da Constituição. Por consequência, o primeiro caminho da mudança e do aprimoramento é, antes de tudo, a compreensão real do problema.
Ainda sobre o pensamento político brasileiro, Faoro demarca a relação entre o pensamento e a cultura nacional, ao afirmar que “Se há um pensamento político brasileiro, há um quadro cultural autônomo, moldado sobre uma realidade social capaz de gerá-lo ou de com ele se soldar”. [7]
A partir de tal afirmativa, é verdade que o pensamento político brasileiro é, na sua origem, o pensamento político português [8], de raízes medievais. Em especial, o pensamento político brasileiro, nesse primeiro momento da história, conforme afirma o próprio autor, foi suplantado pelo Estado patrimonialista português, em que permanece seus traços e influências até os dias atuais. No entanto, a responder se existe um pensamento político propriamente brasileiro, com os pés fincados no presente, entende-se e responde-se de forma afirmativa.
Nesse sentido, compreende haver um quadro cultural autônomo, moldado, ao longo da história brasileira, a partir de suas próprias instituições sociais e aspectos, como a escravidão; a miscigenação; a imensidão geográfica do território; o desenvolvimento industrial tardio, logo, consequentemente, uma sociedade, durante muito tempo, predominantemente agrária; dentre outros.
A partir dessas instituições e características sociais brasileiras é que se desenvolveu um pensamento político brasileiro. A exemplo, o modo de vida predominantemente rural, consequência da industrialização tardia, somada à herança recente da escravidão (que produziu riquezas, grandes proprietários de terras e severa exclusão social) e o modelo representativo da Velha República (1889-1930), fez prosperar, a partir dessa estrutura agrária, o que denominou-se coronelismo: “um compromisso, uma troca de proveitos entre poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente senhores de terras” [9].
Tal estrutura social expressa um pensamento político que invade as estruturas estatais e permeia a política nacional, consubstanciando-se num jogo de cooptação, imposição e pressão, envolvendo uma relação entre coronéis, em âmbitos locais (municipais), governadores e presidentes. Tal prática ainda é representativa da realidade nos tempos atuais nos interiores do país, não mais propriamente como um sistema, é verdade, mas como resquícios de tal poder e manutenção dessas condições agrárias.
Portanto as peculiaridades brasileiras desenvolveram um pensamento político brasileiro e um modo de atuar das forças políticas que se encontram reverberadas nas estruturas estatais. E é preciso demarcá-las a partir da análise, como mencionado, de expoentes dessa expressão do pensamento social e político brasileiro.
A propósito, registra-se que, no Brasil, o estudo do pensamento político brasileiro surge apenas no início do século XX, a partir do desenvolvimento da sociologia e da antropologia no Brasil. Em especial, a partir do grande embate entre mundo europeu colonizador e América colonizada, o aspecto social e cultural se sobreveio, evidentemente, sobre a questão política. Isso justifica José de Alencar, Joaquim Nabuco, José Bonifácio de Andrada e Silva, Euclides da Cunha, Lima Barreto, Frei Vicente do Salvador, Machado de Assis, Bernardo Pereira de Vasconcelos (Visconde de Uruguai), dentre outros, destacarem-se no estudo do pensamento político brasileiro, pois é a partir da análise e sobrelevo do social que se compreendia e que se extrai o pensamento político brasileiro nesses primeiros séculos da história.
Raymundo Faoro mesmo afirma que em certos momentos, o pensamento político se expressa melhor na novela do que no discurso político, mais na poesia do que no panfleto de circunstância. Repele as especializações, expandindo-se em todas as manifestações culturais, ainda que se afirme o congelamento ideológico e o enciclopedismo filosófico. [10]
Nesse sentido, o estudo do pensamento político brasileiro se perfaz, em grande parte, através de análises, antes de tudo, sociais, de modo que se extrai através daqueles que se dedicaram ao estudo das questões sociais brasileiras. Em especial, aqueles que pensavam as questões brasileiras nos anos da colonização até o Estado Novo, o pensavam pelo seu aspecto social. [11]
A identificação de tais pensamentos ao longo dos períodos da história do Brasil, demonstram as linhas de obstrução de distribuição de direitos, poder e riquezas no país, que expressa uma inconcretude constitucional, em especial se considerada a Constituição de 1988, que propaga um valor normativo fortemente democrático e garantidor de uma cidadania brasileira. São esses obstáculos: a violência, histórica, do Estado brasileiro; as conciliações, expressão da dialética entre ruptura e continuidade; o patrimonialismo, impondo também extrema dificuldade do poder público transpor o poder e interesses privados; a pessoalidade; a cordialidade; a exclusão social e a construção de um Estado a partir de um povo ideal. O Brasil, como sendo um país de vários contrastes, em especial, um contraste normativo e fático, de pensamento teórico e práxis.
Não se pretende sustentar uma retórica pessimista e desconstruidora das expectativas e anseios normatizadores e ideológicos do Estado e da Constituição brasileira. Apenas se compreende importante lançar luzes aos verdadeiros bloqueios para estabelecer uma democracia de fato no Brasil, que perpassa pela distribuição de direitos, de poder e riquezas, logo, bloqueios da própria efetivação constitucional.
Compreende-se que a doutrina do Direito Constitucional desempenha bem seu papel no Brasil. Mas é preciso lançar luzes ao principal problema constitucional, que é a sua implementação e perpassa, portanto, pelo estudo do pensamento político brasileiro e a atuação política, baixo suas estruturas, para concretizar o plano constitucional. A partir de tais análises é que se pode, verdadeiramente, refletir e medir quais são as reais chances de se implementar os mais altos e caros valores constitucionais, de se implementar, de fato, uma democracia no Brasil.
[1] FAORO, Raymundo. Existe um Pensamento Político Brasileiro? In COMPARATO, Fábio Konder. (Org.) e prefácio. A República Inacabada. São Paulo, Globo, 2007.
[2] FAORO, Raymundo. Existe um Pensamento Político Brasileiro? In COMPARATO, Fábio Konder. (Org.) e prefácio. A República Inacabada. São Paulo, Globo, 2007, p. 36.
[3] FAORO, Raymundo. Existe um Pensamento Político Brasileiro? In COMPARATO, Fábio Konder. (Org.) e prefácio. A República Inacabada. São Paulo, Globo, 2007, p. 37.
[4] FAORO, Raymundo. Existe um Pensamento Político Brasileiro? In COMPARATO, Fábio Konder. (Org.) e prefácio. A República Inacabada. São Paulo, Globo, 2007, p. 38.
[5] FAORO, Raymundo. Existe um Pensamento Político Brasileiro? In COMPARATO, Fábio Konder. (Org.) e prefácio. A República Inacabada. São Paulo, Globo, 2007, p. 38.
[6] FAORO, Raymundo. Existe um Pensamento Político Brasileiro? In COMPARATO, Fábio Konder. (Org.) e prefácio. A República Inacabada. São Paulo, Globo, 2007, p. 39.
[7] FAORO, Raymundo. Existe um Pensamento Político Brasileiro? In COMPARATO, Fábio Konder. (Org.) e prefácio. A República Inacabada. São Paulo, Globo, 2007, p. 29.
[8] De igual modo, em termos literários, Antônio Cândido faz importante destaque do início da história brasileira com Portugal, revelando, por assim dizer, que a literatura brasileira nos tempos coloniais era extensão, por assim dizer, da literatura portuguesa, veja: “Ora, quando falamos em servilismo à tradição clássica, ou em imitação estrangeira, devemos considerar que a literatura colonial era um aspecto da literatura portuguesa, da qual não pode ser destacada: o cenário americano serviria para lhe dar sabor exótico, nunca para dar autonomia, pois o cenário não basta s não corresponder à visão do mundo, ao sentimento especial que transforma a natureza física numa vivência – e a vivência neoclássica em relação à natureza física tendia a imprimir-lhe, qualquer que ela fosse, uma impessoalidade que se obtinha pelo desprezo do detalhe em prol da lei. (p.68).
[9] LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto: o município e o regime representativo no Brasil. 7 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 44.
[10] FAORO, Raymundo. Existe um Pensamento Político Brasileiro? In COMPARATO, Fábio Konder. (Org.) e prefácio. A República Inacabada. São Paulo, Globo, 2007, p. 41.
[11]Diferentemente como ocorrera na Europa o estudo das questões propriamente políticas se desenvolveram no início da idade moderna, com o surgimento dos Estados nacionais. A exemplo, Maquiavel (1469-1527), em O Príncipe, desenvolve uma análise lógica do poder, uma teoria do poder e posteriormente tantos outros, como Jean Bodin (1530-1596), Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704), Rousseau (1712-1778), Adam Smith (1723-1790). Nos Estados Unidos, destaca-se James Madison (1751-1836), Alexander Hamilton (1755-1804), John Jay (1745-1829), citados amplamente neste trabalho, dentre outros.