Renata Malta Vilas-Bôas, articulista do Jornal Estado de Direito
Renata Malta Vilas-Bôas
Em nossa história encontramos momentos em que apenas a filiação biológica era relevante, sendo que o aspecto socioafetivo nem era levado em consideração.
Contudo, quando com o passar do tempo, percebendo a importância dos relacionamentos afetivos, e vendo que em diversas situações fáticas, o relacionamento afetivo era mais importante do que a referência biológica começamos um ciclo em que passo a ser considerado o período de desbiologização do direito de família. Ou seja, nem todas as relações paternas filiais decorria do aspecto biológico.
Ao perceber a importância dos relacionamentos afetivos e vendo que esses relacionamentos podiam ter a mesmas características de pais e filhos, surge o movimento em prol do reconhecimento da filiação socioafetiva.
Com isso, os tribunais têm recebido diversas demandas de reconhecimento de filiação socioafetiva, e com isso apresentamos o julgado do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que nos traz a seguinte ementa:
EMENTA: MATERNIDADE SOCIOAFETITVA – AÇÃO DECLARATÓRIA CUMULADA COM PETIÇÃO DE HERANÇA –– FOTOGRAFIAS RETRATAM OS AUTORES EM COMPANHIA DO GENITOR E DA MÃE BIOLÓGICA DA RÉ – TESTEMUNHAS REVELAMZELO, CUIDADO E CARINHO RECÍPROCOS TANTO NOS 15 ANOS QUE DUROU O CASAMENTO DO GENITOR, QUANTO POSTERIORMENTE – INTELIGÊNCIA DA REGRA DO ART. 1.593 DO CC – ENUNCIADOS 103, 256 E 519 DO CEJ – PRECEDENTES – SENTENÇA CONFIRMADA – RECURSO DESPROVIDO Cuida-se de apelação interposta em relação à r. sentença de fls. 363/367, que julgou procedente o pedido, declarou que E.E.B.S. é mãe dos autores, determinou a inscrição desse estado nos assentos de nascimento deles, sem a retirada do nome da mãe biológica, e condenou os réus nas custas, despesas processuais e a pagar honorários de advogado, fixados por equidade em R$ 3.000,00. Em síntese, sustentam os vencidos que não há provas da relação socioafetiva que teria havido entre eles e a mãe; o pai, com quem E.B.S. foi casada, chegou a comentar que a esposa não queria filhos dele; após a separação do casal, os apelados não mais a procuraram, tudo, enfim, a justificar a reforma do julgado (fls. 370/380). Contrarrazões às fls. 385/398, com preliminares de intempestividade e de falta de preparo, repelidas pela decisão de fls. 418/419, que recebeu o recurso em ambos os efeitos. Por fim, ambas as partes se opuseram ao julgamento virtual (fls. 413/416). É o relatório.
1.- SÍNTESE DA CONTROVÉRSIA Discute-se se a mãe biológica da apelante, que foi casada com o pai dos apelados, foi mãe socioafetiva deles e se este relacionamento perdurou mesmo após a separação do casal.
2.- DAS PROVAS Nascidos em 14 de março de 1968, 28 de outubro de 1970 e 07 de abril de 1973, respectivamente, os autores, ora apelados, são filhos de E.S. e de A.N.S., falecida em 05 de janeiro de 1975 (fls. 20). Em 27 de novembro de 1973, E.S., pai dos apelados, e E.E.L.B. contraíram núpcias e com ela permaneceu casado até meados de 1991, quando se separaram. As fotos que instruem a inicial retratam não só o relacionamento afetuoso que E. manteve com os apelados, mas também o carinho que lhes dedicava, pois contêm anotações feitas de próprio punho por ela sobre qual era a festividade ou o evento fotografado e até mesmo a respeito de uma ou outra ocorrência curiosa, como, por exemplo, na primeira comunhão de E., ocorrida próximo do aniversário de M., em que esta última também quis apagar a velinha (fls. 23), ou na primeira comunhão e aniversário da mais velha, quando ela quis tirar a roupa branca, porque estava quente (fls. 26).
Na de fls. 29 há referências tanto sobre “minha filha M. e meu filho E.”, assim como nas de fls. 31, 33 e 35 quanto aos amigos dos apelados (fls. 33 e 35), a revelar que os conhecia pelos nomes. Ao que tudo indica, esse relacionamento estreito se manteve mesmo depois que E. se separou do pai dos apelados, como se vê das fotografias de fls. 38/40, que retratam eventos que ocorreram no ano de 1996 e também na comemoração do aniversário de um dos “netos”. Nesse sentido foi o depoimento de M.C.N., amiga de infância de M. (fls. 220) e aqueles prestados pela síndica e por dois funcionários do prédio em que E. residiu até falecer, todos unânimes em dizer da frequência com que eles a visitavam, bem como do modo afetuoso como se referiam uns aos outros (fls. 275/299). É sintomático também que, quando E. passou mal, foi socorrida não por A.C.A., como sugeriu a apelante, mas pelos apelados, segundo V.L.A.V. (fls. 278), mesmo porque ficou suficientemente esclarecido até mesmo pelas declarações prestadas pelo sobrinho de E. que ele se limitava a fazer compras para a tia, que às vezes deixava no elevador do prédio onde ela morava e, noutras ocasiões, entregava-lhe pessoalmente, tudo dependendo do estado de espírito de E. (fls. 198/235).
Seja, pois, pelas fotografias, seja pelos depoimentos das testemunhas, conclui-se que ficou provado que E. não apenas ajudou a criar os apelados — que contavam 08, 06 e 03 anos por ocasião do casamento do pai com E. –, como também manteve com eles, noras, genro e filhos relacionamento afetuoso, chamando os apelados de filhos e sendo chamados de mãe por eles.
3.- DO DIREITO
Consoante o disposto no art. 1.593 do CC, além do parentesco natural ou civil, por adoção ou consanguinidade, existem aqueles de “outra origem”, o que, segundo a doutrina, “abre espaço ao reconhecimento da paternidade desbiologizada ou socioafetiva, em que, embora não existam elos de sangue, há laços de afetividade que a sociedade reconhece tão ou mais importante que o vínculo consanguíneo” (cf. WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO e REGINA BEATRIZ TAVARES DA SILVA. Curso de direito civil direito de família. 40ª ed., São Paulo: ed. Saraiva, 2010, vol. 2, p. 420). PAULO LÔBO, a seu turno, ensina que paternidade socioafetiva “revela-se pela convivência familiar, pelo efetivo cumprimento pelos pais dos deveres de guarda, educação e sustento do filho, pelo relacionamento afetivo, enfim, pelo comportamento que adotam outros pais e filhos na comunidade em que vivem. De modo geral, a doutrina identifica o estado de filiação quanto há tractatus (comportamento dos parentes aparentes: a pessoa é tratada pelos pais ostensivamente como filha, e esta trata aqueles como seus pais), nomem (a pessoa porta o nome de família dos pais) e fama (imagem social ou reputação: a pessoa é reconhecida como filha pela família e pela comunidade; ou as autoridades assim a consideram)” (cf. Direito civil famílias. 4ª ed., São Paulo: ed. Saraiva, 2011, p. 237). No dizer de MARIA BERENICE DIAS, “A filiação pode resultar da posse do estado de filho e constitui modalidade de parentesco civil de ‘outra origem’, isto é, de origem afetiva (CC 1.593)” (cf. Manual de direito das famílias. 4ª ed. revista e atualizada, São Paulo: ed. RT, 2007, n. 19.9, p. 334). As Jornadas de Direito Civil, promovidas pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, editaram os Enunciados 103, que reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil, entre os quais “o vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho”, assim como o Enunciado 256, segundo o qual “a posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil”, e o Enunciado 519, que estabelece que “o reconhecimento judicial do vínculo de parentesco em virtude de socioafetividade deve ocorrer a partir da relação entre pais(s) e filho(s), com base na posse do estado de filho, para que produza efeitos pessoais e patrimoniais” (cf. MILTON PAULO DE CARVALHO FILHO. Código civil comentado doutrina e jurisprudência. Coord. Min. Cezar Peluso, 12ª ed., Barueri: ed. Manole, 2018, p. 1.689). A jurisprudência do STJ, em especial da C. 3ª Turma, vem entendendo que “A filiação socioafetiva encontra amparo na cláusula geral da tutela da personalidade humana, que salvaguarda a filiação como elemento fundamental na formação da identidade e definição da personalidade da criança” (REsp 450.566, rel. Minª. Nancy Andrighi), e a prevalência da paternidade ou maternidade socioafetiva sobre a biológica, sobretudo “nos casos em que, sem nenhum vínculo biológico, os pais criam uma criança por escolha própria, destinando-lhe todo amor, ternura e cuidados inerentes à relação pai-filho” (REsp 1.401.719, rel. Minª. Nancy Andrighi). No mesmo sentido é a orientação deste E. TJSP e de outros Tribunais de Justiça (TJMT, Emb. Infr. 118476/2013, rel. Desª. Cleuci Terezinha Chagas; TJSP, 3ª Câm. Dir. Priv., Ap. 5.734.344.000, rel. Des. Donegá Morandini, j. 10.03.2009; TJSP, 8ª Câm. Dir. Priv., Ap. 505.057-4/6-00, rel. Des. Salles Rossi, j. 27.03.2008). Sendo assim, a r. sentença prolatada pela MMª juíza CRISTINA ESCHER merece ser confirmada por seus próprios e bem lançados fundamentos.
4.- DOS HONORÁRIOS RECURSAIS Tendo em vista o insucesso do recurso, devem os honorários do patrono dos apelados ser majorados para R$ 4.000,00 (CPC, art. 85, § 11), com a ressalva de que a apelante é beneficiária da assistência judiciária (CPC, art. 98, § 3º).
5.- CONCLUSÃO Daí por que se nega provimento ao recurso.
*Renata Malta Vilas-Bôas é Articulista do Estado de Direito, advogada devidamente inscrita na OAB/DF no. 11.695. Sócia-fundadora do escritório de advocacia Vilas-Bôas & Spencer Bruno Advocacia e Assessoria Jurídica, Professora universitária. Professora na ESA OAB/DF; Mestre em Direito pela UPFE, Conselheira Consultiva da ALACH – Academia Latino-Americana de Ciências Humanas; Acadêmica Imortal da ALACH – Academia Latino-Americana de Ciências Humanas; Integrante da Rete Internazionale di Eccelenza Legale. Secretária-Geral da Rede Internacional de Excelência Jurídica – Seção Rio de Janeiro – RJ; Colaboradora da Rádio Justiça; Ex-presidente da Comissão de Direito das Famílias da Associação Brasileira de Advogados – ABA; Presidente da Comissão Acadêmica do IBDFAM/DF – Instituto Brasileiro de Direito das Familias – seção Distrito Federal; Autora de diversas obras jurídicas. |
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