Carina Barbosa Gouvêa[1]
Pedro H. Villas Bôas Castelo Branco[2]
As eleições estão sendo esvaziadas pela descrença propagada por líderes autocratas e populistas autoritários que ininterruptamente põem em xeque o resultado das urnas. Por meio do facebook, instagram, wahtsaap, TikTok, youtube disseminam, em larga escala, pelo impulsionamento a desinformação e fake news ao declararem, sem nenhuma prova ou evidência, que as urnas não são auditáveis, são passíveis fraude, alvo de ataques de hackers, objeto de complô dos inimigos disfarçados de adversários políticos.
Populistas são autocratas eleitos pelo sistema eleitoral contra o qual desferem seus ataques, explicitando sua rejeição à competição eleitoral, ao debate de ideias e projetos político-partidários. A insistência em fabricar conspirações para perseguir adversários políticos e os converter em inimigos do “povo” faz parte do método do qual se servem para minar a corrida eleitoral e justificar o uso da violência política contra a diferença de opiniões e visões de mundo. Populismos representam um certo tipo de estratégia, discurso, mobilização e ação política através de movimentos formais e informais, diretos e indiretos por um líder carismático e que conduz e representa uma força antistablishment repousando suas crenças em instituições morais e éticas com a finalidade de consolidar um regime populista sob o manto da democracia e da soberania popular (GOUVÊA, CASTELO BRANCO, 2020). No entanto, alguns elementos aproximam os líderes autoritários e populistas autoritários: o discurso extremista; a rotinização do carisma; a violência política e a rejeição do resultado das eleições.
O contexto brasileiro atual ressalta a natureza altamente contestada da política liberal. O Presidente populista autoritário Jair Bolsonaro tem intensificado seu discurso em relação a “rejeição do resultado das eleições” com o intuito de atingir as eleições de 2022. Crítico extremista, em relação as urnas eletrônicas tem reafirmado de forma contundente, de acordo com as notícias veiculadas, que houve fraudes nas eleições de 2018 e, poderá consequentemente, haver nas de 2022. Preliminarmente, um ponto merece consideração: Bolsonaro não apresentou provas ou impugnou o resultado das eleições da qual sagrou-se vencedor.
De acordo com Efraim, Bolsonaro e seus filhos disputaram, ao todo, 20 eleições. Em 19 ocasiões, foram eleitos para os cargos que tentaram, desta forma a família tem 95% de aproveitamento em eleições com urnas eletrônicas que nunca foram contestadas.
No dia 29 de julho de 2021, Bolsonaro havia apresentado, durante transmissão ao vivo nas redes sociais, uma mistura de fake news, vídeos descontextualizados que circulam há anos na internet e análises enviesadas sobre números oficiais da apuração dos votos para atacar o atual sistema. Ao mesmo tempo, admitiu não ter provas, mas sim “indícios” de irregularidades. Em outro discurso, realizado no dia 01 de agosto de 2021, e, novamente sem apresentar provas de fraude nas eleições e urnas eletrônicas, Bolsonaro esbravejou que “se preciso for“, fará um convite para que o “povo de São Paulo” se pronuncie sobre mudanças no sistema de votação.
A ideia do voto impresso foi materializada na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 135/2019, de autoria da deputada Bia Kicis (PSL-DF), aliada de Bolsonaro. A proposta pretendeu acrescentar o § 12 ao art. 14, da Constituição Federal, dispondo que, “na votação e apuração de eleições, plebiscitos e referendos, seja obrigatória a expedição de cédulas físicas, conferíveis pelo eleitor, a serem depositadas em urnas indevassáveis, para fins de auditoria”. A PEC foi derrubada pela Câmara dos Deputados.
Em 16 de fevereiro de 2022, Bolsonaro voltou a atacar os Ministros Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Alexandre de Moraes e afirmou em entrevista a rádio Jovem Pan, que os ministros “se comportam como adolescentes” e insinuou que eles estão querendo eleger Lula para a presidência.No dia 18 de julho de 2022, Bolsonaro reuniu embaixadores e voltou a atacar os ministros do STF, Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Alexandre de Moraes, e afirmou novamente haver fraude nas urnas eletrônicas nas últimas eleições do qual sagrou-se vencedor, admitindo, portanto, não ter provas de que houve fraude nas eleições. Em todas estas situações está caracterizado o discurso extremista, a rotinização do carisma e a rejeição do resultado das eleições que é característica comum de líderes autoritários e populistas autoritários.
A atuação do TSE e do STF no contexto político populista brasileiro pretendeu desempenhar um importante papel na proteção da democracia sob ameaça de retrocesso? E por que os líderes populistas e autoritários rejeitam os resultados das eleições e procuram uma via alternativa com base em falsas evidências?
Os acontecimentos que envolveram a conduta impugnável de Bolsonaro incitaram respostas imediatas em nome das salvaguardas institucionais brasileira. Em discurso proferido no dia 02 de agosto de 2021, o Ministro Presidente do Tribunal Superior Eleitoral afirmou “que as democracias contemporâneas são feitas de votos, são feitas do respeito aos direitos fundamentais e são feitas de debate público de qualidade. A ameaça à realização de eleições é uma conduta antidemocrática. Suprimir direitos fundamentais, incluindo os de natureza ambiental, é uma conduta antidemocrática. Conspurcar o debate público com desinformação, mentiras, ódio e teorias conspiratórias é conduta antidemocrática“. Em outro ponto destacou que “há coisas erradas acontecendo no país e todos nós precisamos estar atentos. Precisamos das instituições e precisamos da sociedade civil, ambas bem alertas. Nós já superamos os ciclos do atraso institucional, mas há retardatários que gostariam de voltar ao passado. parte dessas estratégias inclui o ataque às instituições.” Na sequência do discurso, Barroso afirmou que uma das manifestações do autoritarismo no mundo contemporâneo é o “ataque às instituições, inclusive às instituições eleitorais.” Para ele, essas narrativas, fundadas na mentira e em teorias conspiratórias, destinam-se precisamente a pavimentar o caminho da quebra da legalidade constitucional.
A Decisão tomada pelo pleno do TSE foi de abrir inquérito administrativo por suspeita de abuso do poder econômico, corrupção ou fraude, abuso do poder político ou uso indevido dos meios de comunicação social, uso da máquina administrativa e propaganda eleitoral antecipada. A abertura do inquérito administrativo foi pedida pelo Ministro Luis Felipe Salomão, Corregedor-geral da Justiça Eleitoral, e tramitará em caráter sigiloso que visa apurar “os relatos e declarações, sem comprovação, de fraudes no sistema eletrônico de votação, com potenciais ataques à democracia e à legitimidade das eleições. Além disso, o Ministro Barroso pediu a inclusão de Bolsonaro no Inquérito 4.781 em tramitação sob sigilo no Supremo Tribunal Federal, instaurado pela Portaria nº 69, de 14 de março de 2019, que tem o propósito de investigar, considerando a existência de notícias fraudulentes (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi ou injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal que são frutos destes movimentos.
No Brasil, a impressão do voto, por unanimidade já foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Esta modalidade estava prevista na minirreforma eleitoral de 2015, mas em 2018 foi suspensa de forma liminar. O entendimento que prevaleceu foi o voto de Gilmar Mendes segundo o qual a medida “viola o sigilo e a liberdade do voto”.
Fischer (2016) faz um alerta interessante à dimensão: as linguagens incendiárias destes líderes populistas tendem a enfraquecer os valores democráticos para ganho pessoal e acaba por ecoar a linguagem a dos ditadores que tomaram o poder pela força. Para Levitsky, rejeitar o resultado das eleições e tentar minar a sua legitimidade sem evidências, recusando-se, a exemplo, a aceitar os resultados eleitorais e sugerindo medidas antidemocráticas, como o cancelamento das eleições, tendem a causar a morte da democracia. Em democracias fracas os líderes políticos têm usado a mesma linguagem para erodir a fé popular na democracia. Ao colocar a culpa de sua provável perda na fraude eleitoral ele está dizendo a seus partidários, não apenas que os resultados são falhos, mais também que o processo democrático foi tomado por forças obscuras e que o estão usando como ferramenta de opressão (FISCHER, 2016).
Para Linz (1978), não são as características substantivas que representam a degradação, mas o contexto político em que ele surge, o condicionamento do regime e as alternativas oferecidas pela existência de um ou mais oposições injustas e desleais que acaba por desencadear o processo de colapso.
Segundo Sheri Bernam (1988), esta estratégia utilizada pelo líder populista ou autoritário é dupla: primeiro, ele apresenta a democracia como tão falha que um líder forte é necessário para restaurar a ordem; e, segundo, para gerar no sentimento popular um estado de desordem que o líder populista possa usar a seu favor. Estas técnicas enfraquecem as estruturas da continuidade democrática; correm o risco de transformar as premissas democráticas fundamentais; de transferência pacífica de poder; corroem a legitimidade das eleições e a fé popular nos processos eleitorais.
Outro fator que merece consideração é que as acusações de fraude eleitoral podem levam à violência política que impulsiona antagonismos violentos antissistema, das milícias e a polarização da política extremista.
Argumentos necrófilos sentenciadores da morte da democracia somente servem à amplificação do terrorismo eleitoral, que provoca a paralisia institucional, o que inexiste, uma vez que há reação a toda tentativa de ruptura institucional. O presidente Bolsonaro, no dia 18 de julho, tentou colocar novamente em xeque o sistema eleitoral brasileiro ao se reunir com embaixadores, apresentando uma série de desinformações e fake news e atacando frontalmente os Ministros do STF afirmando ter tido fraude nas urnas eletrônicas nas últimas eleições e incitando a comunidade internacional sobre um “iminente risco de ruptura eleitoral no país”. A democracia brasileira vem se mostrando resiliente ao tentar impedir a legitimação do movimento populista de Bolsonaro por meio dos efeitos backlashing das instituições democráticas, sociedade civil e organizações não governamentais (GOUVÊA; CASTELO BRANCO, 2020). Esta ação antidemocrática provocou um efeito de reação em cadeia de várias entidades que se manifestaram em defesa da Justiça Eleitoral brasileira esboçando a plena confiança ao sistema eletrônico de votação e a convicção plena de que os resultados das eleições são seguros, verdadeiros e confiáveis.
É impertinente e conduz à despolitização sentenciar o fim do funcionamento das instituições que muito pelo contrário vem atuando com coragem e determinação como é o caso do STF e do TSE, de diversos partidos, governadores e prefeitos. A reação institucional e de segmentos da sociedade civil aos contínuos ataques e ameaças às instituições democráticas vem justamente permitindo a continuidade do Estado Democrático de Direito no Brasil. As reações se dão às custas do sofrimento de ameaças das milícias digitais e grupos violentos com ofensivas presenciais. O medo não deve antecipar o pior, o que se deveria fazer é saudar as instituições porque boa parte delas vem funcionando graças à coragem e comprometimento com a democracia, que está passando por uma crise grave, mas isso de modo alguma justifica a necrofilia de declarar seu sepultamento.
As eleições ocorrerão, haverão tentativas de golpes mas haverá, como tem havido, muita reação institucional e de diversos segmentos da sociedade civil que muito provavelmente vão evitar qualquer consumação de golpe. O momento é de apoio incondicional às instituições e setores da sociedade que nos mantém ainda dentro da democracia.
Ataques ao sistema político em geral sem evidências, aos partidos e políticos de forma particular, difamação sistemática dos políticos dos sistemas, obstrução constante do processo parlamentar, apoio a propostas apresentadas por outros partidos presumidamente desleais com fins desestabilizadores são todas ações típicas de uma oposição desleal. São os estilos, a intensidade e o uso da má-fé destas condutas que marcam a distinção entre oposição leal e desleal. E este é o sinal de alerta que precisa ser acesso em democracias consolidadas: a necessidade de conter de forma imediata as forças políticas desleais porque podem mover-se na direção do autoritarismo.
REFERÊNCIAS
BERMAN, Sheri. The social democratic moment. Harvard University Press, 1998.
CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2018.
DUSO, Giuseppe. La rappresentanza politica: genesi e crisi del concetto. FrancoAngeli, 2003.
FISCHER, Max. Donald Trump’s Threat to Reject Election Results Alarms Scholars. Pub 23 de out 2016. The New York Times.
GOUVÊA, Carina Barbosa; CASTELO BRANCO, Pedro Hermílio Villas Bôas. Populismos. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020.
HOBBES, Thomas; MISSNER, Marshall. Thomas Hobbes: Leviathan (Longman Library of Primary Sources in Philosophy). Routledge, 2016
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2018.
LINZ, Juan J. et al. The breakdown of democratic regimes. Johns Hopkins University Press, 1978, p.55.
[1] Professora permanente do Programa de Pós Graduação em Direito Mestrado e Doutorado da Universidade Federal de Pernambuco (PPGD/UFPE); Pós Doutora em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Pernambuco (PPGD/UFPE); Doutora e Mestre em Direito pela UNESA; Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa “Teoria da Separação dos Poderes e Crise do Sistema Democrático Brasileiro vinculado ao PPGD/UFPE; Vice Líder do Grupo de Pesquisa Direito Internacional e Direitos Humanos (UFPE), CNPq; Advogada.
[2]Professor Associado do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ). Professor do Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade Veiga de Almeida (PPGD-UVA). Doutor em Ciência Política (IUPERJ) Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional (Puc-Rio). Coordenador do Laboratório de Estudos de Defesa e Segurança Pública da (LEPDESP-UERJ); Advogado.