O Judiciário entre a Modernidade e a Contemporaneidade

                                                                                                                                                              Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

                                                         APOSTOLOVA,  Bistra Stefanova. Poder Judiciário: do Moderno ao Contemporâneo. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. 208 

 

Em Homenagem a RUBENS CASARA E A MÁRCIA TIBURI, pela dignidade na defesa da Justiça e da Democracia

 

 

           Assim como a sociedade, também as instituições passam por uma crise de fundamentos na transição entre a modernidade e o que vem sendo chamado de pós-modernidade. O Direito e o sistema judiciário sofrem, numa tal conjuntura, das mesmas incertezas e já não servem de referencia os paradigmas que os constituíram.

            Da contraposição entre o direito oficialmente instituído e formalmente vigente e a normatividade emergente das relações sociais; da distinção entre a norma abstrata e fria das regras que regem os comportamentos e as normas concretas aplicadas pelos juízes; têm-se acentuado a necessidade de se compreender novas condições sociais e novas condições teóricas aptas a reorientar o conhecimento do direito e a atuação daqueles que o operam.

            Entre os elementos que determinam essas novas condições sociais e teóricas se destacam a emergência de novos movimentos sociais e dos novos sujeitos de direito neles constituídos, a configuração de novos conflitos e a designação de um efetivo pluralismo jurídico gerando formas inéditas de sociabilidades.

            Como dimensão epistemológica, essa crise articula elementos de representação social acerca dos problemas que a determinam; de conhecimento do Direito e suas formas sociais de produção; de autopercepção no imaginário dos juristas acerca do significado exemplar das práticas sociais e profissionais que organizam a sua ação. E porque nesse processo se demarca uma distância entre o conhecimento do Direito e a realidade social, política e moral que o produz, abre-se uma perspectiva de crítica para poder-se edificar pontes por meio das quais transitem os elementos novos de apreensão e de compreensão do Direito, mediante um trabalho consciente apto a afastar o jurista das pré-noções ideológicas que moldaram uma concepção jurídica de mundo insuficiente para dar conta da complexidade e das mutações das realidades sociais, políticas e morais numa conjuntura de transição paradigmática.

            Pode dizer-se, assim, que tanto no plano do conhecimento do Direito quanto no plano de formação do jurista, se verifica uma espécie de recusa no que se poderia chamar mal-estar da cultura jurídica, transformada em caleidoscópio de ilusões e de crenças e que acabaram por levar a um estiolamento dos modelos e paradigmas de racionalidades jurídicas fundadas sobre certezas e sobre a pseudo-segurança adquiridas ao preço do imobilismo científico e da eliminação do espírito crítico na formação intelectual do jurista e do operador do Direito.

 

Foto: Agência Brasil

 

 

            Dessas questões trata o livro de Bistra Stefanova Apostolova: Poder Judiciário: do moderno ao contemporâneo. Ele situa a crise do sistema judicial dentro da crise da modernidade, analisando sociológica e filosoficamente os pressupostos da cultura jurídica que constitui o pensar e o agir dos juízes. Recorrendo a Nietzsche e a Weber, Bistra resgata do pensamento desses autores projeções para a constituição de modelos não-modernos de organização da vida em sociedade e de estruturação de personalidades, requisito para o advento de novas subjetividades em condições de demarcar um novo perfil de instituição judiciária e de impulsionar a transformação do imaginário e do protagonismo dos juízes.

            A autora parte da ideia do não-esgotamento das energias utópicas, identificando experiências e esforços organizados de magistrados que buscam saídas para a crise em que mergulha o sistema judiciário. Ela extrai da análise dessas experiências condições sociais e condições teóricas que orientam para uma busca de renovação da função social da magistratura e da construção de um perfil  pós-moderno, consciente da crise e do seu sentido de superação: Questionar os imperativos da cultura jurídica liberal, que se constitui como fator impeditivo de sua transformação em mediadores qualificados das novas formas de conflituosidade.

            O livro de Bistra Stefanova Apostolova foge, claramente, do lugar comum que tem sido o espaço do debate sobre a crise do judiciário e da magistratura. É certo que o trabalho focaliza o tema da função social dos juízes no Estado moderno e no Estado contemporâneo, porém, sem perder de vista que a revitalização do Poder Judiciário pressupõe compreendê-lo como agente político ativo na construção de uma nova ordem legal adequada aos tempos pós-modernos nos quais o Direito e a Justiça são objeto de permanente luta, discussão e contextualização.

            Daí a necessidade, diz Bistra Apostolova em outro lugar (Perfil e habilidades do jurista: razão e sensibilidade. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, Notícia do Direito Brasileiro, nº 5,), de os juízes se darem conta de que prefigurar o sentido dos conflitos é a tarefa que lhes cabe e que mediá-los requer compreender o significado que eles alcançam em seu próprio tempo. Como disposição e como atitude, sem o desespero aniquilador que Tolstoi impõe ao juiz de sua narrativa (A morte de Ivan Ilich), para abrir-lhe a consciência que desnuda a sua trajetória profissional, social e familiar como “monstruosa mentira camuflando vida e morte”.

No plano das habilidades, que é o que remete mais imediatamente à constituição de perfis profissionais, a alusão a uma justiça poética quer mais designar a categoria subjetividade, como própria ao afazer do jurista para interpretar criativamente e com imaginação as relações do homem com o mundo e com o outro. É com este sentido que Martha Nussbaun fala em poesia e imaginação (Justicia Poética. La Imaginación Literaria y La Vida Publica, Editorial Andrés Bello, Barcelona/Buenos Aires/México D.F./Santiago do Chile), ou seja, para caracterizá-las como “ingrediente indispensável ao pensamento público, com condição de criar hábitos mentais que contribuam para a efetivação da igualdade social”.

Não se trata, nessa referência a uma justiça poética, o que poderia parecer à primeira vista, a uma busca de relação entre a justiça e a literatura, para por em relevo a inclinação de magistrados para o uso da linguagem artística. Não que isso deixe de ocorrer ou que se rejeite o pendor estético quando se trata de desenvolver o discurso jurídico.

Aplicadas aos juízes, essas categorias traduzem as expectativas de mediação humanística entre visão de mundo e consciência social, de modo a traduzir aquela exigência funcional já destacada por Bistra Apostolova (Perfil e Habilidades do Jurista: razão e sensibilidade): como a habilidade de ver o outro como diferente e saber colocar-se no lugar dele, e desse modo, desenvolver a capacidade de imaginar e de compreender, essencial na formação do bacharel.

Nessa categoria, que destacado perfil melhor a ilustra. Jurista, professor e escritor, o autor de Coronelismo, Enxada e Voto, Victor Nunes Leal pertence àquela estirpe que sabe exercitar a compreensão plena do ato de interpretar a realidade e proferir juízos acerca de nosso agir no mundo, rejeitando a falsa oposição entre o político e o jurídico, ao entendimento de que, para se realizar, a Justiça não deve encontrar o empecilho da lei. Victor Nunes Leal, com efeito na UnB e no Supremo Tribunal Federal, lembrei eu em homenagem ao grande magistrado e notável interprete da brasilidade levou, em significativa antecipação, o direito a andar pelas ruas porque, quando anda pelas ruas, colhe melhor a vida nos seus contrastes e se prolonga pela clarividência da observação reduzida a aresto (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. UnB homenageia Victor Nunes Leal no seu centenário. Brasília: Correio Braziliense, 17/11/14, Seção Opinião, pág. 11).

            Para Bistra Apostolova, sem cair na armadilha do ativismo judicial e em seu decisionismo judicializante da política como intervenção imprópria, prepotente e tanática fautora da monstruosa mentira que Tolstoi dramaticamente descreve e que afronta a dinâmica interdependente dos Poderes, torna-se cada vez mais difícil ser negado o caráter político, construtivo e criativo da atuação jurisdicional da magistratura, o que estimula o debate em torno das questões da responsabilidade dos juízes e do controle do judiciário, assim como do processo de formação e das formas de recrutamento dos juízes (APOSTOLOVA, Bistra Stefanova. O Poder Judiciário Brasileiro na Passagem da Modernidade para a Contemporaneidade. PINHEIRO, Pe. José Ernanne, SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, DINIS, Melillo, SAMPAIO, Plínio de Arruda. Ética, Justiça e Direito, Reflexões sobre a Reforma do Judiciário. Petrópolis: CNBB/Editora Vozes, 1996, p. 133-144).

            Para a Autora, experimentada gestora do sistema de educação jurídica, na sua qualidade de ex-gerente da Comissão de Educação Jurídica do Conselho Federal da OAB,  em que pese no campo do ensino do direito estar atento à complexidade do tema e a dificuldade de ser elaborada resposta consensual em relação à concepção de homem revelada por meio do potencial utópico que o discurso educativo contem, apto assim a servir de moldura para um direito transparente porque se assume como narrativa e se faz no espaço público do diálogo com o diferentes, no terreno da negociação aberta e da escolha consciente APOSTOLOVA, Bistra Stefanova. O Direito como Obra Literária. Observatório da Constituição e da Democracia. Brasília: Faculdade de Direito, n. 8, outubro de 2006, p. 04-05). Cuida-se necessariamente de projetar, nesse campo sensível, uma educação para a vida, que envolve o ser na sua totalidade transformando-o (APOSTOLOVA, Bistra Stefanova. Amnésia in Juris. Porto Alegre: Revista do SAJU/Serviço de Assessoria Jurídica Universitária/UFRGS, vol. 2, n. 1, dezembro de 1999, p. 89-96; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, APOSTOLOVA, Bistra Stefanova, FONSECA, Lívia Gimenes Dias da. O Direito Achado na Rua, vol. 5, Introdução Crítica ao Direito das Mulheres, 2a. edição. Brasília: Fundação Universidade de Brasília, 2015).

Trata-se, em suma, de uma chamada à cidadania, apelando ao exercício de um poder criativo dos juízes. Esta chamada à cidadania tem relação direta com a exigência de releitura da experiência democrática para o aprendizado de novas formas de convivência e de sociabilidade. A perspectiva democrática referida à Justiça não se coloca de forma diferentes. Ela é também uma experiência de recriação permanente e de renovação das instituições que resulta na determinação de novos espaços públicos e condições para o debate, negociação e formação de novos consensos. Cornelius Castoriadis (A Instituição Imaginária da Sociedade. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Paz e Terra, 1982) afirma que uma sociedade justa não é a que estabeleceu leis justas definitivamente, mas a que assegura condições para que a questão da Justiça esteja sempre aberta ao debate. Em seu livro, Bistra Stefanova Apostolova fala da práxis de juízes em defesa do não-esgotamento das energias utópicas. Uma práxis com a qual o jurista pode ainda fundar as bases de uma nova cultura e de uma nova função social, mais humanista, multidisciplinar, menos colonizada, pluralista, apta a realizar as promessas do Direito, de outro modo, promessas vazias.

 

 

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José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil , Professor Associado IV, da Universidade de Brasília e Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

 

               

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