A realidade do cárcere no Brasil em números

Rômulo de Andrade Moreira

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O Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP – apresentou, no último dia 18 de junho, o Projeto Sistema Prisional em Números, com o objetivo de conferir maior visibilidade e transparência aos dados do sistema prisional brasileiro, a partir das visitas ordinárias realizadas pelos membros do Ministério Público de todo o País.[1]

Os dados mostram que a taxa de ocupação dos presídios brasileiros é de 175%, considerado o total de 1.456 estabelecimentos penais no País. Na região Norte, por exemplo, os presídios recebem quase três vezes mais do que podem suportar. Um número que chama atenção é o de estabelecimentos em que houve mortes, tendo como período de referência março de 2017 a fevereiro de 2018. Do total de 1.456 unidades, morreram presidiários em 474 delas. O sistema mostra, ainda, que em 81 estabelecimentos houve registro interno de maus-tratos a presos praticados por servidores e em 436 presídios foi registrada lesão corporal a preso praticada por funcionários.

O levantamento também traz informações sobre os serviços prestados aos presos. Na região Nordeste, por exemplo, mais da metade (58,75%) dos estabelecimentos não dispõe de assistência médica. Por sua vez, em relação à assistência educacional, 44,64% das unidades brasileiras não a oferecem aos internos.

Outras informações que podem ser colhidas no sistema são as referentes à mulher no cárcere. São 399 presas gestantes no país, o que representa 1,18% do total. Por sua vez, o percentual de mulheres realizando trabalho interno é de 26,10%, sendo possível ver também os percentuais relativos aos trabalhos externo, voluntário e remunerado.[2]

Tais dados corroboram os números divulgados em dezembro do ano passado pelo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN [3]), segundo o qual o Brasil é o terceiro país com mais presos no mundo. De acordo com o levantamento, a população carcerária no ano de 2015 foi de 698.618, e de 726.712 em 2016. A comparação com outras nações só foi feita em 2015. Naquele ano, o Brasil (698,6 mil) ultrapassou a Rússia (646,1 mil) e só ficou abaixo de Estados Unidos (2,14 milhões) e China (1,65 milhão). Logo após o Brasil, vem a Índia, em quinto, com 419,62 mil detentos. O Marrocos tem a menor população carcerária em números absolutos: 79,37 mil.

Ainda segundo o estudo, o número de internos mais do que dobrou em relação a 2005, quando 316,4 mil pessoas estavam presas. Em 1990, começo da série histórica, a quantidade era oito vezes menor do que a de hoje: 90 mil. O Brasil é o terceiro em taxa de ocupação das cadeias (188,2%), atrás apenas de Filipinas (316%) e Peru (230,7%), e o quarto em taxa de aprisionamento por cem mil habitantes. O índice brasileiro, ainda para 2015, é de 342, menor somente do que Estados Unidos, Rússia e Tailândia.

Os estados com maior taxa de ocupação nas prisões são Amazonas, Ceará, Pernambuco, Paraná e Alagoas. O Espírito Santo tem a menor taxa, mas mesmo assim enfrenta superlotação. A pesquisa também mostrou que, a despeito de 53% da população brasileira acima de 18 anos ser negra, e 46% branca, na prisão a estatística é de 64% negros e 35% brancos.[4]

Se divididos por idade, os presos da maior fatia serão os jovens, de 18 a 24 anos: 30%. A seguir, vêm as faixas de 25 a 29 anos, com 25%; 30 a 34 anos, com 19%; e 35 a 45 anos, com os mesmos 19%. Somando-se os dois maiores percentuais: 55% dos detentos brasileiros têm de 18 a 29 anos.

Outra realidade também comprovada pela pesquisa do INFOPEN diz respeito às doenças sexualmente transmissíveis. A incidência do vírus da AIDS é 138 vezes maior do que a constatada na população geral. Em 2015, a proporção nas carceragens da doença foi de 2.189,9 casos para cem mil detentos, enquanto em geral foi de 15,8 para cem mil habitantes. Observa-se que neste aspecto, somente 52% das prisões enviaram dados ao Ministério da Justiça.

Foto: Pixabay

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Constatou-se também que os três tipos mais comuns de crimes são praticados sem violência, contra o patrimônio e os relacionados com as drogas. De 608.611 crimes tentados ou consumados no ano passado, 271.413 foram contra o patrimônio, 81.393 contra a pessoa, e 172.241 relativos às drogas.

Também ficou comprovado empiricamente que os presos têm quatro vezes mais chances de cometer suicídio do que a população brasileira total. No ano de 2015, foram anotados 5,5 suicídios para cada cem mil habitantes, ao passo que atrás das grades a taxa foi de 22,2 para cada cem mil detentos. Oitenta e oito por cento dos presos não estão envolvidos em qualquer atividade educacional, como ensino escolar e atividades complementares. Já em relação a trabalho, dentro e fora das cadeias, a fatia que fica alheia é de 85%.

Por outro lado, 40% dos presos não foram condenados. De 2000 para cá, o percentual de presos provisórios tem crescido. Os 40% atuais já foram 22% em 2003 e 35% em 2000. Os demais presos, que já foram sentenciados se dividem da seguinte maneira: 38% estão em regime fechado, 15%, em semiaberto e 6%, em regime aberto. A maior fatia identificada pelo levantamento de 2016, em relação ao tempo de pena, foi o de quatro a oito anos, com 31%. Em seguida aparece a pena de oito a 15 anos, com 23%, e de dois a quatro anos, com 16%.[5]

Estes números impressionam, traduzindo friamente uma tragédia nacional. Mostram que o cárcere ainda é concebido como prima ratio para a questão da violência e da segurança pública, quando deveria ser rigorosamente o contrário. É de Hulsman a seguinte afirmação: “Em inúmeros casos, a experiência do processo e do encarceramento produz nos condenados um estigma que pode se tornar profundo. Há estudos científicos, sérios e reiterados, mostrando que as definições legais e a rejeição social por elas produzida podem determinar a percepção do eu como realmente ‘desviante’ e, assim, levar algumas pessoas a viver conforme esta imagem, marginalmente. Vemo-nos de novo diante da constatação de que o sistema penal cria o delinquente, mas, agora, num nível muito mais inquietante e grave: o nível da interiorização pela pessoa atingida do etiquetamento legal e social.”[6]

O próprio sistema carcerário brasileiro revela o quadro social reinante neste País, pois nele estão “guardados” os excluídos de toda ordem, basicamente aqueles indivíduos banidos pelo injusto e selvagem sistema econômico no qual vivemos, cuja faceta mais odiosa é o neoliberalismo. O nosso sistema carcerário está repleto de pobres e isto não é, evidentemente, uma “mera coincidência”. Ao contrário: o sistema penal, repressivo por sua própria natureza, atinge tão-somente a classe pobre da sociedade. Sua eficácia se restringe, infelizmente, a ela. As exceções que conhecemos apenas confirmam a regra.

Isso se dá porque, via de regra, a falta de condições mínimas de vida (como, por exemplo, a falta de comida, educação, higiene, lazer), leva o homem ao desespero e ao crime. Assim, aquele que foi privado durante toda a sua vida (principalmente no seu início) dessas mínimas condições estaria mais sujeito ao cometimento do delito pelo simples fato de não haver para ele qualquer outra opção; há exceções, é verdade, porém estas, de tão poucas, apenas confirmam a regra.

De forma que esse quadro socioeconômico existente no Brasil – acrescido de uma questão seríssima que é a nossa herança escravagista -, revelador de inúmeras injustiças sociais, leva a muitos outros questionamentos, como por exemplo: para que serve o nosso sistema penal? A quem são dirigidos os sistemas repressivo e punitivo brasileiros? E o sistema penitenciário é administrado para quem? E, por fim, a segurança pública é, efetivamente, apenas um caso de polícia?

Ao longo dos anos a ineficiência da pena de prisão na tutela da segurança pública se mostrou de tal forma clara que chega a ser difícil qualquer contestação a respeito. Em nosso País, por exemplo, muitas leis penais puramente repressivas estão a todo o momento sendo sancionadas, como as leis de crimes hediondos, a prisão temporária, a criminalização do porte de arma, a lei de combate ao crime organizado, etc, sempre para satisfazer a opinião pública (previamente manipulada pelos meios de comunicação), sem que se atente para a boa técnica legislativa e, o que é pior, para a sua constitucionalidade. E, mais: o encarceramento como base para a repressão.

Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Querer, portanto, que a aplicação da pena de privação da liberdade resolva a questão da segurança pública é desconhecer as raízes da criminalidade, pois de nada adiantam leis severas, criminalização excessiva de condutas, penas mais duradouras ou mais cruéis…

A miséria econômica e cultural em que vivemos – aliada ao racismo entranhado em nossa sociedade – é, sem dúvida, a responsável por este alto índice de encarceramento existente hoje em nosso País; tal fato se mostra mais evidente (e mais chocante) quando se constata o número impressionante de crianças e adolescentes infratores que já convivem, desde cedo e lado a lado, com um sistema de vida diferenciado de qualquer parâmetro de dignidade, iniciando-se logo na marginalidade, na dependência de drogas lícitas e ilícitas, no absoluto desprezo pela vida humana (inclusive pela própria), no ódio e na revolta.

A nossa realidade carcerária é preocupante; os nossos presídios e as nossas penitenciárias, abarrotados, recebem a cada dia um sem número de indiciados, processados ou condenados, sem que se tenha a mínima estrutura para recebê-los; e há, ainda, milhares de mandados de prisão a serem cumpridos; ao invés de lugares de ressocialização do homem, tornam-se, ao contrário, fábricas de criminosos, de revoltados, de desiludidos, de desesperados; por outro lado, a volta para a sociedade (através da liberdade), ao invés de solução, muita vez, torna-se mais uma via crucis, pois são homens fisicamente libertos, porém de tal forma estigmatizados que se tornam reféns do seu próprio passado.

Como diz Loïc Wacquant: “a gestão penal da insegurança social alimenta-se de seu próprio fracasso programado.”[7] Hoje, o homem que cumpre uma pena ou de qualquer outra maneira deixa o cárcere encontra diante de si a triste realidade do desemprego, do descrédito, da desconfiança, do medo e do desprezo, restando-lhe poucas alternativas que não o acolhimento pelos seus antigos companheiros; este homem é, em verdade, um ser destinado ao retorno: retorno à fome, ao crime, ao cárcere (só não volta se morrer).

A propósito, Mathiesen avalia que “se as pessoas realmente soubessem o quão fragilmente a prisão, assim como as outras partes do sistema de controle criminal, as protegem – de fato, se elas soubessem como a prisão somente cria uma sociedade mais perigosa por produzir pessoas mais perigosas -, um clima para o desmantelamento das prisões deveria, necessariamente, começar já. Porque as pessoas, em contraste com as prisões, são racionais nesse assunto. Mas a informação fria e seca não é suficiente; a falha das prisões deveria ser ‘sentida’ em direção a um nível emocional mais profundo e, assim fazer parte de nossa definição cultural sobre a situação.[8]

Ademais, as condições atuais do cárcere fazem com que a partir da ociosidade em que vivem os detentos, estabeleça-se o que se convencionou chamar de “subcultura carcerária”, um sistema de regras próprias no qual não se respeita a vida, nem a integridade física dos companheiros, valendo intra muros a “lei do mais forte”, insusceptível, inclusive, de intervenção oficial de qualquer ordem.

Para concluir, vejamos o que escreveu Marat, no final do século XVIII: “es un error creer que se detiene el malo por el rigor de los suplicios, su imagen se desvanece bien pronto. Pero las necesidades que sin cesar atormentan a un desgraciado le persiguen por todas partes. Encuentra ocasión favorable? Pues no escucha más que esa voz importuna y sucumbe a la tentación.”[9]

 

Referências:

 

[1] http://www.cnmp.mp.br/portal/todas-as-noticias/11314-taxa-de-ocupacao-dos-presidios-brasileiros-e-de-175-mostra-relatorio-dinamico-sistema-prisional-em-numeros, acessado em 18 de junho de 2018.

[2] Confira a pesquisa completa: http://www.cnmp.mp.br/portal/relatoriosbi/sistema-prisional-em-numeros

[3] O INFOPEN é um banco de dados do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça.

[4] O INFOPEN considerou a categoria negra como a soma das categorias preta e parda.

[5] https://oglobo.globo.com/brasil/brasil-o-terceiro-pais-com-mais-presos-no-mundo-diz-levantamento-22166270, acessado em 08 de dezembro de 2017.

[6] HULSMAN, Louk, Penas Perdidas – O Sistema Penal em Questão, Niterói: Luam, 1997, p. 69.

[7] WACQUANT, Loïc, As Prisões da Miséria, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 145.

[8] MATHIESEN, Thomas, Conversações Abolicionistas – Uma Crítica do Sistema Penal e da Sociedade Punitiva, São Paulo: IBCCrim, 1997, p. 275.

[9] MARAT, Jean Paul, Plan de Legislación Criminal, Buenos Aires: Hamurabi, 2000, p. 78.

 

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Rômulo de Andrade Moreira, Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Salvador – UNIFACS.

 

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