Mutilação genital feminina: qual o caminho?

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Entenda a mutilação genital feminina

Em tempos estranhos, em que são intensamente discutidos os radicalismos e as intolerâncias de todo gênero, as práticas relacionadas à mutilação genital feminina (MGF) têm alçado algum destaque. No planeta, são quase 140 milhões de mulheres vítimas de mutilações genitais .

A MGF, pouco ou nada debatida no Brasil, não se limita a uma única modalidade de intervenção mutiladora. Ao contrário, engloba todos os procedimentos que envolvam a remoção parcial ou total dos órgãos externos ou quaisquer outros danos infligidos aos órgãos genitais femininos por motivos não médicos.

A prática, como regra, é conduzida em crianças e jovens adolescentes, fora de estabelecimentos de saúde, sem qualquer condição de higiene ou profilaxia sanitária.

Trata-se, em regra, de um ritual que envolve a “remoção parcial ou total do clitóris” (Tipo I),  a “remoção parcial ou total do clitóris e dos pequenos lábios, com ou sem excisão dos grandes lábios (Tipo II), o “estreitamento do orifício vaginal através da criação de uma membrana selante, pelo corte e aposição dos pequenos lábios e/ ou dos grandes lábios, com ou sem excisão do clitóris (Tipo III) ou “todas as outras intervenções nefastas sobre os órgãos genitais femininos por razões não médicas, por exemplo: punção / picar, perfuração, incisão / corte, escarificação e cauterização” (Tipo IV)[1].

 

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Ato de violência

Ainda que a MGF encontre baldrame axiológico em elementos culturais e religiosos, a sociedade e os organismos internacionais reprovam-na, classificando-a como um ato de violação aos direitos humanos de meninas e mulheres, refletindo a profunda inequidade entre os sexos nos países onde é praticada.

Neste sentido, a Organização das Nações Unidas (ONU) sustenta que a MGF é um ato de tortura, tratamento desumano e cruel que atenta contra a saúde, segurança e integridade física das vítimas. A Organização Mundial da Saúde (OMS) afirma tratar-se de um profundo reflexo da desigualdade entre os sexos, constituindo uma forma extrema e violenta de discriminação.

Segundo a Anistia Internacional, as mutilações não encontram qualquer fundamento de legitimação ou validade, constituindo-se em inequívoca violação de direitos humanos perpetrada nas culturas em que, em maior ou menor grau, seja admitido o controle da sexualidade e da autonomia da vontade das mulheres.

Nada obstante a reprovação do direito internacional, a literatura reconhece que a MGF decorre de práticas e rituais associados à aceitação da mulher na sociedade, como preparação e elegibilidade para o casamento. A própria OMS admite que  a mutilação ocorre por diversos motivos. No entanto, o principal fundamento seria o ajustamento da criança ou adolescente às normas sociais vigentes, em especial aquelas relacionadas ao recatamento sexual, feminilidade, respeitabilidade e maturidade.

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A ONU ressalta, contudo, que os Estados não devem invocar qualquer costume, tradição ou consideração religiosa como escusa ao não atendimento da obrigação universal de eliminação da violência contra as mulheres. Para tanto, os
Estados devem apresentar a devida diligência na investigação e punição à violência, além do estabelecimento de medidas de proteção e igualdade de gênero.

De fato, em uma perspectiva que leve em consideração os direitos humanos em jogo, a MGF não se enquadra na prerrogativa de autolimitação de posições jurídicas de direitos fundamentais, uma vez que falta às mulheres submetidas à mutilação a informação necessária para que o consentimento seja livre (na maior parte dos casos, as vítimas são crianças, induzidas por terceiros, familiares ou não, que não possuem discernimento para assentir com os riscos médicos e psicológicos e as dores relacionadas ao procedimento).

A mutilação genital não se encaixilha, com efeito, em autolimitação a direito fundamental, mas, ao reverso, representa flagrante violação à jusfundamentalidade dos direitos da mulher.

Logo, é tarefa hercúlea buscar justificativas para a MGF nas ondas do multiculturalismo, sendo certo que os direitos individuais de liberdade, resguardados pelos alicerces históricos do jusnaturalismo, não devem se curvar à violência contra a mulher, supostamente justificada em terrenos culturais, étnicos e religiosos que servem, tão somente, à coisificação feminina.

O elemento sócio cultural não pode encerrar o sacrifício ou a ponderação da liberdade do indivíduo em face de qualquer pretensão coletiva representada por atos de violência que encerre, alfim, uma dor não desejada.

 

Avanços no mundo

Assim, o controle e a futura eliminação da MGF passam pela combate universal à dor injusta, que não admite diálogo multicultural na persecução de espaços legítimos para a continuidade das mutilações. Tais espaços, como visto, nunca existirão. As estratégias de controle, no entanto, tampouco confundem-se com o puro e simples enfrentamento cultural, devendo englobar ações políticas e educacionais voltadas à gradual erradicação da mutilação genital feminina.

Com baldrame nessas premissas, o Prohibition of Female Circumcision Act (1985), do Reino Unido, foi o primeiro documento legal que expressamente condenou a MGF. A norma é dotada de uma rara extraterritorialidade, uma vez que considera típicos as mutilações praticadas fora do território britânico, contra mulheres ou crianças que possuam domicilio no Reino Unido.

Diversos outros países, nos últimos anos, também têm aprovado normas que expressamente vedam a MGF: Austrália,  Bélgica, Canadá, França, Nova Zelândia, Noruega, Suécia e Estados Unidos.OPI-3001.eps

 

As boas novas no combate à MGF vêm da África. Países como África do Sul (2000), Benin (2003) Burkina-Faso (1996), Chade (2003), Costa do Marfim (1998) Djibuti (2009), Egito (2008), Eritréia (2007), Etiópia (2004), Gana (2007), Guiné (2000), Guiné Bissau (2011), Quênia (2011), Mauritânia (2005), Níger (2003), Senegal (1999), Somália (2012), e Tanzânia (1998), Togo (1998), Uganda (2010) e Zâmbia (2011) já proibiram a MGF.

Neste ano, no dia 9 de junho, a Nigéria – país mais populoso da África – anunciou a proibição. Na semana passada (dia 24 de novembro) foi a vez da Gâmbia, país em que cerca de 76% das mulheres foram submetidas à mutilações (uma das mais altas prevalências do mundo). O presidente Yahya Jammeh declarou à imprensa que as mutilações estão proibidas e serão banidas na Gâmbia, o que a torna o 24o país africano a enfrentar a MGF.

Nada obstante, é preciso ir além. Lutar contra a MGF demanda a compreensão de seu significado social, sob pena de estigmatização das comunidades envolvidas e de recrudescimento de práticas identitárias, tais como as próprias mutilações.

O combate à MGF exige, portanto, repressão legal, educação e diálogo multicultural (e não enfrentamento cultural). Tais estratégias encontram baldrame axiológico e normativo nos direitos humanos e no reconhecimento de valores que, ainda que incompreendidos aos olhos hegemônicos, reflitam uma concepção cultural ampla das relações humanas.

Aparentemente estamos no caminho certo[2].

 

 

 

[1] Declaração conjunta para o fim da mutilação genital feminina. A declaração foi subscrita em 2008 pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), pelo Fundo das Nações Unidas para População (UNFPA), pelo Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS), pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), pela Comissão Econômica para a África (UNECA), pelo Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM), pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

[2] Para saber mais sobre o tema:

i. MARIN DOS SANTOS, Douglas Henrique. A dor como marco insuperável: aproximações possíveis entre o relativismo cultural e os Direitos Humanos na busca pela erradicação da mutilação genital feminina. Revista Brasileira de Direitos Humanos, v.3, n.12, jan./mar. 2015. p. 87-102

ii. CUNHA, Manuela Ivone. Género, cultura e justiça: A propósito dos cortes genitais femininos. Anál. Social 209 (2013, dez.).

iii. Declaração conjunta OHCHR, ONUSIDA, PNUD, UNECA, UNESCO, UNFPA, ACNUR, UNICEF, UNIFEM e OMS. Lisboa: APF, 2008. Disponível em http://www.who.int/eportuguese/publications/pt/

iv. INTERNATIONAL AMNESTY. Female Genital Mutilation/Cutting: A Fact Sheet. 2011. Disponível em www.amnestyusa.org/women/pdf/FGM_fact_sheet.pdf

v. UNICEF. Female genital mutilation/cutting: A Statistical Exploration. Nova Iorque: Unicef, 2005.

vi. WHO. Female genital mutilation. Fact Sheet nº 241, June 2000. Genebra: World Health Organization, 2000.

vii. WHO. A Factual Overview of Female Genital Mutilation. In: Progress in Sexual and Reproductive Health, nº 72. Genebra: World Health Organization, 2006a.

viii. WHO. The UNDP/UNFPA/WHO/World bank special programme of research, development and research training in human reproduction. In: Progress in Sexual and Reproductive Health, nº 72. Genebra: World Health Organization, 2006b.

ix. WHO & PAHO. Understanding and Addressing Violence Against Women: Female genital mutilation. 2012. Disponível em http://www.who.int/reproductivehealth/publications/violence/en/index.html.

 

 

tweet-200x200Douglas Henrique Marin dos Santos é Articulista do Estado de Direito – Pós-graduado em Direito das Obrigações pela Universidade Estadual Paulista e em Ciências Jurídicas pela Universidade do Porto. É mestre em Direito pela Universidade do Porto e doutor em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo. Procurador Federal em exercício no Departamento de Consultoria da Procuradoria-Geral Federal/Advocacia Geral da União.
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