Conflitos Intercontextuais e o NCPC

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A tese do Ministro Evandro Gueiros Leite

Em 1963, o Ministro Evandro Gueiros Leite defendeu uma interessante tese de livre-docência sobre conflitos intercontextuais entre normas de processo, com a possibilidade de exceção à regra de que o especial prevalece sobre o genérico (v. Evandro Gueiros Leite. Conflitos intercontextuais de processo – prevalência das normas processuais genéricas, Tese de Livre-Docência, Rio de Janeiro: Universidade do Estado da Guanabara, 1963).

Eram tempos do Código de Processo Civil de 1939, o código responsável pela unificação do processo civil no país, que era disciplinado na época através de códigos estaduais (vide CPCs de São Paulo, Bahia etc.). Com a unificação promovida pelo CPC/1939, muitos conflitos surgiram entre o código e diversas leis esparsas que tratavam de processo, daí a razão da tese defendida pelo Min. Gueiros.

Pensamento sistemático

O autor, por evidente, não negava nem pretendia nulificar o princípio da lex specialis derogat generali. Contudo, não o tinha como absoluto, advogando a necessidade de compatibilizá-lo com o que denominou de «lei de prevalência do sistema», sob pena de, em não se lhe respeitando, perder-se a unidade sistemática.

Ou seja, o autor trabalhou com a ideia de sistema, justamente o que confere ordenação e da unidade ao Direito (Claus-Wilhelm Canaris. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, 4.ª ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, § 1.º, I, p. 12, e § 2.º, II 2, pp. 77/79), que se consubstanciam em pressupostos da natureza científica do Direito (Claus-Wilhelm Canaris. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, 4.ª ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, § 1.º, I, 1, pp. 15/18; e Karl Larenz. Metodologia da ciência do Direito, 3.ª ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, VI, 1, a, p. 622).

Pontes de Miranda, fotografado por Ivan Barros.

Pontes de Miranda, fotografado por Ivan Barros.

Sendo que, no direito processual civil, tem-se, no Código de Processo Civil, o denominado centro de referência (= sistema principal) do sistema processual civil. Nesse sentido, Pontes de Miranda advertia que o Código não perdia relevância por haver leis especiais (“A existência de regras jurídicas e leis especiais, é inevitável. Não se poderia estar a pôr em dia, incessantemente, o Código. Não se pense, todavia, que, com o fato de haver processo especial, perde o Código sua importância como lei“, Francisco Cavalcanti Pontes de MirandaComentários ao código de processo civil, t. I (Arts. 1.º a 79), 2.ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1958, coments. CPC 1.º, p. 72).

Demais disso, essa tentativa de compatibilização entre sistema e microssistema (CC e CDC, v.g.) ou entre sistema e leis especiais não é estranha ao direito pátrio; ao revés, é admitida através da teoria do «diálogo das fontes», cuja aplicabilidade já foi reconhecida também no âmbito processual (“aplicação, no âmbito processual, da teoria do ‘diálogo das fontes’“, STJ, REsp 1.241.063/RJ, e, em sede de recurso repetitivo, STJ, REsp 1.184.765/PA), com o objetivo de preservação da integridade e da coerência daquele «sistema» normativo (“com efeito, consoante a Teoria do Diálogo das Fontes, as normas gerais mais benéficas supervenientes preferem à norma especial (concebida para conferir tratamento privilegiado a determinada categoria), a fim de preservar a coerência do sistema normativo“, STJ, AgRg no REsp 1196537/MG).

Necessidade de harmonia entre o Código e as leis esparsas

Justamente por isso, há de se ter alguma «harmonia principiológica» entre o Código e as leis esparsas. Assim, em alguma medida, o problema levantado pelo Ministro Gueiros ainda se coloca e é atual, agora com o advento do NCPC. Isto porque, o NCPC, ao contrário do anterior (CPC/1973), é uma lei muito mais principiológica, bastando ver que a novel codificação dedica seu primeiro capítulo precisa e justamente às denominadas «normas fundamentais do processo civil» (arts. 1.º a 12).Sendo que os «princípios e normas fundamentais» do NCPC [tais como, v.g., boa-fé e lealdade processual (art. 5.º), cooperação (art. 6.º), contraditório substancial e vedação a decisões-surpresa (arts. 9.º e 10.º), motivação efetiva (art. 489) etc.], na qualidade de centro de referência do sistema processual civil, não podem ser afastados ou apequenados pela lei especial.

Créditos: midiamax.com.br

Créditos: midiamax.com.br

Trata-se de uma «exceção» à regra de que o especial revoga o geral. Nesse sentido, a título de exemplo, a lei especial ou o regimento interno dos Tribunais que previsse a impossibilidade de sanação de vício no processo eletrônico (juntada fora dos parâmetros estipulados, v.g.), tal como o indeferimento da petição inicial e extinção do processo sem oportunidade de correção pelo autor, seria ilegal, pois «incompatível» com a principiologia («fundamental») do NCPC, que prestigia o princípio da eficiência, especialmente através da primazia do julgamento de mérito e do máximo aproveitamento processual (= instrumentalidade e sanabilidade dos atos processuais defeituosos) [a esse respeito, v., p. ex., arts. 4.º, 139 IX, 932 par. ún., 1.024 §§ 4.º e 5.º, 1.029 § 3.º].

Este é apenas um exemplo, mas que ilustra os riscos e perigos que decorrem da possibilidade de afastamento ou apequenamento das «normas fundamentais» do NCPC por lei especial, a justificar, nessas hipóteses, a exceção à regra de que especial prevalece sobre o genérico, de modo a assegurar a plena coerência e integridade «sistemática» do processo civil no Brasil.

 

12a1d1bThiago Rodovalho é Articulista do Estado de Direito – Professor-Doutor da PUC|Campinas. Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC/SP, com Pós-Doutorado no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht em Hamburgo, Alemanha. Membro do IASP, do IDP, do IBDP, do CEAPRO e do IBDFAM. Autor de diversas publicações no Brasil e no exterior. Advogado em SP.
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