A possibilidade de efetuar o desconto dos salários dos trabalhadores em greve implica, em realidade, a negação desse direito fundamental. Essa é uma premissa fundamental para qualquer discussão sobre o assunto. Greve é um fato social, arduamente arrancado do capital e positivado como direito fundamental em razão de uma história, dolorida e sangrenta, de luta organizada.
Alguns fatos pinçados da nossa história recente podem ajudar a compreender a gravidade do tema. Em 1906, quando uma greve geral mobilizou os trabalhadores em Porto Alegre e em São Paulo, a repressão policial foi intensa: muitos trabalhadores foram feridos, espancados e presos pela polícia. O mesmo ocorreu nas greves deflagradas em 1907. Naquele ano, foi aprovada a primeira lei para expulsão dos imigrantes, considerados perigosos especialmente porque traziam consigo doutrinas e pensamentos subversivos (Lei Adolfo Gordo). Em 1908, após uma greve geral que contou com o apoio do comércio, uma Circular do Centro dos Industriais de Fiação e Tecelagem de São Paulo pedia que cada indústria indicasse nome, endereço e características dos operários considerados “mentores da sua classe”, para que a polícia pudesse prendê-los, a fim de evitar a continuidade dos movimentos paredistas. Em 1917 e 1919, anos de intensa luta organizada dos trabalhadores, a violenta repressão, ao contrário de arrefecer, acirrou os ânimos, incentivando uma greve geral de 24h, que resultou em violência na Praça da Sé. Mesmo durante a Ditadura Militar, os trabalhadores, seja através das “lutas subterrâneas”, como as greves de fome em 1967 e 1969, seja mediante embate direto, seguiram resistindo. Em 1968, as greves em Osasco e Contagem mobilizaram 15 mil trabalhadores. Mais de cem greves foram registradas em 1978, e o dobro no ano seguinte. A paralisação de quatro setores da Mercedes-Benz, por aumento de salário, seguidos por trabalhadores da Ford e da Scania, em 1978, são exemplos da força que o movimento paredista adquiriu mesmo enquanto ainda vigorava o AI-5.
O forte esquema de repressão estatal, traduzido em perseguição aos “agitadores”, aumento significativo do efetivo policial e intervenção direta nas relações de trabalho, impedindo os patrões de realizarem “acordos” para conter disputas, foi a tônica da atuação estatal em relação às greves durante quase todo o Século XX. Ao contrário de aniquilar o movimento sindical, porém, a repressão tornou-o ainda mais forte e organizado.
Do mesmo modo, a política de cooptação identificada pela instauração de sindicato único, pela imposição do chamado “imposto sindical”, pela doação de terrenos aos sindicatos para construção de colônias de férias, pela concessão de bolsas de estudos para filhos de trabalhadores, pelo incentivo aos convênios de assistência médica e jurídica, a serem prestadas pelos sindicatos, pelos programas de construção de casas populares, nada disso evitou que as greves continuassem ocorrendo.
Toda essa história de organização e luta revela que a greve é um fato social que não pode ser contido pelo Estado. É por isso que, em uma atitude de sobrevivência e necessidade, a Constituição de 1988 garante aos trabalhadores o direito fundamental de greve, atribuindo-lhes a faculdade de decidir sobre a oportunidade de seu exercício e os interesses que devam por meio dele defender.
É certo que o reconhecimento da greve como direito fundamental não é suficiente para alterar a lógica do estranhamento, que faz desse fato social um constante perigo à paz do capital. Uma paz que é apenas aparente e que se sustenta, em larga medida, no acolhimento da possibilidade de resistência. Não há direito de greve, porém, se os trabalhadores que o exercem não tiverem condições de sobreviver. Por isso, negar pagamento de salários é o mesmo que coibir o direito de greve, subtrair-lhe o conteúdo. Pior que punir o exercício da greve, é garanti-lo sem as condições mínimas para o seu exercício. O STF está diante da possibilidade real de reafirmar a caminhada histórica que culminou na redação do artigo 9º da nossa Constituição. Reconhecer o direito de greve é permitir que ele seja exercido em sua plenitude. Do contrário, é melhor proibir. Ao menos, as cartas estarão na mesa.
Valdete Souto Severo – Juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região. Especialista em Processo Civil pela UNISINOS, Especialista em Direito do Trabalho, Processo do Trabalho e Direito Previdenciário pela UNISC, Master em Direito do Trabalho, Direito Sindical e Previdência Social, pela Universidade Européia de Roma – UER (Itália), Especialista em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Universidade da República do Uruguai (UDELAR), Mestre em Direitos Fundamentais pela Pontifícia Universidade Católica – PUC do RS. Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP) e RENAPEDTS – Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social. Diretora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS