Uma surpresa ambiental para Papa Francisco

UMA SURPRESA AMBIENTAL DO PAPA FRANCISCO

Édis Milaré[1]

                        O Papa Francisco, um latino-americano desassombrado, vem surpreendendo o mundo desde o primeiro dia do seu pontificado, em março de 2013. Eis que agora o Sumo Pontífice da Igreja Católica de Roma nos faz soar aos ouvidos o clamor de uma nova trombeta, a ecológica. Trata-se da Carta Encíclica “Laudato si” sobre os percalços do ecossistema do planeta Terra ao longo dos séculos XIX e XX, de maneira especial nos últimos 50 anos, ou seja, desde os inícios da sociedade industrial no Ocidente. Uma carta encíclica sempre inicia com uma expressão em latim, que lhe dá o nome; por exemplo, a Rerum Novarum de Leão XIII; no presente caso, ela é aberta com uma expressão de São Francisco de Assis no “Cantico das Criaturas” em italiano antigo (século XIII). Francisco de Assis foi declarado patrono da ecologia.

                        O texto surpreende tanto pela atualidade e precisão da linguagem quanto pelo discernimento das questões que hoje angustiam a casa comum e os seus moradores. Nenhuma das hipóteses e afirmações do documento escapa a fundamentos técnicos e científicos que respaldam esse texto duplamente franciscano. Assim, quero destacar tão somente alguns itens que sobressaem, à moda de quem escolhe algumas espigas num belo trigal maduro.

                        Francisco, desde logo, recorda o equívoco antropocêntrico do homem perante a Terra: “Crescemos a pensar que éramos seus proprietários e dominadores, autorizados a saqueá-la”. Nisso seguramente erramos já contra o princípio: “O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta; o seu ar permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos”, conforme lemos já no item 2.

                        A questão da biodiversidade vem logo a seguir e é tratada como cláusula essencial. Abusando um pouco da expressão, diríamos que ela é uma “cláusula pétrea” estabelecida pela Natureza e suas leis.

                        Mais adiante, Francisco retoma a advertência do seu antecessor Paulo VI, expressa em uma encíclica sobre a Paz (1971): a problemática ecológica pode ser considerada como crise, “consequência dramática da atividade descontrolada do ser humano” que, ao explorar irracionalmente a natureza, corre o risco de a destruir – e ele próprio virá a ser vítima dessa degradação. É o risco de uma “catástrofe ecológica” sob o efeito da explosão da civilização industrial. Isso porque “os progressos científicos mais extraordinários, as invenções técnicas mais assombrosas, o desenvolvimento econômico mais prodigioso, se não estiverem unidos a um progresso social e moral, voltam-se necessariamente contra o homem”. Esse último trecho foi extraído de um discurso do Papa Paulo VI dirigido à FAO, por ocasião do 25º aniversário daquela agência das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura.

                        Alguns aspectos maléficos das várias poluições são mencionados com precisão, relacionando-se apropriadamente suas causas e seus efeitos. Curiosamente, o Papa Francisco entra nos corredores do Eia-Rima, aborda a mitigação de impactos e acha que esses estudos devem preocupar-se mais a fundo com a biodiversidade. Importa-se com o desenvolvimento de pesquisas para entender melhor o comportamento dos ecossistemas, e chama a atenção para os vínculos e interligações entre os seus componentes. Em uma palavra, preconiza a visão holística e a análise sistêmica para se alcançar e entender melhor a teia da vida.

                        No que se refere aos recursos hídricos, o Pontífice insurge-se contra os estranhos e recentes mecanismos de privatização da água, pois não está distante o dia em que esse recurso essencial, inerente à vida, virá a ser transformado em mercadoria e barganha. Não é segredo para qualquer pessoa bem informada que a mercantilização da água vem se acelerando até mesmo sobre formas aparentemente inocentes – situação que lesa o mais elementar dos direitos humanos.

                        Impressiona o fato de Francisco enxergar a fundo as causas do efeito estufa e o espectro das mudanças climáticas, cujos efeitos já se vem antecipando. Alguns desses efeitos, textualmente, já têm criado temores bem fundamentados: desaparecimento veloz de espécies vivas, desertificação, secas e outros males que afetam o nosso cotidiano e projetam um futuro inquietador. E não é permitido esquecer que, por trás de muitos fenômenos, encontram-se “enormes interesses econômicos internacionais”.

                        Algumas passagens da Encíclica “Laudato si” entram em considerações e diretrizes mais específicas para os fiéis católicos, embora válidas também para outros cidadãos. Entretanto, o discurso da Encíclica é perfeitamente universal, de maneira que, como síntese objetiva dos males presentes e das ameaças futuras, é um texto lúcido e sensibilizador, capaz de nos levar a profundas revisões de consciência e à mudança de nossas relações com o mundo natural de que todos fazemos parte. A civilização ocidental, que se diz cristã, está em xeque, não é mais possível escondê-lo ou ignorá-lo.

[1] Procurador de Justiça aposentado. Foi criador e coordenador das Promotorias de Justiça do Meio Ambiente do Estado de São Paulo; um dos redatores da Lei 7.347/1985 (Lei da Ação Civil Pública) e Secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo. Atualmente é advogado, consultor jurídico e professor de Direito do Ambiente.

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