Participação especial de Thiago Hoshino.
“Eles têm olhos para ver, mas não enxergam”
Ezequiel, 12:2
“Biri-biri bò won lójú
Ògbèri nko mo Màrìwo”
(Trevas cobrem seus olhos.
O não-iniciado não pode conhecer
o mistério do Màrìwò)
Provérbio iorubá
Há uma semana inaugurou-se esta coluna, nem dórica, nem jônica, na forma, antes, talvez, nagô-iorubá. Das águas cruzadas de Oxum emergia um pequeno manifesto estético-político pelo direito à cidade. Por cidades menos narcísicas, mais plurívocas; menos autoritárias, mais alteritárias. Esquerdas cidades de direitos. Nessa trama, atendendo ao convite e à provocação dos amigos Wilson e Ana, coube-me dar corda e (re)puxar o fio da mesma meada.
Porque o dia de hoje, diga-se, é memorável: aniversário de 29 anos da inscrição de tombamento do Ilê Axé Iyá Nassô Oká, a quase bicentenária Casa Branca do Engenho Velho, uma das matrizes dos candomblés baianos e o primeiro templo não cristão declarado bem cultural de relevância nacional. De lá para cá, outros sete terreiros receberam igual reconhecimento, rompendo com uma cegueira histórica e com um padrão elitista, embranquecedor de construção da memória coletiva.
Mas o que tem a ver tudo isso com o direito à cidade? É que é impossível falar do povo-de-santo e de seus territórios sem enfrentar o problema da terra, palco e objeto de acirrados conflitos sociais. Em permanente disputa entre as demandas da vida e os grilhões do capital, o chão das nossas cidades é também onde se planta o axé da diáspora negra, ramificado nas inúmeras tradições da religiosidade afro-brasileira. Não por acaso, em distintas partes, denominam-se “roças” os espaços do culto, ainda quando eminentemente urbanos.
Aqui se emaranham cidades visíveis, selvas de pedra, e cidades invisíveis, florestas de símbolos, numa dinâmica que evoca e desafia, de uma só vez, a materialidade e a imaterialidade do patrimônio cultural. E os limites da nossa institucionalidade. Pois é de direitos, não de outra coisa, que se trata. Quando um terreiro é destruído ou despejado (vem à mente a demolição oficialmente chancelada do Oyá Onipo Neto, em 2008), estamos falando da carência e da fragilidade das políticas de regularização fundiária. Quando é vedado o acesso aos lugares de natureza sagrada, como rios, praias e cachoeiras (em contrariedade à eco-epistemologia do princípio Kosí Ewé, Kosí Òrisà, “sem folha, não há divindade”), deparamo-nos com a avassaladora apropriação dos bens comuns. Quando as baianas de acarajé são expulsas das praças e logradouros que sempre ocuparam (por exemplo, nas zonas de restrição exigidas pela FIFA, durante a Copa do Mundo), achamo-nos diante de conhecidas discriminações e arbitrariedades na gestão do espaço público. Em suma, cicatrizes e fronteiras da etni-cidade.
Oxalá fosse redundante recordar que tais locais de culto ancestral estão protegidos pelo art. 5o, VI da Constituição de 1988 e que o ofício das baianas de acarajé foi inventariado e registrado pelo IPHAN, em 2004, ingressando no regime de salvaguarda patrimonial. Quem dera fosse supérfluo trazer à tona o Decreto Federal 6.040/2007, a garantir às comunidades tradicionais – entre elas, os povos-de-terreiro, mas também os quilombolas, indígenas e tantos outros – o direito aos territórios (rurais como urbanos) necessários à sua reprodução cultural, social e econômica, sejam eles utilizados de modo permanente ou temporário. Infelizmente, assim como a memória é vítima das armadilhas da seletividade, o Estado e seus órgãos (ainda distantes da laicidade prometida), sofrem lá de suas amnésias crônicas, sintomáticas.
Frente a este cenário, o direito à cidade e seus/as pensadores/as são chamados/as a descolonizar seus próprios conceitos e a impulsionar o diálogo entre as lutas pela desmercantilização da produção do espaço e as lutas pela (re)conquista dos territórios tradicionais. Somos convocados/as à tarefa de quebrantar paradigmas e inverter (cosmo)visões, rumo a uma sensibilidade jurídica que parta do Sul geopolítico. Somos interpelados/as a enxergar o direito achado na rua: numa esquina de Exu, numa gameleira de Irôko, nós górdios na tessitura das cidades diaspóricas, tão fugidias a lentes não iniciadas.
Quem tem olhos de ver, que veja!
Se para o próprio Henri Lefebvre, padrinho teórico dessa empreitada, o urbano é, por excelência, o lócus do encontro, da diferença, da diversidade, como, então, negar a interculturalidade da pólis tropical? Noutras palavras: é por uma inusitada cartografia jurídica das identidades, das terras e das multipli-cidades (em suas dimensões visíveis quanto invisíveis), que transita esse conjunto de marginalizações e desigualdades espaciais. Data venia, na encruzilhada da democracia contemporânea, Xangô, deus da justiça na cosmologia afro-brasileira, precisa constantemente relembrar a Thémis, a justiça vendada da modernidade, de que há mais coisas entre o céu e a terra do que supõem seus códices legais.
Thiago Hoshino, mestre em Direito do Estado pela UFPR, associado da Terra de Direitos e membro do Fórum Paranaense de Religiões de Matriz Africana.