Jorge Barcellos – Historiador, Mestre e Doutor em Educação
O recente caso denunciado pelo Sindicato dos Servidores da Câmara Municipal de Porto Alegre envolvendo o suposto superfaturamento na aquisição do ponto eletrônico para os servidores do legislativo da capital deve servir de exemplo para uma reflexão dos operadores de direito. A razão é que não é incomum, Presidentes de Câmaras Municipais contratarem como assessores operadores de direito na esperança de que lhes possam oferecer um caminho seguro em sua administração. Por outro lado, as Câmaras Municipais contam com profissionais do direito em cargos de alta assessoria, como Procuradores, e não é incomum, servidores públicos em cargos genéricos de nível médio e superior, terem formação em Direito. Se o Direito ocupa grande espaço na instituição legislativa, como é possível que denúncias como a que ocorreu na Câmara Municipal de Porto Alegre possam acontecer?
A razão deve ser buscada no lugar que os Presidentes de câmaras municipais deixam às suas assessorias no campo do direito. O legislativo é uma instituição complexa composta por atores, regulamentos, espaços, competências e atribuições. Cada decisão passa por inúmeros atores, entre eles, servidores que funcionam para o parlamento como operadores de direito, que tem a função de registrar em seus processos, o que manda a lei. Se um Presidente não atende aos preceitos recomendados pelos seus subordinados, especialmente aqueles responsáveis pelo ordenamento jurídico de suas iniciativas, então o Presidente terá um problema: o risco de incursionar na ilegalidade de suas proposições. Isto porque muitos presidentes, estando convencidos da importância de um projeto de gestão, acreditam estar acima da lei, ou pior, estar acima da rotina das proposições administrativas. Ocorre então o pior: avisados por seus subordinados que uma iniciativa não cumpre as etapas administrativas necessárias, e com isto, coloca em risco a decisão tomada pelo Presidente, ele não dá ouvidos às orientações técnicas de sua assessoria. Por esta razão, o resultado é que ocupará mais cedo ou mais tarde as manchetes dos jornais e os sites das entidades de classe, a título de denúncia.Isso pode ser evitado.
Por esta razão, sugere o filósofo coreano Buyng Chul-Han em sua obra “Psicopolítica” (Herder, 2014) que o poder deve ser, acima de tudo, um “poder inteligente”. O exercício do poder de Presidente de um corpo legislativo não pode ser impulsivo, ao contrário, precisa de bases fortes que somente os servidores, em especial os qualificados com conhecimentos de direito público, podem oferecer. Ora, o poder tem muitas formas de se manifestar e a primeira é a negação da liberdade de pensamento, razão pela qual a primeira coisa que fazem os poderosos é impor sua vontade por meio da violência aos que devem ser submetidos ao poder, o que inclui, poder sobre a argumentação dos operadores de direito. Isso é terrivel. Quem ocupa um cargo de Presidente, e por uma disposição de caráter, for inflexivel, tende a quebrar resistências e forçar a obediência a seus subordinados. O mal de um Presidente é querer ter o poder supremo, diz Han, poder pernicioso para a instituição porque impõe a vontade de um à letra da lei. Por isso é preciso que os operadores do direito de tais instituições, quando vitimas de tal poder, façam do cargo público que ocupam a base pela qual apresentam seus argumentos em defesa da instituição. Tais Presidentes acreditam que podem fazer tudo à revelia da lei mas esquecem que serão perseguidos pelas decisões erradas que tomarem no exercício do poder. Com as politicas de transparência, a ascensão do Tribunal de Contas e do Ministério Público de Contas, não há gestor impune. Se errou, um dia vai pagar. Se teve a oportunidade de consertar e não consertou, pior será.
A questão formulada: o que pode um Presidente fazer, tem uma resposta enigmática. Ela parece sugerir que o poder pode fazer tudo, e com isso, que é um poder supremo, quando não o é. Sempre é preciso prestar contas. Por isso, sugere Han, o verdadeiro poder de um Presidente, de alguém que detém o poder, é justamente quando ele não é tematizado, isto é, o poder é maior quando mais silenciosamente atua. Como isso pode acontecer?
É que o poder pode ser visto pelo seu exercício, mas não se resume a ele. Um Presidente pode mandar em seus subordinados, mas o poder verdadeiro não se manifesta como violência negadora, ao contrário. Os Presidentes e todos os detentores de poder tem um poder efetivo quando o assumem de uma forma permissiva, amável, quando oferecem a seus subordinados liberdade. A razão técnica tradicional de poder, chamada pelo filósofo Michel Foucault de poder disciplinário, é própria de sociedades das origens do capitalismo. No regime liberal você proíbe, seja na escola, na fábrica ou no hospício; no regime neoliberal, ao contrário, você seduz. Por isto o poder disciplinário é ineficiente para a sociedade atual, seja na iniciativa pública ou privada. Porque nossa época, em nosso regime neoliberal, foi adotada uma forma mais sutil, flexível e inteligente para o exercício do poder. Diz Han “Mais eficiente é a técnica de poder que cuida para que os homens se submetam por si mesmos”.
Por esta razão foram contraditórias as medidas autoritárias adotadas pelo Presidente da Câmara Municipal na visão de seus servidores. Seu Presidente adotou para sua gestão a proposta de moralização do poder legislativo, significando com isto a completa absorção de seus servidores no regime de trabalho. Pensa que seus servidores não trabalham e acredita que deva administrar seu tempo. Seu poder disciplinador, tem uma visão de eficiência do parlamento geridas através de proibições, justamente daquelas características da organização do trabalho que o fazem mais produtivo: flexibilização de horários, autogestão de processos, autonomia de chefias e de instâncias no controle do tempo.
O poder inteligente, diz Han, ao contrário, é amável, não opera contra a vontade dos sujeitos, se não dirige contra sua vontade mas a seu favor “É mais afirmativo do que negador, é mais sedutor do que repressor”, quer dizer, o Poder é inteligente quando se ajusta a psiquê coletiva dos servidores da instituição ao invés de buscar exercer um controle. Não impõe silêncios, ao contrário, exige compartilhamento de opiniões, participação, comunicando aos servidores a opinião presidencial ao mesmo tempo que mapeia desejos, necessidades e preferencias. Mesmo que um Presidente assuma um cargo numa Câmara Municipal por um ano, como ocorre na maioria das vezes, ele procura conhecer a vida dos servidores e compartilhar seu projeto. O poder amável é sempre mais poderoso que o poder disciplinador porque escapa a visibilidade, e por isto não é visto como poder. Sempre que um Presidente quer impor sua vontade a todo o custo ele produz uma crise de liberdade institucional, isto é, ele ameaça a liberdade vivida pelos indivíduos numa instituição.
O que pode um Presidente fazer? Questão que se responde: ser inteligente, o que significa fortalecer a liberdade e a amabilidade na instituição legislativa, seduzir seus subordinados ao invés de reprimir, porque o poder que classifica e ameaça é sempre mais fraco porque não invoca alianças. O Presidente de um legislativo deve ser capaz de ler os pensamentos de sua equipe, apostar nas formas de auto-organização de seus subordinados e sua capacidade de otimizar o trabalho, única forma de não encontrar resistências. É que ser inteligente, a palavra propriamente dita, inteligência, significa “escolher entre” (inter-legere), o que paradoxalmente também significa que aquele que pensa com inteligência suas ações nunca é totalmente livre na medida que há um “entre” , que significa que há opções e que deve escolher. O poder inteligente não é o exercício de um poder absoluto, autoritário, mas o exercício de um poder limitado. Esse limite da ação de um Presidente é dado pela capacidade de decisão a partir das ofertas que um sistema pode oferecer. Este sistema é a câmara municipal, com seus regulamentos, seus atores, mas também sua cultura, sua tradição. Como Presidente de uma instituição legislativa, exercer o poder de forma inteligente em seu interior é seguir a lógica do sistema, aprofunda-la, propor as mudanças possíveis a ela ou que sejam imanentes à ela. Presidentes que reconhecem seus erros e mudam suas estratégias tem mais valor que aqueles autoritários que vão até o fim da gestão com seus ideais.