Coluna Ó Mulheres, por Luciane Toss, articulista do Jornal Estado de Direito
- Luciane Toss[1]
No ano em que a Organização Internacional do Trabalho – OIT completa 100 anos, na 108a Conferência anual de membros, ocorrida em 21 junho de 2019 em Genebra, foi aprovada a Convenção de n. 190 contra a violência e o assédio nos locais de trabalho.
A OIT já havia publicado importantes normativas relacionadas a questões de gênero, quais sejam, a Convenção de n.100 em 1951, ratificada pelo Brasil em 1957, relativa ao princípio de igualdade de remuneração para a mão-de-obra masculina e a mão-de-obra feminina por trabalho de igual valor, a Convenção de n. 111, em 1965, ratificada pelo Brasil em 1968, relativa à discriminação em matéria de emprego e profissão e a Convenção de n. 156, que trata da igualdade de oportunidades e de tratamento para homens e mulheres trabalhadores e trabalhadoras com encargos de família, que entrou em vigor em 1993, mas nunca foi ratificada pelo Brasil.
Há muito os movimentos organizados de mulheres no mundo todo reivindicavam uma Convenção específica sobre as violências praticadas nos locais de trabalho pela prática continuada de assédios moral e sexual. Os dados estatísticos sempre confirmaram isso.
Uma a cada três mulheres sofreu, está sofrendo ou vai sofrer assédio no trabalho. É o que afirma a Woman in Leadership in Latin America, organização que trabalha pelo desenvolvimento de carreira de mulheres na região, considerando os relatos que recebe diariamente.
Os casos ainda são subnotificados, mas a situação é tão grave no Brasil que o Ministério Público do Trabalho – MPT – criou uma cartilha para evidenciar a ocorrência de assédio moral e sexual, divisão sexual e a cultura do estupro nas empresas. Gashlighting, mansplaining, manterrupting e bropriating são algumas das praticas comumente utilizadas para descontruir, desfavorecer, desvalorizar, menosprezar, diminuir, enfim, discriminar, assediar e sexualizar as mulheres no local de trabalho.
Segundo dados do MPT, durante a vida, 30% das mulheres sofrem algum tipo de violência. Somente no último ano, foram mais de 300 denúncias de assédio sexual contra a mulher no trabalho. Para especialistas, o número de casos de violência por discriminação de gênero só não é maior por vergonha e medo das vítimas em relatarem os casos (a subnotificação referida acima).
Essa situação mudou significativamente, sobretudo entre as profissionais com mais acesso à informação, as com mais formação, as com maior possibilidade de alcance em cargos nas empresas e as com acesso às redes sociais com o movimento conhecido como #MeToo.
O que é o movimento #MeToo e qual sua relação com a convenção 190 da OIT?
O #MeToo foi criado por Tarana Burke em 1996 depois de uma experiência pessoal diante de um relato de abuso. O movimento se propaga pelas redes sociais somente em 2017, impulsionado por assédios sexuais sofridos por celebridades hollywoodianas cometidas por um dos mais importantes produtores norte americanos. Tem agregado a ele o movimento The Silence Breakers, algo como, silêncio rompido.
EU TAMBÉM. É um poderoso chamamento. As mulheres se reconheceram: eu também sofri assédio; eu não sou a única; eu também posso falar; eu também perdi o emprego; eu também perdi o cargo. Essa rede de solidariedade e confiança que se estabelece a partir da constatação de que outras mulheres também passaram por aquela violência fez com que as estatísticas de assédios moral e sexual no trabalho começassem a se revelar.
Os dados oficiais mostram o quanto o abuso é uma constante em todo o mundo. Segundo a Organização das Nações Unidas – ONU uma em cada 10 mulheres são assassinadas pelos seus companheiros e uma em cada 14 mulheres já sofreu algum abuso sexual, segundo a Organização Mundial da Saúde – OMS.
Em junho de 2018, a Folha de São Paulo publicou que o movimento #MeToo, só nos EUA, entre o julgamento de Bill Cosby (2015) e a acusação de Harvey Weinstein (2017), mais de 417 casos de assédio sexual foram denunciados, cerca de 190 homens, entre executivos e funcionários foram despedidos. Conforme Joan Williams, professora de Direito que estuda gênero na Universidade da Califórnia (em entrevista publicada no jornal O Globo, e 25.10.2018), a mudança atingiu os cargos ocupados por homens em todas as esferas: “… o movimento #MeToo sacudiu, e continua sacudindo, estruturas de poder nos mais visíveis setores da sociedade… pessoas influentes que perderam seus principais empregos… Quarenta e três por cento dos substitutos eram mulheres … um terço está na mídia, um quarto, no governo, e um quinto, na indústria do entretenimento e das artes”.
O texto na Convenção de n. 190 da OIT não é produto do movimento #MeToo. Ele foi proposto, de forma mais ampliada e especificando os grupos atingidos nos locais de trabalho (negros e negras, comunidade LGBTQI, etc.) em 2009 pelas representações sindicais de trabalhadores e trabalhadoras. O texto foi sendo negociado e apresentado para inserção na Conferência em 2018. Sempre houve resistência, não só das representações empresariais, mas dos governos.
Para quem não conhece o processo, a OIT é a única organização ligada à ONU com sistema tripartite de decisão, qual seja, estados, empregadores e empregados tem representação equivalente nas decisões das Conferências que definem Convenções, Recomendações e Resoluções. Portanto, quando um texto é aprovado significa que todos os atores envolvidos em seu cumprimento concordaram com o seu conteúdo. Daí porque a generalidade que caracteriza muitas vezes o texto das Convenções.
A pressão midiática exercida, aliada ao apelo dos movimento das redes sociais ligados ao #MeToo foram fundamentais para que se aprovasse no dia 21 de junho de 2019, a Convenção de n. 190 em Genebra. Ou seja, houve sobre a OIT uma pressão da sociedade civil e do movimento de mulheres no sentido de que havia necessidade de que empregadores e estados, que até então se recusavam a discutir os termos de uma normativa internacional, ouvissem os trabalhadores e trabalhadoras no que dizia respeito ao número considerável de homens que violavam mulheres em seus direitos morais e sexuais nos locais de trabalho.
Do que trata a Convenção de n. 190 da OIT?
O texto da Convenção de n. 190 foi aprovado por 439 votos a favor e sete contra – Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Malásia (dois dos três representantes), República Dominicana e Singapura –, com 30 abstenções, incluindo de um representante empresarial brasileiro, o presidente da Federação Brasileira dos Bancos – Febraban. O Brasil, como estado, absteve-se da votação.
Para efeitos da Convenção se considera Violência ou Assédio no mundo do trabalho o conjunto de comportamentos e práticas inaceitáveis, manifestos de uma só vez ou de forma repetida, que tenham por objeto, que causem ou sejam suscetíveis de causar, dano físico, psicológico, sexual ou econômico e, inclusive a violência ou assedio em razão de gênero.
Já a Violência ou Assédio em razão de Gênero é a violência ou o assédio praticado contra pessoas em razão de seu sexo ou gênero, que afetam de maneira desproporcional as pessoas de um sexo ou gênero determinado, incluindo o assédio sexual.
A convenção ainda admite que as legislações nacionais poderão definir o assédio moral e o sexual de forma distinta. É o caso da legislação brasileira (que tem previsão da conduta tipificada no Código Penal, art. 216-A, mas a pena demasiadamente branda, o que pode vir a ser corrigido com a Convenção 190.).
Outra importante definição são os espaços onde ocorre a violência ou o assédio, ou seja, extrapolam o espaço físico do local onde ocorre a prestação de serviço ou o local onde ocorre a contratação ou a lotação da empregada ou do empregado. Está no art. 3o da Convenção que serão considerados locais de trabalho para efeitos do reconhecimento da violência ou do assédio: a) no local de trabalho, inclusive em espaços públicos e privados quando são um local de trabalho; b) nos locais onde o trabalhador é pago, onde ele descansa ou onde come, ou naqueles que usam instalações sanitárias ou sanitárias e nos vestiários; c) em deslocamentos, viagens, eventos ou atividades sociais ou de treinamento relacionados ao trabalho; d) no âmbito das comunicações relacionadas com o trabalho, incluindo realizado através de tecnologias de informação e comunicação; e) no alojamento fornecido pelo empregador, e f) nas viagens entre o domicílio e o local de trabalho.
O texto não apenas veda a violência ou o assédio, mas estabelece suas formas, contra quem é dirigido (atingem mulheres e jovens de maneira desproporcional… afirma que outras pessoas pertencentes a um, ou vários grupos vulneráveis…), mas também impõem aos países membros a necessidade de combate, medidas de contenção, políticas públicas de acompanhamento às vítimas e de tratamento pedagógico para evitar a prática. Neste sentido, uma legislação como a 11.340/2006 (mais conhecida como Lei Maria da Penha) poderia ser um bom paradigma para o legislador brasileiro.
O texto reconhece que a violência e o assédio podem comprometer a saúde do e da trabalhadora, portanto, lhe dá o direito de sair da situação de risco assim que constatada.
A nova convenção entrará em vigor 12 meses após ser ratificada por dois Estados-membros. Neste caso os países comprometem-se a adotar políticas e alterar suas legislações internas com o objetivo de coibir a violência e o assédio no mundo do trabalho, bem como, estabelecer sanções e controle.
Para que tenha efeitos no Brasil deverá passar pelo processo de ratificação o que talvez demore consideravelmente, uma vez que o Brasil absteve-se de sua aprovação.
[1] Luciane Lourdes Webber Toss, Sócia-Fundadora da Consultoria Ó Mulheres!, Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais e Mestra em Ciências Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos onde cursou Especialização em Direito Privado. É especialista em Nuevos Rectos de Derecho Público pela Universidad de Burgos – UBU (ESP), em Derechos Humanos y Derecho del Trabajo pela Universidad Castilla La Mancha de Toledo – UCLM (ESP) e em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Fundação Escola da Magistratura Trabalhista – FEMARGS. Atualmente cursa especialização em Direitos Humanos e Políticas Públicas, tambem na Unisinos. Integra o grupo de pesquisas CNPQ UFRGS Trabalho e Capital: Retrocesso Social e Avanços Possíveis. É professora da FEMARGS e da Fundação do Ministério Público – FMP.
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